Sunday, 5 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XI): Shymkent

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5/9/2012

Evidentemente que todo planejamento de uma longa viagem tem seus erros - especialmente se você planeja sem nunca ter estado nos lugares que quer visitar. Percebi logo que quatro noites em Shymkent são demais - mas mudar os planos agora daria muito mais trabalho. As cidades cazaques mais próximas de possível interesse, além de Turkistan (que é minha próxima parada), são Kyzylorda, uma antiga capital da República Soviética do Cazaquistão, e Aralsk, às antigas margens do moribundo Mar de Aral. Ambas bem longe, em viagens que exigem continuar pelo deserto até a pele virar couro. Aralsk, por exemplo, está a 12h de viagem de ônibus. Refazendo meus planos, saindo hoje de Shymkent, ganharia dois dias, mas para ir a Aralsk e voltar (já que Shymkent é a saída lógica para a continuação de minha viagem rumo ao Uzbequistão) eu precisaria de três, no mínimo - um para ir, um para voltar e um para ver a cidade. Não compensa. Por outro lado, Kyzylorda, de acordo com tudo o que li e me falaram, igualmente não vale a pena. Seria mais perto, mas também é distante. Poderia fazer nesses dois dias um passeio no parque nacional pelo qual passei no caminho de Taraz até aqui; mas eu não me sinto muito atraído por passar a noite no mato e seria algo caro e difícil de arranjar.

Enfim, de todas essas reflexões surgiu o "dia de folga" em Shymkent e, depois, o outro em Turkistan, antes de cruzar a fronteira uzbeque. Na verdade, eu sou um sortudo - os turistas em geral passam com pressa pelas cidades que visitam. Eu vou ter tempo de degustá-las como deve ser feito, com calma, com apreciação.

Mas o que fazer nesta cidade? Meu livro-guia não diz muito. Shymkent me olhou nos olhos logo de manhã me desafiando a decifrá-la.

(Passar o dia assistindo TV no saguão do hotel? Até me agrada a ideia de descansar um pouco dessa forma, mas, claro, não o dia inteiro. Assistir TV é um mergulho na cultura local. Porém, entender os canais russos com a língua a mil por hora é quase impossível, sem falar nos canais em cazaque. Passar o dia dormindo para recuperar energia? Meio complicado. Eu me arrisco a um ataque cardíaco toda vez que acordo no que é possivelmente o quarto de hotel mais feio da história da humanidade. Ótimo! Tudo me empurra a bater perna por aí.)

Tomo meu café da manhã, queijo, pão com manteiga, presunto, ovo frito, frutas, tudo muito gostoso. E saio sem destino. Caminhar, observar, tirar fotos, aproveitar o tempo bom.

Visitar um museu. O museu regional de Shymkent se prova uma excelente surpresa. Há pouca coisa em inglês, mas esse pouco combinado com as informações do meu guia e meu próprio conhecimento de russo tornaram a hora e meia de visita bem proveitosa e agradável. O andar térreo tem uma parte dedicada à arqueologia muito interessante, com artefatos de vários locais. Claro que aqueles que mais me chamaram a atenção foram os de Otyrar. Vi muito mais tesouros do que naquele infeliz museu na cidadezinha ao lado do sítio arqueológico. No andar de cima, uma série de objetos conta a história de Shymkent desde a época em que era parte do khanato de Kokand (um pequeno reino que existiu nesta região entre os séculos XVIII e XIX) até a independência do Cazaquistão. O período pós-independência, em particular, é fartamente documentado com fotos - um número impressionante de fotos do presidente Nursultan Nazarbayev fazendo tudo: jogando tênis, andando a cavalo, saudando autoridades desconhecidas e conhecidas... como é galante e versátil o pai da pátria! E entre o khanato e Nazarbayev, é claro, muito Lênin e Congressos do PC Soviético.

Volto à ensolarada cidade. As sombras que tanto me atraem, das nogueiras, são perigosas. As nozes estão caindo, toda hora, são pequenos e dolorosos mísseis. Nozes-pecã. Tentei comer uma, não estava muito gostosa, meio verde, talvez, não sei. Também é preciso tomar cuidado com o chão. Há tantas no caminho que é fácil escorregar ou torcer o pé.

Fugindo um pouco do perigo, me escondo no colorido mercado, que ao meu ver não perde em nada em dimensão e variedade de produtos para o de Almaty: grande oferta de frutas e tecidos, lindos, brilhantes, coloridos. Na parte das frutas, sou freado ao passar por uma pilha de morangos em cima de um balcão, em um corredor meio escuro. Os morangos, pequenos, têm um cheiro tão, tão doce e intenso que parece que você está tomando pelo nariz um suco feito com as frutas. O gosto invade a boca, uma experiência de pura sinestesia. Um suco de morango batido no liquidificador, com muito açúcar, bem frio, quase um milk shake, para enfrentar a tarde abafada.

Há muitos vendedores de umas bolinhas feitas de iogurte drenado, bem salgadas, bem duras e secas, chamadas de kurut. Eu já havia comido algo assim e foi no próprio Brasil. Compro um pouquinho só para interagir com os vendedores, um casal de velhinhos, bem velhinhos, com sua mesinha ao lado de um ponto de ônibus, já na parte de fora do mercado. O homem com seu chapéu, a mulher, com seu véu, devem ser bons muçulmanos, enfrentando bravamente o Sol, ano após ano, com a pele curtida, rugas profundas, esperando sem entusiasmo o alívio-castigo do frio do inverno, daqui a alguns meses.


