Wednesday, 21 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XLI): Osh

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

6/10/2012

Uma pequena viagem até o Uzbequistão.

Osh é muito perto da fronteira e da quarta cidade mais populosa do Uzbequistão, Andijan (só atrás em população de Tashkent, Samarkand e Namangan), onde eu nunca estive. Puxei novamente Iker para ir comigo.

Na verdade, Osh e Andijan são praticamente a mesma cidade, separadas pela divisa internacional. Uma van nos levou à fronteira. Em uma hora já tínhamos vencido todas as barreiras burocráticas e estávamos negociando o preço com o taxista do lado uzbeque para nos levar ao centro. Como já me aconteceu antes algumas vezes, ao atravessar a fronteira encontramos uma quantidade imensa de taxistas repentinamente com os olhos enormes ao nos ver, nos cercando, tentando nos convencer a não pensar muito no preço que estavam pedindo pela corrida. Por fim, fizemos negócio com um que nos pareceu mais confiável. Mais uns vinte minutos e estávamos no coração de Andijan.

Eis a cidade onde nasceu Babur, conquistador da Índia, apaixonado pela Sulaiman Too. Hoje, uma urbe de vastas avenidas. Bem maior que Kokand, também no Vale de Fergana uzbeque, onde estive anteriormente nesta mesma viagem.

Em 2005, Andijan ganhou fama internacional em um lugar no centro chamado Praça Babur. Em maio daquele ano, um grupo de 23 empresários de Andijan foi preso, acusado de simpatizar com o islã radical. A prisão levou a protestos pacíficos na Praça, protestos "quietos e muito bem organizados", disse um correspondente da BBC na época. As famílias dos presos diziam que eles eram inocentes. Talvez não fossem, mas a prisão de inocentes por radicalismo islâmico tem tudo a ver com o pensamento do ditador uzbeque Islam Karimov que, desde os anos 90, submete todo o Vale de Fergana a um torniquete de vigilância militar, temendo os mujahideens.

Na manhã de 13 de maio, um grupo de homens armados invade a prisão local, toma o prédio e liberta os 23 prisioneiros e outros detentos. Além disso, eles tomam o prédio da administração local de Andijan. Alguns soldados são mortos pelos invasores. Durante o dia, soldados são vistos ao redor da praça (em frente ao prédio) usando fuzis, enquanto que mais e mais pessoas chegam ao local para a continuação do protesto: ao microfone, falando à multidão de cerca de 10 mil pessoas, alguns criticam o governo Karimov pelos problemas econômicos. Alguns, gritam palavras de ordem contra o presidente, cantam canções de protesto.

Tamanha ousadia não poderia levar a outro desfecho no Uzbequistão de Karimov. Acredita-se que os soldados receberam a ordem de "eliminar" o grupo responsável pela tomada da prisão e do prédio do governo. Foram atirando. Oficialmente, morreram 187 pessoas, mas testemunhas e opositores falam que até 1,5 mil perderam a vida. Foi um momento marcante para Karimov, que, após o incidente descartou definitivamente qualquer esboço de abertura do regime, especialmente no Vale de Fergana, e se viu obrigado a enfrentar a pressão internacional para autorizar uma investigação independente dos fatos, o que nunca ocorreu. O massacre também afastou Karimov dos Estados Unidos, com quem vinha até então mantendo relações cordiais, já que os americanos não tiveram escolha a não ser condenar Tashkent pelo ocorrido ("traindo" a confiança do ditador uzbeque). Logo os americanos foram chutados de uma base aérea que Karimov os havia autorizado a usar no país para suporte da campanha militar dos EUA no Afeganistão.

Quero conhecer a Praça Babur, verificar o que existem de cicatrizes de tal evento tão importante para a história recente do Uzbequistão, e decido procurar o lugar - uma tarefa dificultada pelo fato de eu não ter um mapa da cidade. Entro com Iker em uma área verde ao lado de onde o táxi nos deixou. Com um portal bonito e chamativo, de cúpulas azuis, a área é tomada por envelhecidos brinquedos de um pequeno parque de diversões, fontes e estátuas, árvores, bancos onde casais de namorados conversam. Seria aqui a Praça Babur?

