Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Thursday, 29 June 2023
Novas Fronteiras (XXX) - Mary, Turcomenistão
O que é "Novas Fronteiras"?
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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.
28/8/2018
Seu panorama plano era perturbado por pequenas pilhas e longas fileiras de escombros onde nada a não ser arbustos atrofiados cresciam. Também havia o ocasional fragmento de alvenaria, os restos de uma edificação, separados por uma grande distância do próximo e do seguinte. Tão isolado era cada resto que, coletivamente, eles chamavam a atenção como um conjunto de cupinzeiros. E isso era tudo o que sobrava da ancestral Merv (...) Que tal metrópole possa ter sido obliterada sem explosivos é a demonstração de um tipo de genialidade, uma ousadia brutal. Isso também levanta questões sobre a influência, a natureza, a trajetória, as origens do mal. (...) Deveria eu permanecer desconcertado diante das ruínas de Merv e da memória de seus mortos, ou deveria desprezá-las com um triste dar de ombros porque essa era apenas a forma como o mundo era 700 anos atrás?
- Geoffrey Moorhouse, Apples in the Snow (1990)
Um cubo. Um cubo perfeito no sol do deserto. Coberto por uma cúpula, uma meia esfera. Sua superfície inteira é de tijolos. Sobre a entrada, uma série de cinco sacadas que me lembraram a arquitetura de Sevilha, de Marraquexe. Um prédio do século XII, de suprema elegância em sua simplicidade.
Dentro, o ambiente é fresco, prazeroso, com sua sombra reconfortante. No chão, há uma tumba de mármore decorada com as serpentes do alfabeto árabe. No alto, janelas, logo abaixo da cúpula, deixam entrar a luz. Do chão até o topo da cúpula interior são uns 20 metros. As paredes estão sendo, aos poucos, recuperadas. Há desenhos gloriosos em linhas vermelhas e negras, parecem ser as molduras de elementos decorativos que se perderam. Linhas do teto também foram trazidas à vida. Geometrias tentadoras. Outras partes das paredes ainda estão completamente nuas, brancas.
Olhando para o teto, senti a garganta secar e repentinamente tossi. Me assustei com o eco, ele pareceu persistir por 10, 15 segundos, até morrer. Um eco perfeito. Um mausoléu perfeito.
Os turcomenos têm mesmo que se orgulhar do mausoléu do Sultão Sanjar, a principal joia da sua mais famosa cidade do passado, Merv. Uma vasta ruína, mais vasta até que Konye Urgench, ela ocupa realmente o espaço de uma cidade de bom porte, com resquícios de séculos e povos completamente distintos, com histórias que capturam a imaginação. Orgulho turcomeno, orgulho do mundo.
Resumir a história deste lugar, ou sua importância na história da humanidade, é difícil. Há sinais de que a sua área já era ocupada desde a idade do bronze, como parte da mesma civilização de Gonur-Tepe, e sua existência é atestada pelo Avesta, o livro litúrgico do Zoroastrismo, que tem sua origem nos ensinamentos de Zoroastro entre os anos 1500 a.C. e 1000 a.C. Para os seguidores da religião, Merv era Mouru, uma das "16 Terras Perfeitas" criadas pelo Deus supremo, Ahura Mazda. Seguiu-se a anexação pelos persas Aquemênidas e por Alexandre, o Grande, cujas forças fundaram aqui uma Alexandria (não tinham muita criatividade). Não demoraria para que o assentamento nas margens do rio Murghab, também como Gonur, ganhasse status de centro regional desta região, conhecida ancestralmente como Margiana — passou a ser capital de uma satrapia (província) do Império Selêucida (séculos IV a.C.- I d.C.), renomeada como Antioquia Margiana; depois, foi uma das capitais dos partas, dos kushanos e finalmente dos persas sassânidas. Na conquista árabe (século VIII), foi a capital de fato dos árabes nos territórios adquiridos em toda a Ásia Central (o centro de poder, por exemplo, sobre Bukhara, Samarkand e todas as terras conquistadas ao norte do rio Amu Darya); foi o centro de uma rebelião da dinastia Abássida contra a dinastia Omíada, o presságio do domínio de Bagdá sobre o califado.
Mas o grande período de glória viria mesmo nos séculos XI-XIII, quando a cidade passou a ser uma das mais importantes do Império turco Seljúcida. Sultão Sanjar (governou de 1118 a 1157) é considerado o último grande líder dos seljúcidas, controlando terras desde Jerusalém até o atual Cazaquistão, e Merv foi sua capital. Nesse período, as crônicas atestam que a população de Merv cresceu a ponto de esta se tornar a cidade mais populosa do mundo. Em 1210, seus habitantes teriam chegado a meio milhão, mais que Constantinopla ou Bagdá, metrópoles muito mais conhecidas do período. A cidade ganhou, então, o apelido de Marw al-Shahijan ("Merv, a Grande", em árabe), sendo um centro destacado de cultura e ciência. Tamanha era sua glória que surgiu a crença de que alguns contos de As Mil e Uma Noites, a obra que contribuiu como nenhuma outra para construir no imaginário Ocidental a Civilização Islâmica, tenham sido inspirados em Merv.
A decadência após a morte do Sultão Sanjar em 1157 foi rápida. Como costumava acontecer com os grandes impérios medievais da Ásia Central, o Seljúcida foi rapidamente palco de intensas disputas internas, o que o tornou mais vulnerável à ameaça dos mongóis. Merv foi alvo das tropas de Gengis em 1221, sob a liderança de um dos filhos do Khan, Tolui. Foram seis dias de cerco até que a cidade cedeu. Um cronista árabe da época, Ibn Al-Athir, nos deixa um relato baseado nos depoimentos de refugiados da cidade. Segundo ele, os soldados sobreviventes de Merv, responsáveis por resistir tão bravamente aos invasores, foram trazidos à presença de Gengis e executados sem mais delongas na frente de outros prisioneiros. Os moradores ricos capturados foram mortos mais lentamente; foram primeiro espancados e torturados até que revelassem onde estavam escondidas todas as suas posses mais valiosas. A cidade então foi incendiada, incluindo o túmulo do Sultão Sanjar (que antes seria escavado em busca de tesouros). Os mongóis teriam contado os mortos, chegando ao inacreditável número de 700 mil. Evidentemente, com a história sendo contada por um árabe, sem uma versão imparcial ou uma do lado mongol para se buscar um equilíbrio, e ainda por cima sem que Al-Athir tenha sido uma testemunha ocular do ocorrido, é muito possível que o relato tenha sido exagerado. Porém, há uma verdade incontestável: como ocorreu em várias cidades atacadas pelos mongóis na Ásia Central, Merv nunca se recuperou plenamente. Seu status de capital nunca foi retomado. Seu renome como uma das grandes cidades da civilização islâmica, sim, e talvez justamente por isso, por atiçar o imaginário, renasceu.