* * *

Para nos despedirmos, Rustem me leva a um bar-restaurante na Kunaev, avenida que concentra uma série de empreendimentos imobiliários de alto padrão em Shymkent, prédios que (me pergunto) devem ter sido projetados para resistir à frequente atividade sísmica daqui.

Pedimos shashliks e uma salada. Eu peço uma cerveja, Rustem, uma (muçulmana) coca-cola. Em poucos minutos de conversa, somos interrompidos pela chegada de um velho amigo de meu anfitrião. Ele nos saúda e se senta à mesa. Diferentemente de Rustem, é gordinho e fala inglês bem ruim. Para ele se comunicar comigo, só com a ajuda do amigo.

Falo de como são abundantes nas ruas os símbolos nacionais cazaques - a bandeira, as cores azul-celeste e amarela da bandeira, o mapa do país, fotos dos monumentos da capital, Astana, as estátuas de heróis e sábios. E como o presidente abraçou essa função de, ele próprio, ser um símbolo nacional, com suas frases estampando outdoors e monumentos, no seu evidente culto de personalidade. Evito o termo "culto de personalidade" na conversa com meus colegas. Me vejo, inconscientemente, poupando meus amigos de críticas a Nazarbayev. Talvez por ainda lembrar da difícil experiência de fazer a pesquisa para minha dissertação de mestrado em Almaty, ao encontrar tantos que não conseguiam expressar qualquer crítica ao líder, por sinceramente gostarem dele ou por medo de cometerem algum "pecado" e terem que pagar por isso. Quis manter a conversa leve com Rustem e seu amigo, sem a menor possibilidade de debate acalorado e de ofensa.

Falo a eles como, para mim, parece que esses símbolos estão ausentes no Brasil. Não que não existam monumentos com ícones nacionais. Não que as cores da bandeira estejam ausentes - durante as Copas do Mundo, muito pelo contrário. Mas, enquanto que no Cazaquistão esses símbolos são proeminentes e martelados constantemente, no Brasil eles parecem ser simplesmente "presumidos" a maior parte do tempo, ou seja, eles aparecem, mas mais espalhados, de forma mais tímida, uma bandeira aqui, outra ali, pessoas usando as camisas da seleção, um velho monumento ignorado acolá. Lanço minha teoria: isso que ocorre no Cazaquistão vem dos tempos soviéticos, quando a simbologia do vermelho, de Lênin e da foice e do martelo era igualmente repetida, como que para reforçar a ideia do domínio totalitário do Estado e para construir uma identidade soviética; e, claro, mais recentemente, a abundância dos símbolos se relaciona à independência cazaque, novamente tem a ver com a ambição de construir uma identidade, mas agora para uma nação após décadas apenas sendo uma das muitas faces do universo soviético.

Rustem concorda e vai além. "Para nós, é muito importante cultivar símbolos próprios. Durante toda a nossa história fomos alvos de impérios vizinhos: ao norte, a Rússia, a leste, a China, ao sul, a Índia, a sudoeste, a Pérsia. Agora podemos ter nossa própria identidade."

Me pergunto até que ponto essa identidade é realmente legítima ou é construída artificialmente. A importância do presidente é algo construído? Ou reflete uma tradição segundo a qual, em momentos da história cazaque, as confederações tribais nômades se unificaram atrás de um único líder? Será que essa tradição não é politicamente explorada por Nazarbayev para se colocar acima de tudo e de todos? Afinal, ele é um homem, sujeito a erros, não um deus.

Os símbolos nacionais, a bandeira, o hino. Para que exatamente eles servem? Dão uma sensação de unidade - de que todos são iguais na medida em que todos são cazaques, vestem as mesmas cores, jogam no mesmo time. No Brasil se vê isso na Copa, na Olimpíada, e é muito bonito. Mas em outros momentos, é pouco, ou quase nada. Quem sabe cantar inteiro, corretamente, o hino nacional? Minha geração ainda teve aulas obrigatórias de Educação Moral e Cívica como parte do ensino fundamental. Eu detestava a matéria. Mas veja: meus amigos cazaques me perguntam o significado da bandeira brasileira e eu, quiçá com um bobo orgulho, explico. Me pergunto se hoje ou no futuro os jovens do Brasil sabem e vão saber explicar o verde-amarelo-azul-e-branco. Talvez não cultivar os símbolos nacionais gere um país "genérico". Sinto isso, que o Brasil só existe na Copa e na Olimpíada. Fora disso, as pessoas convivem sem nem saber o que as fazem cidadãos do mesmo país. Basta a língua? Existe uma etnia "brasileira"?

Talvez os símbolos sejam até prejudiciais. Em um país "genérico", o perigo do nacionalismo, o fanatismo do nacionalismo, têm menos chance de vir à superfície. E já sabemos das guerras tolas travadas em nomes de cores e hinos e etnias.

Está claro que a conversa criou muito mais perguntas na minha cabeça do que respostas. E são perguntas que Rustem e o amigo dele não poderiam responder.

Me despeço de Rustem. Amanhã, volto ao trabalho, continuo minha expedição em busca de mais símbolos nacionais cazaques. Importantes ou não, artificiais ou não, são lindos demais.

Turkistan, 6/9, 17h45

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