Uma garota de Andijan, com apenas o rosto branquíssimo de fora de sua vestimenta bem muçulmana, nos abordou e nos acompanhou, simpática, no passeio. Aliás, simpática demais: ficamos desconfiados de que pudesse ser algum tipo de espiã, o que não me estranharia. Falando inglês bem, aparentando interesse em praticar a língua, começou a fazer mil perguntas sobre nós, nossos nomes, o que estávamos fazendo em Andijan, o que estávamos fazendo no parque, o que queríamos saber sobre a cidade. Depois de responder algumas perguntas sem nos preocupar, começamos a responder de forma mais lacônica. Ela disse que o lugar onde nós estávamos se chamava Parque Navoi. Não, não estávamos no lugar certo. Pensei em perguntar a ela onde ficava a Praça Babur. Mas pensei duas vezes. Ela perguntaria o que estávamos indo fazer lá.

Passamos a ignorar a "espiã", que continuou nos seguindo. Era bastante incômodo. A cada minuto eu associava mais a presença daquela jovem com os fantasmas da cidade, com a paranoia de Karimov. Me contaminava com essa paranoia.

Não conseguimos encontrar a praça. Entramos e saímos do parque procurando placas e indicações. E nada. Saímos por um lado do parque e encontramos uma grande avenida, saímos do outro e encontrando outra. Estávamos intimidados, com a mulher nos seguindo bem de perto, e por isso não conseguimos perguntar para as poucas pessoas sentadas nos bancos onde ficava o lugar.

O que ficou claro: no parque, nenhuma referência em absoluto ao massacre, que certamente deve ter se feito sentir em todo o centro. Outra coisa que ficou clara: novamente, ao redor do parque, o processo de "embelezamento" da cidade. Como vi em Samarkand e Kokand: longos quarteirões estão tendo suas fachadas reconstruídas e já parecem irreais, como se tivessem sido transplantados da Europa ou dos EUA. Parecem não pertencer a Fergana. Em Kokand eu não esperava isso, aqui, sim. Não consigo imaginar um outro lugar em todo o país em que Karimov gostaria de ver o passado apagado e substituído por um presente lindo, limpo, irreal.

Mas ainda está longe de conseguir. Andijan tem motivos para cultivar um ódio oculto. A sensação de injustiça vai além do incidente de 2005. O papel da cidade (e do Vale de Fergana) é secundário e desmerecido na política do país nas últimas décadas, dominada por Karimov e os clãs políticos associados a ele, de Bukhara e Samarkand. O Vale de Fergana continua tomado por militares, você os vê por toda a parte, sendo um lembrete constante da desconfiança do poder central, do temor de que radicais islâmicos possam aparecer por aqui (como ocorreu no início dos anos 2000) ou de que um novo protesto, como o de 2005, possa ocorrer. Imagino que, para os locais, seja uma presença muito intimidadora. Como a da moça que nos seguiu, seguiu, seguiu até que saímos do parque, atravessando a avenida rumo a um grande mercado da cidade, do outro lado.

Praça Babur, eu ainda te encontro. Um dia.

* * *

A mesquita de sexta-feira. Um prédio com uma linda fachada, provavelmente reformada recentemente, mas um interior decepcionante: um pátio coberto com um telhado de metal pré-fabricado. Fomos convidados a acompanhar as orações de 13h do sábado. Os longos cânticos do museu ecoaram dentro de nós, gerando o contumaz silêncio reverente, um suspiro. Ao meu redor, dezenas e dezenas de homens com seus chapéus pretos chegavam, se ajoelhavam, encostavam a testa no chão.