O fim, desta vez definitivo, veio no século XVIII. Naquela época, Merv era parte do império xiita da Pérsia, mas por sua posição geográfica se tornou peça importante da expansão territorial dos reis de Bukhara. Em 1795, o emir de Bukhara Shah Murad Beg, um sunita, tomou uma decisão drástica para evitar que ela pudesse ser anexada novamente ao império xiita do sul. Ele destruiu toda a cidade, inclusive o dique no rio Murghab que levava água a Merv. Paralelamente, decidiu deportar toda a sua população, umas 100 mil pessoas, todas ou quase todas xiitas, para o território do emirado, ao norte. Enfrentando resistência ao tentar se integrar com os sunitas locais, essa população se espalhou, buscou cantos remotos, passou a esconder suas raízes. Foi a origem da comunidade chamada até hoje no Uzbequistão de ironis, talvez a origem do mausoléu de Ali que visitei na vila de Gazgan, perto de Nurata.
Deveria eu permanecer desconcertado diante das ruínas de Merv e da memória de seus mortos, ou deveria desprezá-las com um triste dar de ombros porque essa era apenas a forma como o mundo era 700 anos atrás? Por mais que entenda a reflexão de Geoffrey Moorhouse ao ver estas ruínas, não consigo dar de ombros ao ver os restos de Merv. O mundo era assim há 700 anos, sim. A história, a lenda, e o cenário de "cupinzeiros" que formaram os dias de glória deste colosso arqueológico tornam, porém, qualquer indiferença impossível para mim.
Vejo uma foto colocada no salão do mausoléu do Sultão Sanjar para ilustrar o processo de restauro. É assustador ver como este prédio glorioso estava antes dos soviéticos. As primeiras fotos do complexo são de por volta do início do século XX; uma delas mostra que a cúpula havia desabado, tudo estava em péssimo estado. O processo de reconstrução é tão complicado que já dura décadas e talvez dure muitas mais. Os primeiros trabalhos de recuperação, aparentemente, foram feitos ainda na década de 1930. Algumas das obras modificaram a estrutura interna do mausoléu, o que é lamentável. Apenas torço para que o mausoléu não seja um dia tão artificial que perca o respeito que seu passado merecidamente lhe atribui.
Além do mausoléu do Sultão Sanjar, há tanta coisa para se admirar nos cerca de 3,5 quilômetros quadrados de Merv que passamos, eu e o pobre F (com uma paciência penitente de me acompanhar em cada monumento) mais de cinco horas passeando pelo sítio. Virando pedras em busca de porcelana antiga. Tirando fotos. Encontrando maravilhas históricas que só podem ser reconstruídas na cabeça.
A ruína de Merv na verdade são cinco, cada uma delas chamada Qala. As Qalas são núcleos fortificados, cercados por muralhas, cada um deles ligado a um período histórico específico. A Merv persa aquemênida (do império de Ciro e Cambises) sobrevive na fortaleza Erk-Qala. Construída por volta do século VII a.C., é hoje um círculo alto de terra batida, que constitui sua antiga muralha, com uns 600 metros de diâmetro. Quase tudo, no círculo em si e dentro dele, é de uma terra tão compactada e curtida pelo Sol que não há nem vegetação rasteira, com exceção de em seu centro, onde se acumula um pouco de água. Sua aparência evoca o impacto de um asteroide. A sensação que me causou foi de estar visitando um local fora do planeta, uma cratera lunar. Tão pequena, Erk-Qala está inteiramente integrada à muralha norte de outra cidadela ancestral, Giaur-Qala, erguida a partir do período do Império Selêucida e então crescendo nos séculos seguintes, se tornando depois o centro nervoso da administração persa sassânida (séculos III-VII). Estudiosos são capazes de identificar nos muros as partes erguidas e reforçadas por cada império como se lessem os círculos concêntricos de um grosso tronco para determinar a idade de uma árvore. No interior da muralha sassânida, há montes de terra, fantasmas sem nome, e a área toda parece ser a favorita para criadores de dromedários locais manterem seus rebanhos.
A leste de Giaur-Qala, uma nova cidade foi construída pelos árabes após eliminar os sassânidas, Sultan-Qala. E é exatamente no seu centro, cercado do nada que um dia fora a cidade, que fica o mausoléu do Sultão Sanjar.
Do outro lado de Sultan-Qala, mais a oeste, há outros fantasmas muito interessantes, as fortalezas grande e pequena Kyz-Qala. A grande, erguida entre os séculos VII e XII, tem os restos de um poderosíssimo muro construído de uma forma incomum. São grossas colunas octogonais todas unidas e inclinadas, como se desabando e paralisadas por obra de um mago que as teria ordenado quietas até o nosso tempo. Os tijolos usados para construí-la ainda estão perfeitamente visíveis, e, dentro da fortaleza, sendo restauradas, ainda estão as paredes usadas pelos seus ocupantes. A fortaleza grande Kyz-Qala foi usada pelos seljúcidas como uma intimidadora proteção a sua Sultan-Qala. É difícil encontrar na Ásia Central, quiçá no mundo, algo que se pareça com tais muralhas. Impossível imaginar que catapultas pudessem colocá-las abaixo, de tão grossas que são.
Outros pontos de interesse em Merv não são exatamente fantasmas; eles mantêm sua vida e atraem os fiéis sufis, que vem a eles oferecer suas preces e buscar suas bênçãos. O primeiro deles fica não muito longe das fortalezas Kyz-Qala, perto da entrada principal do sítio. O mausoléu de Mohammed Ibn Zeid é facilmente identificado pela árvore sagrada em sua porta, sufocada por centenas de pedaços de pano em seus galhos, representando pedidos dos visitantes. O complexo em si, que data do século XII, parece ter sido reformado há não muito tempo e tem um aconchegante interior com lindas paredes de tijolos aparentes. Não se sabe ao certo se o sábio enterrado sob o marco de mármore negro em seu interior é mesmo Ibn Zeid, que morreu séculos antes da construção do mausoléu. Ficamos pouco tempo no lugar, guardado ferozmente por um velho turcomeno com uma longa barba, sentado impassível como uma estátua em um banco em um pequeno morro ao lado da entrada. Parecia contrariado com o fato de que os infiéis cristãos estivessem adentrando seus domínios. A uns dois quilômetros dali, no perímetro das muralhas de Sultan-Qala, dois curiosos mausoléus gêmeos parecem ainda mais novos. É supostamente o local onde estão enterrados dois companheiros (Askhab) do Profeta, e é assim mesmo que são chamados, Mausoléus dos Dois Askhab. Totalmente reconstruídos, eles seriam as ruínas mais antigas de Sultan-Qala, tendo sido erguidos ainda no século VII, no início da expansão árabe pela Ásia Central (eles teriam chegado a Merv por volta do ano 650). Os portais dos mausoléus, entretanto, são timuridas (século XV), ecoando os grandes monumentos do Uzbequistão. Pela janela de um dos mausoléus, não muito distante, chama a atenção a colossal muralha de perimetral de Sultan-Qala, ainda de pé, ainda alinhada.
