Wednesday 8 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XII): Turkistan

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6/9/2012

Eu senti falta das cúpulas azuis. Das cúpulas cor de céu, magicamente se materializando no deserto, em meio aos arbustos rasteiros, espinhosos. Senti falta das cúpulas azuis que aparecem nestes oásis ao sul das estepes, em prédios ancestrais, monumentos à memória de Tamerlão, um grande conquistador que fez tremer a terra e matou milhões, mas poupou artistas para erguer... cúpulas azuis. Sentado em um monumento moderno e completamente abandonado, com seu concreto estragado por mato e pombas, passo uma hora hipnotizado observando o outro, o principal, que está a aproximadamente 500 metros à minha frente. Fico observando e sendo observado pelo mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi em Turkistan.

Passo uma hora em outro mundo sem sair deste planeta.

O sol é poente. Incide diretamente sobre a fachada de trás do quadrilátero de tijolos cor de barro, decorado por padrões geométricos que se alternam, dançam estáticos. Caligrafia árabe misteriosa e domos celestes.

O sol é branco, depois amarelo, depois laranja, depois vermelho, depois vermelho escuro e por fim púrpura, misturando-se com as sombras da noite. Mas o azul do domo é azul, eternamente azul, azul, azul.

Yassawi nasceu em Sayram e foi educado em Bukhara, onde travou contato com o sufismo. Contudo, ele passou a maior parte da vida em Turkistan, na antiguidade chamada de Yasi (daí o nome Yassawi). Dedicado a seus seguidores, morreu venerado em 1166. Antes mesmo de Tamerlão ordenar a construção do imenso complexo, no final do século XIV, sua tumba já era um local de peregrinação. Imagino que, sem levar em conta a admiração do próprio conquistador pelo mestre sufi, erguer tamanho prédio tenha sido acima de tudo uma manobra de populismo, para mostrar ao povo o quanto o seu monarca valorizava quem comandava a devoção de milhares. Um prédio para sugar um pouco dessa popularidade para si. Mas Tamerlão morreu em 1405 e não chegou a ver concluída a construção. Ninguém chegaria - a fachada principal ficou incompleta e assim permanece. Enquanto os outros lados aparecem gloriosos, cobertos de lindos azulejos como os tesouros em Bukhara e Samarkand, o grande pórtico ficou nu.

Este é um dos grandes tesouros da humanidade. O pórtico é de cair o queixo - calculo que tenha uns 30 metros de altura. Incompleto, ficou com troncos de madeira encravados em si, como espinhos, usados para dar apoio aos construtores que nunca mais voltaram. Buracos nas paredes, deixados pelas estacas que chegaram a ser retiradas, são hoje residência de pássaros. No anoitecer, o local é todo uma orgia de piados e gorjeios, amplificada pela própria forma do portal. O ruído é tão alto que, primeiramente, assusta. Mas isso passa e vira encanto. Ajuda na meditação do observador. Um mantra. Amanhã, veremos como é no amanhecer.

Pelo fato de ser inacabado e tão imenso, o mausoléu me lembrou a mesquita Bibi Khanoum de Samarkand: ambas monstruosidades belíssimas e até hoje esperando ser concluídas, perfeitos monumentos a um conquistador sanguinário que ousou se comparar a Genghis Khan, mas morreu em Otyrar sem terminar sua obra. Arquitetos enxergam no monumento em Turkistan o nascimento do estilo arquitetônico timurida, seus primeiros passos antes dos grandes monumentos em Samarkand. A cúpula central do mausoléu é ainda hoje a maior de tijolos na Ásia Central, com cerca de 18 metros de diâmetro. Sendo o berço do mundo das grandes cúpulas azuis, o mausoléu tem sua importância amplificada muito além do atual Uzbequistão. Chega ao Irã e às cúpulas indescritíveis em Isfahan. E à Índia da dinastia Mughal, dominante do século XVI até a chegada dos britânicos. O fundador da dinastia, Babur, era um descendente de Tamerlão. Assim, existe uma linha direta entre o mausoléu e o próprio Taj Majal, a maior joia da arquitetura mughal.

Há ainda a importância política do monumento. Juntamente com Yassawi, aqui repousam os restos de Ablai Khan (1711-1781), senhor de uma das confederações tribais cazaques e líder da resistência de seu povo contra a invasão dos jungars (os mesmos que destruíram de vez Otyrar). Turkistan foi a capital dos cazaques entre os séculos XVI e XVIII, representando a chama da independência frente não apenas aos jungars, mas aos próprios russos, então em suas primeiras incursões pela Ásia Central. Os russos, invasores então distantes e desconhecidos, cujo avanço depois se mostrou irresistível.