Depois, do lado de fora da mesquita, concretizei meu objetivo ao vir a Andijan. Na mesquita, tive um encontro há muito planejado e muito comemorado. Encontrei um colega suíço do meu mestrado em Birmingham, que se formou junto comigo em agosto, imediatamente antes desta viagem. Ele estava fazendo um estágio em uma embaixada em Tashkent e vinha pela primeira vez ao Vale de Fergana justamente quando eu estaria em Osh. Era só atravessar a fronteira para vê-lo. Nos abraçamos. Tínhamos tanta coisa para analisar em nossa conversa que ficamos em silêncio por alguns segundos, pensando onde começar. Risadas se seguiram. "Onde vamos almoçar?" foi tudo o que conseguimos falar. Apenas com o chá servido, a conversa começou a fluir.

Que surreal foi encontrar meu amigo por aqui, ele, um representante de um mundo tão diferente do que tem me acompanhado a semanas. Ao mesmo tempo, como foi maravilhoso! O encontro me trouxe a sensação de que o tapete de retalhos, o patchwork da vida, é um só, não remendos desconexos, de cores, formas e texturas diferentes que não podem jamais ser colados ou costurados juntos. Difícil explicar isso. Viajar pela Ásia Central me afastou de todos meus amigos, de meus familiares, dos ambientes familiares do meu dia a dia. Encontrar meu amigo me reconectou com esse mundo de uma forma real. Ele estava lá. Durante minha viagem, a conexão entre o mundo de lá e de cá é permanente, mas apenas em minha cabeça. O tempo passa, e as lembranças vão ficando mais e mais irreais, até que chega um ponto em que você se pergunta se realmente foram reais. Assim, com meu amigo, as lembranças se provaram reais, e minha vida na Ásia e minha vida na Europa se provaram uma só. Só assim posso explicar a alegria que senti.

Fomos para um dos maiores mercado de Andijan, o Eski (que quer dizer antigo), ao lado da mesquita. Pedimos o chá e plov, o risoto típico uzbeque. Meu colega suíço veio acompanhado por uma moça alemã que trabalhava com ele. Haviam estado em outras partes do Uzbequistão e foi interessante ouvir a visão deles sobre as cidades. Dividimos a mesma percepção de que o Registan em Samarkand é lindo, mas insuportavelmente cheio de turistas, e que o melhor é explorar o país, ir até os locais menos conhecidos.

Depois do almoço, para fazer a digestão, caminhamos até o mercado Yangi (que quer dizer novo). Na área externa, o suíço teve a brilhante ideia de comprar e dividir com todos um doce e suculento melão, do tipo gigante que abençoa a Ásia Central. Eu, Iker, meu colega e a alemã demos um espetáculo, tentando fatiar o melão no meio do mercado com uma faca emprestada por algum dos vendedores, procurando apoio sem uma mesa para encostar a fruta e poder cortá-la melhor, parando para tirar fotos com as mãos completamente meladas. Logo, os frequentadores do mercado e os próprios vendedores tentaram nos ajudar e, ao mesmo tempo, pediram para tirar fotos de nós. Cansamos de responder as perguntas tradicionais vindas de todos que se acercavam: De onde vocês vêm, para onde vocês vão? E no caso particular meu e de Iker, depois de revelarmos nossas nacionalidades, enfrentamos as também inevitáveis perguntas sobre futebol e ouvimos infinitos elogios a Ronaldo, Pelé e Casillas. Viramos um atração turística imperdível... para os não turistas. A diferença da curiosidade dos locais era clara em relação a Bukhara ou Samarkand. Com menos turistas em Andijan, a curiosidade pareceu genuína, não uma ponte para tentar vender suvenires para nós.

Iker ficou frustrado. Eu lhe disse que o Vale de Fergana uzbeque era um bom lugar para comprar seda, a seda que dá nome à Rota da Seda. Na minha cabeça, evidentemente, estava a maravilhosa fábrica de seda artesanal que visitei em Margilan em 2003, e Margilan é perto de Andijan. Contudo o que encontramos no Eski e no Yangi foram apenas tecidos misturando seda com outras fibras, alguns em formato de grandes bobinas, outros já cortados e costurados pelos locais na forma de vestidos femininos. Os tecidos eram produto de máquinas, não de artesãos, e tinha estampas copiadas em série. Onde estavam os lindos lenços púrpuras de Margilan? Onde estava a tradição desta terra? A tradição foi engolida pela "nova Rota da Seda", o projeto do governo chinês para dominação de rotas comerciais entre Pequim e a Europa. No Yangi, como na rua 25 de Março em São Paulo, a China é a origem de quase tudo. Senti uma grande tristeza com a marcha inexorável do comércio global. A Ásia Central é parte importante dos planos chineses de expansão comercial, como ficou claro na construção do grande túnel que vi no norte do Tajiquistão.