É difícil acreditar que Merv, construída e reconstruída, com suas fortalezas impenetráveis e sua muralha até hoje impressionante, pôde de fato ter caído em uma ofensiva militar. Mas caiu, inúmeras vezes. E morreu. Se já não há moradores na vasta área da ancestral Merv, a uma pequena distância surgiu um vilarejo, Bayram Ali, um subúrbio de Mary. Essas são as bases obrigatórias para qualquer visitante que queira conhecer a lenda de Merv.
Os visitantes, poucos, ficam diluídos na vastidão entre as ruínas. Fomos de carro de um ponto de interesse a outro — sem transporte, como fizemos em Konye Urgench, teríamos demorado talvez o dobro das horas que consumimos no local. Além disso, também em comparação com as ruínas de Konye Urgench, Merv é bem menos frequentada pelos locais, que só se interessam pelo mausoléu de Mohammed Ibn Zeid e pelos dois mausoléus dos Askhab. E essas edificações ficam distantes entre si. Na antiga capital khoresmshah, há uma sequência de pontos de interesse para os sufis, que vêm caminhando desde a entrada até completar o circuito.
Acima de tudo por uma diferença de tamanho, Merv tem uma atmosfera diferente de sua ruína irmã do norte. Uma magia indelével, e uma igualmente indelével eternidade.
Um vazio.
Mas, se já quase não há vida, ao menos, finalmente, há paz.
***
Saindo de Merv, em uma avenida de Bayram Ali encontramos fileiras e fileiras de casas novas, recém-construídas. Pareciam ter sido erguidas no ano passado, no máximo. O asfalto era ruim fora do centro da vila, mas, no centro dela, ele era muito bom e havia excelente sinalização de trânsito. Possivelmente (reflito eu em silêncio), tão à vista dos turistas que vêm a Merv, as casas eram um esforço de marketing do governo para mostrar que a riqueza do país vai além dos limites de Ashgabat. Seja isso verdade ou não, esse esforço habitacional não chega, ao meu ver, aos pés do que os soviéticos fizeram no mesmo sentido. Chegando à periferia de Mary, a caminho do hotel, nosso carro passou por uma grande sequência de prédios residenciais com o estilo característico dos soviéticos, caixas de concreto de uns cinco andares, feias, mas funcionais. O que de praxe se encontra em qualquer cidade da ex-URSS. Não há charme, as edificações estão gastas, precisando de uma urgente reforma e muita manutenção, mas as pessoas têm um bom teto pelo menos desde o fim do império, há quase 30 anos. Me perguntei se as novas residências em Bayram Ali, brancas e reluzentes, poderiam ter a mesma longevidade. Compartilhei em espanhol com F minha reflexão.
"Eu acho, na verdade, que este governo está fazendo tudo bem", me disse meu companheiro de viagem, novamente semeando um pouco de controvérsia. "O que vejo é muito dinheiro sendo investido. Casas novas, ruas asfaltadas, até os palácios em Ashgabat. O dinheiro está sendo usado no país. O povo está vendo os efeitos dele. Em países da África, o povo não vê nada dele, nenhum investimento, tudo é roubado."
Balancei a cabeça em concordância, não queria debate, queria apenas harmonia com F. Dentro de minha cabeça, retruquei: "Em um país riquíssimo, como é o Turcomenistão, em que bilhões e bilhões são produzidos pela exportação de gás, alguns trocados desse total são usados para construir casas para mostrar que 'existe investimento' no país. Será o gasto proporcional ao que o governo fatura? O povo não é trouxa. Em troca desse 'investimento', qual é o preço que o povo tem que pagar? A ausência de liberdade, a ausência de democracia. Não será esse preço alto demais? E os palácios, construir para os mandarins do governo residências deslumbrantes na capital é um 'investimento' válido no país?"
Como mato crescendo sobre os prédios soviéticos de Mary, outra coisa voltou a me chamar a atenção — muitas, muitas antenas parabólicas. Havíamos visto isso no mais inusitado dos lugares, a vila de Erbent, no meio do deserto do Karakum. Aqui, a quantidade era multiplicada por cem, ocupando todo o telhado de vários prédios. "Perceba", disse T, nosso motorista, em russo, "estão viradas totalmente para um ou para outro lado, não há meio termo. Um lado é para pegar a TV da Turquia, via Azerbaijão, do outro lado do Cáspio. O outro lado, é para pegar a TV russa, via Uzbequistão e Cazaquistão." Eu havia visto um pouco da TV turcomena em um canal de TV a cabo na minha visita a Talas, no Quirguistão, em 2012. Trata-se de uma sucessão de programas de dança e música folclóricas e de propaganda do governo. Todos os canais. É compreensível que a TV nacional não goze de muita popularidade. Não é possível que as autoridades vejam essas parabólicas com bons olhos, mas talvez tolerem essa pequena rebeldia dos turcomenos pensando no que ocorreria se lhes fosse retirado esse pouco, muito pouco, circo eletrônico, essa possibilidade tão limitada de fugir da realidade. A raiva que sentiriam. Imagino como essa raiva poderia se transformar em uma faísca, e a faísca, numa explosão horrorosa, fazendo voar sangue por todos os lados.
No hotel em Mary dava para assistir, mas não muito bem, o canal de TV estatal Altyn Asyr, ou "Era Dourada", a nomenclatura usada pelo governo para se referir à atual fase histórica do Turcomenistão (um nome aliás muito polivalente no país: é usado para identificar a emissora, um jornal, um shopping center, uma operadora de celular, uma cidade... até um time de futebol). Liguei a TV para ver um pouco esse canal antes de dormir.
Primeiro, o noticiário. Duas reportagens longíssimas, de mais ou menos oito minutos, mostrando exclusivamente imagens de fábricas. Os repórteres responsáveis sequer deram as caras. As matérias pareceram abordar a questão da produtividade e do uso de novas tecnologias. Também evidentemente falavam de metas do governo para este ano, ou talvez das metas para o atual período de cinco anos (seguindo a tradição soviética), e como os operários, gloriosamente, estão se esforçando para bater essas metas. Legados históricos que permanecem.
Terminada a aparente ode ao Plano Quinquenal, apareceu a linda apresentadora, uma senhora com seus 30 anos usando a tradicional tiara imensa coberta com um véu, e trajando um vestido típico, com seu lindo bordado na gola. Propagandas vieram a seguir, uma após a outra, sem parar, longos minutos, infinitos minutos, promovendo exclusivamente dois livros, os dois escritos pelo presidente. Um de cada vez. Primeiro, exibe-se a capa do primeiro livro. Depois, com a câmera exibindo apenas o livro, folheiam-se as páginas, destacando trechos, ilustrações. Para tornar tudo menos entediante, no fundo é usada uma trilha sonora dramática, música instrumental, emocionante, triunfal, que poderia ser encaixada no ápice de um filme de aventura. Enquanto isso, a imagem do livro na tela flutua, de cá para lá e de lá para cá, folhas sendo folheadas, dando dinamismo. Até mesmo a página do índice do livro ganha tempo de exibição. Depois, vem o mesmo para o outro livro. Caio no sono.