* * *

Cheguei a Turkistan no meio da tarde, com um Sol imenso, para variar. O calor é horroroso, mas só de dia - as noites são frias, beirando os dez graus, perfeito clima de deserto.

A cidade fica perto do Syr Darya, o rio que faz a fronteira natural entre as estepes secas, para o norte, e uma região de povos sedentários, onde era possível praticar a agricultura, que vai pelo sul até o rio Amu Darya. Nessa região fértil entre rios, chamada séculos atrás de Mawarranahr pelos antigos árabes e de Transoxiana pelos gregos ("além do Oxus", que era o nome grego do Amu Darya), se fixaram os uzbeques e tajiques, enquanto que os cazaques se mantiveram nômades, senhores das estepes. Acredita-se que os uzbeques são parentes dos cazaques, portanto, em sua origem, nômades. Na verdade, eram mais que parentes, eram irmãos. Até se separarem pelo Syr Darya.

Um evento crucial no desenvolvimento de novas identidades grupais veio com a conquista uzbeque da Transoxiana em 1501. Os uzbeques se originaram de uma confederação tribal nas regiões orientais da Horda Dourada, ao norte do Mar de Aral. Nos anos 1440 eles começaram a se organizar sob a liderança de um descendente de Genghis Khan, Abul Khayr Khan, e interferir nos assuntos dos descendentes de Tamerlão, a dinastia timurida em Transoxiana. A empreitada exigia um grau maior de centralização de poder e relações mais próximas com as populações sedentárias (de Transoxiana) do que alguns dos seguidores do Khan desejavam. Dois membros da linhagem de Genghis, Karay e Jani Beg, desertaram com seus seguidores e se mudaram para o nordeste (...) Os novos khans passaram a ser chamados "Qazaq" (cazaque), significando renegados ou foras-da-lei.
- Historical Background, em Central Asia in Historical Perspective, Beatrice Manz

Já os tajiques, os sedentários da história, são descendentes longínquos de Alexandre, o Grande, e até hoje falam uma língua persa. São testemunhas de Sogdiana, como era chamada a satrapia (província do império persa, conquistado por Alexandre) entre o Amu Darya e o Syr Darya. Interessante que até mesmo antes da chegada dos uzbeques no século XVI, a relação dos tajiques (chamados ancestralmente de tats ou sarts) com os povos túrquicos nômades que passaram por Transoxiana sempre foi de simbiose - com eles fornecendo aos nômades produtos agrícolas, mercadorias refinadas (artesanato) e serviços que complementavam a vida sem destino pelas estepes e desertos, e os nômades, em troca, oferecendo a eles outros produtos, feitos com o material extraído dos animais de seus rebanhos, como leite, carne e lã. Isso só mostra como a (tentativa de) separação dos soviéticos, colocando os tajiques em seu país próprio, o Tajiquistão, é uma grande aberração histórica. Que permanece até hoje.

Esperava ver o Syr Darya passando pertinho do mausoléu de Yassawi, mas ele permanece invisível em algum canto, com o seu curso alterado com a passagem dos séculos. Entretanto, a simples existência deste prédio colossal nesta região seca e inóspita é prova inegável de que pelo menos algum dia houve a presença próxima de uma grande fonte de água. Nem é preciso ver o rio para notá-lo.

Para meu alívio, o hotel que encontrei aqui superou as minhas expectativas - é muito melhor do que aquele inferno de Shymkent e até, incrível, um pouco mais barato. Fica em uma avenida de trânsito movimentado, próxima ao mausoléu e também a curta distância de dois bons restaurantes. Me dei um laghman de jantar: massa estilo talharim feita sem frescuras, tiras grossas, fresca, com pimentões cozidos e cortados em quadradinhos, carne em cubinhos, cebola em cubinhos. Uma boa salada de tomate e pepinos para acompanhar.

Mais mausoléu amanhã. Agora, sonho com Tamerlão e promessas maravilhosas, incompletas, mas maravilhosas.

Turkistan, 7/9, 12h45

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1 comment:

  1. Muito interessante e educativo!!! Que região!!! Feita de descendentes de Alexandre o Grande e Genghis Khan!!!

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