Essa expansão tem um preço, um preço que vai se acumulando com as décadas e também não é exclusivamente culpa do chineses. A partir do século XVIII os russos já traziam seus produtos para vender aqui, ameaçando os artesões locais, inundando esta terra com mercadorias baratas e de baixa qualidade. Processo semelhante ocorreu em todo o restante do mundo.

Temo pelos famosos artesãos da Rota da Seda. O que restará da manifestação cultural única que eles representam daqui a 10, 20 anos? O que acontecerá se não forem protegidos, incentivados?


* * *

Me despeço com pesar do meu colega de universidade. Nem sei quando, ou mesmo se, o verei de novo. Apanho um táxi com Iker e atravessamos campos de algodão para chegar novamente à fronteira quirguiz. O algodão, o principal traço da personalidade econômica do Vale de Fergana no lado uzbeque, se segue a uma grande plantação de maçãs e a um campo de girassóis, lindos sob a luz do anoitecer. A fronteira surgiu de repente, logo a seguir. E, com as fronteiras, sempre vem tensão.

Guardas uzbeques simpáticos e cordiais (não tive problemas com eles em nenhum lugar desta viagem). Mas no lado quirguiz, para variar... A fila para carimbar o passaporte era longa. Para relaxar, eu e Iker ficamos, em espanhol, lembrando de piadas e dando risadas.

Como na saída do Tajiquistão, novamente o guarda encarregado de carimbar os passaportes era gordinho e de óculos. Cheguei até a pensar que se tratava do mesmo, mas acho difícil que, se fosse, não tivesse falado algo para mim (como por exemplo: "ligou para meu amigo para ele transportar você até Bishkek?"). De qualquer forma, igualmente, como seu irmão gêmeo de dias atrás, este estava com péssimo humor e com cara de pouquíssimos amigos. Ao nos ver Iker na fila dando risadas de uma de minhas piadas, pediu silêncio. Levantou a voz e ordenou de forma extremamente ríspida que o espanhol ficasse atrás de uma linha marcada no chão, longe de mim.

Fiquei me perguntando se ele considerava o ato de rir algo subversivo. Quem sabe as gargalhadas pudessem iniciar uma revolta dos uzbeques na fila contra os guardas quirguizes de fronteira? Será que ele simplesmente ficou com raiva das risadas, pensando que nós estávamos rindo dele? Ou será que sua reação foi apenas uma forma de mostrar autoridade, motivada pela raiva de nos ver felizes enquanto ele, e os outros guardas, trabalham horas e horas por um salário irrisório tendo que lidar com filas infinitas?

Ficamos com medo de que rejeitasse nossa entrada no Quirguistão. Meu visto múltiplo para o Uzbequistão expiraria em no dia seguinte; na hipótese de sermos impedidos de entrar, teríamos que voltar no dia seguinte esperando que um guarda quirguiz de mais bom humor nos atendesse. Mas, comigo, foi tudo tranquilo. O guarda apenas perguntou se eu tinha um visto quirguiz (eu tinha, mas na verdade não precisava, já que tenho passaporte espanhol, e cidadãos europeus não precisam de visto para visitar o Quirguistão a turismo). Com Iker, o carimbo foi antecedido por uma bronca, uma longa bronca, em russo. Nem eu entendi tudo, e Iker, claro, sem nenhum conhecimento da língua, apenas ficou sério e concordou, com a cabeça, com tudo o que lhe era dito.

Amanhã, adeus Osh. E começa minha sétima semana de viagem.

Osh, 7/10, 8h58

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