Quando acordo, é hora de jantar e saio para encontrar um restaurante. Como em outros países centro-asiáticos, é comum que os restaurantes tenham no salão uma TV ligada mostrando... videoclipes. Costumam ser de canais russos, com as músicas todas em russo. Um tremendo contraste com os programas de músicas folclóricas do canal Altyn Asyr: os videoclipes russos repetem o universo dos rappers e das mulheres hipersexualizadas dos videoclipes americanos. Que mistura na cabeça dos turcomenos e ainda mais das turcomenas, pressionadas de todos os lados para observar as regras de vestimenta tradicional.
Tanto em Ashgabat quanto em Mary, nos hotéis em que me hospedei, os canais russos estavam disponíveis e com boa imagem. Aliás, em Ashgabat, só era possível assistir no quarto do hotel canais russos na TV, nada dos canais turcomenos. Em Mary, a única opção turcomena era o Altyn Asyr. E pegando mal.
O soft power russo se mantém vivo, e muito, no Turcomenistão, apesar de todo o nacionalismo da "Era de Ouro" turcomena.
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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
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Thursday, 22 June 2023
Novas Fronteiras (XXIX) - Mary, Turcomenistão
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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.
27/8/2018
"É um caminho duro", disse T. Suava em grossos rios que se misturavam com a poeira do ar e enlameavam suas têmporas.
Pulávamos entre um buraco e outro, sem parar. T não parecia inclinado a ir mais lentamente. Conhecia bem o caminho e era evidente que não tinha grande prazer em percorrer a distância, mas talvez, sim, prazer em manter a alta velocidade. "É longe, não temos tempo", disse.
E depois disse de novo.
Gonur-Tepe apareceu após 2h30 de carro pelo deserto a partir da cidade de Mary, no sudeste do Turcomenistão, a cerca de 300 km de Ashgabat. Para chegar ao sítio arqueológico, passa-se pelo menos uma hora driblando dunas. O caminho é quase inteiramente off-road. Ele desaparece e reaparece aleatoriamente de acordo com o vento, algo muito semelhante ao que acontece com o caminho pelo leito do Mar de Aral de dias atrás. Esse acesso a Gonur só é mantido aberto pelos carros que se aventuram a levar turistas e curiosos, que, sem dúvida, precisam de muita teimosia para não desistirem no caminho.
Na chegada, uma casinha nos esperava. No meio do nada. Havia um toldo para deixar o carro na sombra e um caseiro, o único humano em léguas. Uma placa. Sim, este é o local. O sol estava horroroso, fortíssimo.
O caseiro e seu cachorro ruidoso pareceram muito felizes em nos receber. O senhor falou em turcomeno com nosso motorista, aparentava não entender nem falar nada de russo. Indicou o caminho, uma trilha ao lado da placa. Não havia sombra nenhuma. Algumas moscas zombavam da minha orelha apenas bem de vez em quando, preguiçosas em fazer o trabalho de me incomodar nesse ar escaldante. Ajeitei o chapéu. No caminho da trilha, já via as ruínas.
Gonur-Tepe é um sonho. O sonho de um só homem, um arqueólogo soviético de origem grega, Viktor Sarianidi. Ele passou a maior parte de sua existência nesta terra inóspita, torrando a pele, sendo cegado pela luz e asfixiado pela poeira, para trazer à vida um dos maiores assentamentos da Era do Bronze em toda a Ásia Central, quiçá no mundo. São cerca de 550 mil metros quadrados de ruínas.
Sarianidi, um sujeito com bigode e ar sonhador, parecia à primeira vista um daqueles pescadores de ilhas gregas, relaxados com a vida e com o universo, em busca de seu peixe diário nas águas azuis do Egeu. Que estranho que com esse jeito fosse parar tão longe do oceano para pescar um peixe tão especial. Foi o responsável pela descoberta do sítio nos anos 1950. Neste local um dia passava um rio, o Murghab, que permitiu a criação do grande assentamento, erguido, ao que indicam os estudos, entre 2400 e 1600 a.C. No entanto, o local onde fica o sítio teria sido ocupado primeiramente a partir de 7000 a.C., e os primeiros colonos deram início à agricultura nas margens do rio. As escavações começaram na década de 1970, e Gonur-Tepe foi identificado como parte do Complexo Arqueológico Margiana-Báctria, também conhecido como "Civilização do Oxus", uma das inúmeras que surgiram na Ásia na Era do Bronze. Foram descobertos, no local, três núcleos de construções. O principal, que seria o centro da cidade ancestral, foi apelidado de "Gonur Norte": fortificado, em formato elíptico, o assentamento abrigava um palácio, casas e templos. O palácio tinha uma vasta despensa e câmaras diversas, entre elas possivelmente uma sala do trono para os monarcas locais. O segundo núcleo era um imenso cemitério, com mais de 3 mil tumbas, atestando a dimensão da cidade em seu auge, e o terceiro, "Gonur Sul", teria sido habitado depois de Gonur Norte.
Seguindo pela trilha, eu e F nos vimos em um labirinto de passagens escavadas, ainda quase sem sentido, quase terra sem forma, e passagens reconstruídas. Logo nos separamos; fui por uma muralha dentro da área reconstruída e fui parar em Gonur Norte. Em questão de um minuto, perdi F completamente de vista, dada a imensidão do sítio.
Sarianidi encontrou diversos tesouros em Gonur, alguns de grande valor material e, outros, de grande importância científica. Copos e potes de ouro e prata, um mosaico colorido mostrando o que parece ser um leão alado, um adorno de ouro para espadas. Achou câmaras onde aparentemente se realizavam sacrifícios, humanos e animais. Ele também arrancou da terra esqueletos de cavalos. Conta-se que os esqueletos intrigaram Sarianidi, já que até então não havia indícios de que o animal tivesse chegado à Ásia Central tão cedo, na época de Gonur. Logo, o arqueólogo pôde desenvolver uma teoria de que os assentamentos no Murghab se originaram de ondas migratórias vindas do levante e da Ásia Menor, onde o cavalo, sim, estava presente. Tal teoria se chocou com outra que indicava que o assentamento teria se originado de fluxos migratórios vindos das estepes ao norte, visto que em Gonur foram encontrados fragmentos de um tipo de cerâmica encontrada nessas estepes. A discussão científica ficou no ar, mas, se há algo presente em abundância no sítio são fragmentos de potes — copos, cálices e ânforas, todos feitos de argila. É impressionante: eles estão em toda a parte, alguns quase inteiros, alguns semienterrados e tentadoramente à mostra, deixados lá por Sarianidi para ajudar o visitante a viajar no tempo e ver mais facilmente o que o complexo representou. Os mais chamativos fragmentos são de fato as grandes ânforas, usadas para guardar azeite, água e grãos dentro do palácio. Em algumas delas, é possível ver desenhos, padrões geométricos decorativos. Alguém, há milênios, muito antes de Penjikent e em outros sítios arqueológicos antiquíssimos desta terra, fez essas marcas agora esquecidas no sol.
Em alguns desses potes foram identificados tentadores traços de substâncias narcóticas, como ópio e maconha. Tais traços indicam que os objetos eram usados em cerimônias rituais associadas a uma das mais antigas religiões, o zoroastrismo. No local, foram também encontrados indícios da construção de templos de fogo associados à religião. Sarianidi acreditava que Zoroastro poderia teria nascido em um dos assentamentos da civilização da qual Gonur fazia parte. O sítio então poderia indicar um ponto de partida para a religião, que primeiro teria aparecido na civilização à beira do Murghab, depois na lendária cidade de Merv (cujos restos são vizinhos a Gonur) e então na Pérsia, ao sul, e no norte, onde ficaria associada com os sogdianos. Novamente, especulações do grego sonhador.
Outra descoberta cientificamente importante feita por Sarianidi em Gonur foram rodas — algumas das mais antigas já localizadas. Parece certo que o objeto que mudou o curso do mundo surgiu no neolítico, mas onde, exatamente, é motivo de debates. Talvez a única certeza é que surgiu na Ásia, em algum ponto de uma vasta região entre a Ásia Menor e a Ásia Central, passando pela Síria, Mesopotâmia e Irã. Sarianidi achou a roda juntamente com esqueletos de cavalos (restos de uma carroça?). Esse conjunto, protegido dos elementos por uma casinha, pode ser visto em Gonur. Que bom que não foi removido para algum museu.
Como em tantos sítios arqueológicos, é muito difícil desenhar na cabeça o que era, exatamente, Gonur. Após uma hora caminhando, minha cabeça já estava dando voltas. O pensamento foi se voltando para outros lados.
Sentei-me em um canto, protegido pelo meu chapéu. Fiquei pensando em Sarianidi. Em pessoas com obsessões estranhas, que não são compartilhadas por quase ninguém ou, talvez, por ninguém. O mundo parece um elemento hostil quando sua paixão se volta para algo que todos ignoram, ou desprezam, ou simplesmente não querem conhecer por que têm outras prioridades. Imaginei o grego: perdido no nada, cavocando a secura, revelando ânforas, tratando de se convencer todos os dias de que seu trabalho era importante. Era e é importante. Mas para quem?
E veio sua morte, em 2013. Uma breve vida de 84 anos dedicada a revelar o oculto por séculos e séculos e séculos.
Compartilho seu isolamento espiritual, intelectual. Sua impotência frente ao tempo.
No horizonte, em todas as direções, terra seca que Sarianidi ainda esperava explorar melhor. Não sei se alguém vai voltar aqui um dia e continuar esse trabalho. Tomara que sim.
E que esse novo arqueólogo, como seu antecessor, se baste com sua admirável paixão.
* * *
Perto de Gonur fica Mary, a capital desta região do Turcomenistão. A cidade, com cerca de 130 mil habitantes, está longe de ser uma pequena Ashgabat. A capital do país parece ser imbatível em todos os quesitos de exagero que pautam o governo do presidente Gurbanguly Berdimuhamedow — monumentos caríssimos sobre temas insólitos, palácios nababescos, avenidas superdimensionadas — o que reforça a minha crença de que o líder turcomeno investe todas suas fichas em transformar Ashgabat no símbolo único da evolução, riqueza e orgulho do povo do Turcomenistão, ainda que às custas de pobreza em outras partes do país.
Tanto em Mary quanto na capital do país há uma abundância inevitável de cartazes com retratos do Arkadag Berdimuhamedow, a propaganda que alimenta seu chocante culto de personalidade. Contudo, em Mary, diferentemente de Ashgabat, não me sinto sendo vigiado o tempo todo por policiais à paisana, o que me deu incentivo para apreciar mais, e mais longamente, o surrealismo de tais obras. Fui caminhar pela cidade. Logo encontrei na avenida principal, na fachada de um prédio que imagino seja uma sede das Forças Armadas, o presidente retratado impecavelmente vestido com farda e quepe, com uma pose de bravura, o perfeito comandante-em-chefe. Em outro prédio do governo, quase em frente, o polivalente líder aparece em outro retrato gigante, desta vez com um franco e cativante sorriso, vestindo terno e gravata, cabelo primorosamente partido e penteado — caso outdoors exalassem aromas, seu perfume de lavanda seria enfeitiçante. Por fim, descendo a mesma via, em frente a uma mesquita gigante, com uma cúpula parecendo um grande ovo de páscoa, Berdimuhamedow aparece em outro cartaz em mais uma persona, a de religioso. Chapéu (é bem visto o muçulmano cobrir a cabeça na mesquita), mãos em gesto de prece, unidas e abertas com as palmas viradas para cima, rosto transcendente. Nada assim vi nos outros quatro países da Ásia Central. O mais próximo disso, o Tajiquistão, decora as ruas com retratos do presidente Emomali Rakhmon, mas eles são menos frequentes e ele não muda sua aparência de acordo com o objetivo do outdoor.
Mas não há apenas retratos gigantes de Berdimukhamedow espalhados por Mary. Há também suas frases, que ressaltam a sabedoria infalível do líder. Pena que não entendo turcomeno. Em uma esquina, há um outdoor com uma grande frase cheia de letras W atribuída ao presidente, impossível de não ser vista pelos motoristas. Em outro outdoor praticamente ao lado (parcialmente coberto por galhos de uma árvore que, se o responsável não a podar logo, na certa corre o risco de ser preso), mais uma.
É simplesmente massacrante. O presidente está realmente por toda parte. Imagino como deve ser nada divertido para um turcomeno, revoltado com seu salário baixo e a falta de perspectivas, ver tanta adulação diariamente. Ainda menos divertido deve ser ter que demonstrar ser um bom cidadão-fã-do-presidente, para todos ouvirem e verem, no dia a dia. Sem ousar reclamar. Afinal, nunca se sabe se o sujeito ao lado é um agente de inteligência de olho em você.
Cansado de ver Berdimuhamedow, decidi me esconder um pouco. Achei um shopping center, um idêntico aos do Brasil — impressionante como a fórmula é replicada com sucesso ao redor do planeta, sempre com ampla aceitação, tornando o mundo mais e mais um lugar entediante e previsível. Escadas rolantes, ar condicionado, lojas requintadas. Uma diferença, e fiquei feliz de ver que havia alguma diferença, são as lindas e chiques mulheres com seus vestidos típicos, longos e com detalhes bordados, e, se casadas, as altas plataformas na cabeça.
No último andar do prédio, como em alguns shoppings brasileiros, ficavam os cinemas. Por curiosidade, foi conferir o que estava passando. Em exibição, hoje, apenas um filme da série Tomb Raider, com Alicia Vikander no papel de Lara Croft, e Taxi 5, um filme de ação-comédia francês (para meu espanto, um filme francês no Turcomenistão? Pelo visto, Hollywood não reina supremo na terra do Arkadag). Evidentemente, dois filmes fantasiosos, adolescentes, bobos. Os dois já haviam saído de cartaz havia muito tempo na Europa, parece que aqui eles chegam com bastante atraso.
Ao lado também havia uma praça de alimentação, bem pequena, com apenas duas opções de fast food: ou pratos chineses ou hambúrgueres. Também havia um restaurante de verdade, com um salão separado, para o público VIP. Lá, estavam tocando nos alto-falantes música clássica com violino. Com meu dinheiro de turista, o restaurante era barato. E tinha comida típica do Turcomenistão e mesas com vista para a avenida. Foi minha escolha, sem dúvida, mas eu estava vestido de forma completamente inadequada para um ambiente tão requintado. Pedi uma mesa torcendo para que os garçons não se importassem com minha roupa empoeirada, que acabara de explorar Gonur-Tepe.
Sentei-me à mesa. Finos talheres de prata. Os violinos logo acabaram e foram substituídos por Celine Dion. Detesto Celine Dion. A decoração era extremamente kitsch — estátuas e colunas gregas, vasos com plantas tropicais vistosas, flores nas mesas. Se esforçam para ser o chique que imaginam ser chique, para os ricos locais que imaginam ter bom gosto. Curiosamente, no menu, o estabelecimento nem tentava ser sofisticado. Entre as opções, além dos pratos turcomenos, pizza e hambúrguer. Fiquei com meu kakmach típico, carne em cubos.
Internet gratuita. Entre um e outro sorriso solicito da jovem estudante que trabalhava como garçonete, felicíssima em treinar seu excelente inglês, mergulhei em meu celular.
Mary, 22h02, 27/8
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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
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Saturday, 17 June 2023
Novas Fronteiras (XXVIII) - Ashgabat, Turcomenistão
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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.
26/8/2018
T, nosso motorista desde que cheguei ao Turcomenistão, já virou um amigo. Hoje seria o dia da despedida dele. Ele havia sido contratado pela nossa operadora de turismo para nos trazer de Konye Urgench a Ashgabat, parando no meio do caminho para ver a cratera de Darvaza. Mas eu e F tivemos uma ideia. Teríamos dias suficientes para ver bem Ashgabat, então pensamos, por que não conhecer melhor a região ao redor da cidade? Chamamos AN, a russa gélida que era, na prática, a chefe do nosso motorista, e fizemos a proposta de que T ficasse um pouco mais conosco, nos levando a alguns lugares interessantes que vimos nos nossos livros-guia.
Embora com russo limitado, e inglês praticamente não-existente, T era um bom falador e sabia se fazer entender bem. Com ele, tive uma rara oportunidade de entender como os turcomenos encararam o regime totalitário no país.
— Concordo com você — me disse T quando conduzia o carro para fora de Ashgabat, para mais perto da cordilheira Kopet Dag, agora claramente visível. — Concordo que o mundo não deveria ter fronteiras. Mas eu me contentaria com menos.
— Menos como? — aticei.
— Já ficaria melhor se tivesse menos "não pode isso, não pode aquilo". Aqui em Ashgabat, olhe à sua volta. Estão te vigiando, vendo se você está tirando uma foto de prédios proibidos ou não.
Ele ficou quieto um instante e eu também. Depois, ele suspirou e continuou, sem tirar os olhos da estrada.
— Uma vez, eu estava com um turista. Como vocês. Estávamos passando perto de um prédio do governo quando ele tirou uma foto. Os policiais viram ele fazendo isso e saíram perseguindo meu carro. Parei, claro. Eles falaram que o passageiro tinha uma "foto proibida". Eu disse a eles que eu, pessoalmente, não tinha culpa. O turista, claro, deletou a foto da câmera na frente deles. Fomos embora, eu pensei que tinha sido apenas um susto. No mês seguinte, a minha empresa, a operadora de turismo, me ligou. Diziam que havia chegado uma multa para mim. 300 manats! Recebi uma multa de 300 manats por algo que não tive culpa nenhuma! Nós, os guias, avisamos os turistas sobre as regras. Por que eu tenho que pagar?
— Me lembra o que meu guia me disse uma vez no Uzbequistão quando eu visitei a primeira vez, em 2001. Ele me disse: "Você é turista, você pode fazer algo errado, mas vai embora amanhã. Eu vou ficar aqui e sofrer as consequências".
— Exatamente. Mas isso é errado. Ganhamos tão pouco, e, ainda por cima, tem isso. Por quê?
Mas não era apenas os excessos da polícia que incomodavam T. Durante o caminho, o motorista começou a me perguntar mais sobre a vida na Europa. A cada descrição de Londres, um sorriso sonhador tomava seu rosto, se desfazendo logo em seguida.
— É muito difícil entrar aqui no meu país. E também é bem difícil sair. Isso é tão ruim... Não deveria ser assim. Olha o Uzbequistão. Estão abrindo. Aqui, não.
Encontrei o mesmo questionamento dias antes, em Konye Urgench, conversando casualmente com um turcomeno no hotel. E, já em Ashgabat, após o anoitecer, em um parque pelo qual eu e F passamos ao voltar para o hotel depois de jantar, um casal percebeu que nós éramos estrangeiros e veio puxar conversa. O homem falava inglês. "Gostaríamos de viver no exterior, mas é difícil para nós, turcomenos. É muito, muito caro. O país é fechado demais, precisamos de visto para ir para praticamente qualquer lugar. Temos que pagar uma taxa para sair. As passagens são caras. Eu tenho sorte; já viajei bastante e continuo viajando. Mas, para o cidadão, em média, isso é impossível", explicou ele.
O isolamento do país vem se sustentando desde o governo de Saparmurat Niyazov, o Turkmenbashi, o primeiro presidente do país após o fim da URSS. É inegável que se trata de algo que vem do gosto de Niyazov, que morreu em 2006. Era sua visão para o destino do Turcomenistão. Certamente outras políticas poderiam ter sido adotadas pelo país após a independência, aproximando Ashgabat de outras nações e grupos, como ocorreu com outros países que fizeram parte da União Soviética. Mas isso não ocorreu, e o país tomou um caminho completamente diferente de seus vizinhos.
Trata-se de algo que está intimamente ligado ao status oficial de neutralidade adotado por Niyazov após a independência como o principal pilar da política externa turcomena. O Turcomenistão se tornou, em 1995, o único país do mundo a ter esse status oficialmente reconhecido pela ONU. Outros países adotam a neutralidade em suas Cartas Magnas ou em declarações formais de seus líderes, mas está claro que a neutralidade turcomena era tão importante para Niyazov que ele achou necessário levá-la ao conhecimento das Nações Unidas. E, desde então, o Turcomenistão tem sistematicamente se recusado a participar de diversas organizações bilaterais, particularmente as que incluem assistência militar mútua, sempre ressaltando o seu status neutro como motivação. Por exemplo, o Turcomenistão nunca ratificou a carta da Comunidade de Países Independentes, a organização multilateral que foi considerada a herdeira da URSS, formada por boa parte dos ex-países soviéticos após o fim do colosso comunista. Os turcomenos permanecem como estado associado, sem serem membros. O país é apenas observador no Conselho Túrquico, a organização liderada pela Turquia que busca unir todas as nações com tal identidade. Nunca foi membro da Organização do Tratado da Segurança Coletiva, a aliança militar liderada pela Rússia; da Organização para Cooperação de Shanghai, um organismo multilateral asiático liderado pela China e pela Rússia; ou da União Euroasiática, tão promovida por Moscou.
A explicação para tal ferrenha neutralidade — que foi mantida sob o presidente Gurbanguly Berdimuhamedow — é que ela seria uma característica própria, histórica dos turcomenos, o que é discutível (acima de tudo porque a existência pré-URSS de um povo "turcomeno" único, além de divisões tribais, não é um consenso). A independência entregou a Niyazov um Turcomenistão que, como os demais da Ásia Central, não tinha uma clara visão do que significava ser um cidadão do país. No período pré-soviético, os turcomenos eram membros das diversas tribos do país, os Teke, os Yomut e outros. Os soviéticos forjaram os turcomenos, deram a eles um status étnico que jamais existira, mas, ao mesmo tempo, criaram a utopia do "homem soviético", uma identidade unificante solidamente ancorada no estado. O fim da URSS destruiu essa identidade e mostrou como a outra era frágil. Com a independência, criar um sentimento de união do povo era vital para garantir a integridade do país, que, do contrário, poderia desmoronar. Isso ocorreu, por exemplo, no Tajiquistão (que viveu uma guerra civil na primeira década após a queda da URSS). Tamanho era o temor (ou paranoia) de Niyazov com o que poderia vir a seguir que ele decidiu se isolar do mundo. E adotar todas as medidas possíveis para criar uma "cultura nacional". Criou isso com a sua visão pessoal, megalomaníaca, excêntrica, até mesmo hostil a estrangeiros, que continua até hoje.
Assim, no processo de construção da identidade nacional que veio após a dissolução da URSS em todos os ex-países soviéticos da Ásia Central, essa política de estado de neutralidade se tornou fundamental. Inclusive, a política ganhou um nome: "Neutralidade Positiva". Na prática, analistas acreditam que, além de reforçar um fator de união do povo turcomeno, Niyazov esperava que a política lhe rendesse valiosos dividendos, mais do que os que obtiveram seus vizinhos da ex-URSS ao rejeitar o isolamento. Teria sido puro pragmatismo. Uma acadêmica, Mariya Omelicheva, assim explicou o cálculo de Niyazov e o que deu errado:
Durante os anos 1990, o status neutro do Turcomenistão permitiu ao governo de Niyazov se livrar de alianças políticas desconfortáveis e acordos econômicos com efeito vinculante que ameaçavam limitar suas alternativas de política externa. Também permitiu ao regime governante reduzir o exército do Turcomenistão e enxugar consideravelmente o gasto militar da república (...) Sob Niyazov, o lado construtivo da "Neutralidade Positiva" era apenas um recurso retórico usado enquanto o seu governo cautelosamente buscava acordos bilaterais e se afastava de laços multilaterais. Isso levou a um quase completo desengajamento do país das relações internacionais e organizações (...)
- Mariya Omelicheva, Eye on the International Image: Turkmenistan's Nation Branding, incluído em Nationalism and Identity Construction in Central Asia: Dimensions, Dynamics and Directions, 2015
Por sua vez, embora Berdimuhamedow tenha decidido manter essa política, o faz de uma forma diferente. Ele passou a usar a "Neutralidade Positiva" como uma espécie de "marca" do país, usando eventos internacionais para promovê-la. O "branding" se tornou parte de uma visão mais abrangente do segundo presidente turcomeno, a de que seu país entrou em uma nova era chamada Altyn Azyr ("Era Dourada"). O interessante é que, mesmo procurando mais contato com o mundo exterior para promover sua marca e assim melhorar sua reputação e atrair investimentos, o Turcomenistão continua isolado. Em resumo: antes, sob Niyazov, o país adotava uma postura de neutralidade que se traduzia em isolamento. Hoje, adota uma postura de neutralidade que se traduz em isolamento e a usa para se promover. Tudo isso, na verdade, seria insustentável se não existisse a imensa riqueza do país em hidrocarbonetos, gás e petróleo, que hoje beneficiam sobretudo a China. Essa riqueza, em última análise, financia o isolamento.
Se em relação ao mundo exterior prevaleceu após a independência o discurso de que a neutralidade e a paz eram características intrínsecas dos turcomenos, internamente havia o risco de narrativas de identidade alheias à oficial estraçalharem o país. Por isso, políticas prejudicando as minorias e, paralelamente, favorecendo a etnia turcomena, sem divisão por tribos, foram adotadas. Logo após a independência, em 1991, Niyazov decretou as medidas que viriam a ser chamadas coletivamente de "Turcomenização". Entre as inúmeras mudanças adotadas estava a exigência de que todos os candidatos a empregos no governo tivessem etnia turcomena. O ensino de russo na rede pública de educação praticamente deixou de existir; o alfabeto cirílico foi abandonado em 1993 em favor do alfabeto latino. A língua turcomena assumiu domínio total. O grau de extermínio da língua e cultura russos no país é notável mesmo comparado com o que ocorreu em outros países centro-asiáticos. Muitos dos russos que viviam no Turcomenistão e chamavam o país de lar há gerações optaram por sair e, segundo levantamentos, a população russa por volta de 2010 havia desabado a um terço do nível pré-independência. Não é à toa que o Turcomenistão é um dos países mais etnicamente uniformes entre todos os da Ásia Central ex-soviética, com a maioria esmagadora de sua população sendo turcomena ou alegando ser turcomena.
* * *
A mesquita mais suntuosa que já vi na vida.
Mármore branco, sinais de ouro por todos os lados. Do chão até o topo da cúpula, 55 metros. Espaço para abrigar 10 mil fiéis. Foram gastos US$ 100 milhões na construção do templo, chamado Türkmenbaşy Ruhy. Inaugurado em 2004, ele lembra, em seu formato e glória, em seu reluzir que sugere ter acabado de ser construído, mesquitas dos milionários países do Golfo Pérsico. Mas tem uma diferença fundamental: além de servir como refúgio para lembrar e louvar Alá, foi erguido para lembrar e louvar o Turkmenbashi, que aqui tem seu mausoléu. Num desrespeito profundo ao Islã, o templo foi profanado pela política. O poder terreno corrompeu o poder supremo de Deus. Frases de Saparmurat Niyazov, tiradas de seu livro Rukhnama ("Livro da Alma"), foram reproduzidas nos minaretes e até dentro do templo, circundando o salão onde os fiéis se ajoelham para orar. É a adoração ao pai do Turcomenistão pós-Soviético em um nível que, mesmo sem ser eu muçulmano, me causa repulsa. Entretanto, ao mesmo tempo que repulsa, não posso evitar sentir deslumbramento com a arquitetura, com o luxo, com o brilho, com as cores, com o tesouro que a construção representa. É contraditório. Uma sensação parecida com a de andar no centro de Ashgabat. Maravilhoso, mas, em última análise, triste e revoltante.
Não esperava que esse experimento do governo turcomeno, sua tentativa de afogar os pensamentos dissidentes usando a riqueza e a suntuosidade, fosse atingir até o Islã. Nesta visita ao vilarejo de Gypjak, onde nasceu Niyazov, eu esperava ver monumentos a ele, seu mausoléu e, claro, mesquitas, madrassas, palácios. Mas não uma mesquita-mausoléu como esta, em que as frases da Rukhnama parecem em pé de igualdade com o próprio Corão. O Islã centro-asiático tradicional incorpora elementos que são alienígenas aos seguidores mais conservadores da Fé. Um exemplo de manifestação desse Islã tradicional é a existência dos mazars, os mausoléus de homens santos sufis, idolatrados por muitos que visitam essas construções para rezar, esperando chegar mais perto de Alá por estar mais perto do local de descanso final desses venerados sufis. Mas em todos os mazars que visitei (como os do sul do Cazaquistão, em 2012), não vi fotos ou retratos dos santos, nem seus dizeres espalhados pelas paredes. Converter a casa de Alá em um exercício de vaidade ou de promoção, como ocorreu na mesquita Türkmenbaşy Ruhy, não me parece correto em nenhuma hipótese do alto do meu limitado conhecimento sobre a religião. Politicamente, contudo, faz todo o sentido. Afinal, o Turkmenbashi em si foi instrumentalizado pelo governo turcomeno para construir a identidade do povo. Essa idolatria se misturou à religião se aproveitando do desconhecimento dos preceitos do Islã (um legado soviético). Tudo agora é identidade turcomena, ou, pelo menos, é o que almejam as autoridades. Para elas, quem não aceita a versão do Islã, oficial, que permite a homenagem a Niyazov no Türkmenbaşy Ruhy, é um potencial insurgente. Religião é poder, e o governo se apossou dela. Além disso, o Islã não-oficial frequentemente é associado pelas autoridades ao extremismo, ao terrorismo, ao que é estrangeiro e quer destruir o país, o que só reforça o isolamento.
Me vem à cabeça a visita que fiz ao mausoléu de Islam Karimov em Samarkand; era uma construção bonita, mas muito mais singela. E não ficava dentro de uma mesquita, ficava fora. Nada nela sugeria que Karimov almejava ser lembrado como um Profeta. É exatamente essa a sensação que tive visitando a mesquita Türkmenbaşy Ruhy. Niyazov, o iluminado grande líder, foi seguido pelo presidente Gurbanguly Berdimuhamedow, que reivindicou para si o título de guardião do povo, ou Arkadag em turcomeno. Será que Berdimuhamedow também almeja ser lembrado como um Profeta quando morrer?
Um sinal, talvez, auspicioso. A mesquita estava completamente vazia durante minha visita. E, dizem, assim costuma permanecer, talvez porque, para muçulmanos praticantes, igualar a Rukhnama ao Corão nunca poderá ser aceito. Mesmo em um regime totalitário como este.
Depois de admirarmos e ficarmos entorpecidos com tamanha megalomania, circulamos pela região atrás de outros pontos de interesse. T sugeriu visitar a ruína da ancestral Nisa. Eu havia ouvido falar apenas vagamente de Nisa — algo que, aparentemente, é inconcebível para muitos turcomenos, afinal, é um dos sítios arqueológicos mais importantes do país.
A cidade, também chamada de Parthaunisa ou Mitradacerta, é um dos mais conhecidos centros do Império Parta, que existiu aproximadamente entre os séculos III a.C e III d.C. Dos partas, sabe-se que, como outros impérios que surgiram na região após a conquista de Alexandre, o Grande (356 a.C.- 323 a.C), tinha uma cultura com forte influência grega, tanto na arquitetura quanto nas artes decorativas. Surgiu como uma dissidência do Império Selêucida, império este fundado por um general de Alexandre. Em seu apogeu, o domínio dos partas se estendia até onde hoje fica o Afeganistão e o Paquistão, no leste; até o Golfo Pérsico, no sul, e o leste da Turquia, no oeste. No norte, suas terras ocupavam a costa sul do Cáspio e o atual Turcomenistão.
A importância dos partas para a história da Ásia Central pode ser vista de várias formas. O império representou a continuidade do processo de helenização iniciado por Alexandre, mas também o primeiro passo na construção de um centro de poder legitimamente centro-asiático, se consideramos centro-asiático apenas o território dos cinco países que faziam parte da URSS na região. Até então, o Turcomenistão era o território de tribos domadas e controladas por grandes forças que vinham de outras partes, como os persas aquemênidas de Ciro, os macedônicos de Alexandre e os seus sucessores selêucidas. Os partas, porém, eram uma tribo local, e, ao se expandirem, levaram elementos de sua própria cultura centro-asiática (como a língua parta), mesclando-os com outros que encontravam no caminho. Talvez, então, possam ser considerados o primeiro império genuinamente local, centro-asiático. Acredita-se que Nisa, localizada perto do berço da tribo, tenha sido uma das suas capitais. Teria sido um centro rico e influente, se beneficiando do comércio que já existia entre o extremo oriente e o Império Romano no que viria a ser a chamada de Rota da Seda.
Estacionamos o carro ao lado de um portão que, por sua vez, ficava ao lado de um terreno com terras altas de barro seco, quase sem vegetação, como é o contumaz no caso de ruínas escavadas da Ásia Central. Uma placa indicava que o sítio havia sido incluído pela Unesco em sua lista de patrimônios culturais mundiais, como ocorrera com Sarazm, que visitei no Tajiquistão. Mas este sítio tem uma diferença em relação ao tajique. Para visitar Nisa são cobrados 30 manats, ou quase US$ 9, enquanto que as visitas a Sarazm e à vizinha ruína de Penjikent têm entrada gratuita. Pagamos, considerando que, mesmo sendo cara para padrões centro-asiáticos, a entrada ainda ficava abaixo dos US$ 10, nada absurdo para nosso orçamento.
Os estudiosos acreditam que Nisa abrigava, além de um palácio real, templos e um mausoléu dos reis partas. Era incomum em vários sentidos se comparado a outros assentamentos helenísticos. A cidade tinha, por exemplo, um perímetro pentagonal e era cercada por uma muralha poderosíssima, feita de argila batida e com largura impressionante, estimada em até 9 metros, ainda visível na forma da elevação no terreno ao redor dela (ao lado da qual paramos nosso carro). Não apenas o muro era superdimensionado; outras edificações encontradas no local eram grandes demais para o padrão da época, assim como as estátuas de argila que foram encontradas. Os objetos escavados reforçam a impressão da imensa riqueza dos reis que aqui moraram. Em Nisa, foram encontradas as primeiras estátuas de mármore na Ásia Central, além de um conjunto inestimável de ritões, cálices no formato de chifres, ricamente decorados, para o consumo de vinho. Um cronista grego dos séculos II e III, Filóstrato, eternizou em uma tentadora descrição a exuberância do palácio real:
O teto estava coberto de cobre e tinha um brilho forte. Dentro, havia aposentos para homens e mulheres e pórticos reluzindo com ornamentos de prata e ouro. Pratos de puro ouro foram incrustados nos muros como retratos. Havia tapeçarias usando motivos da mitologia grega e cenas das guerras greco-persas. Um aposento para homens tinha o teto imitando o céu. Era completamente coberto de azulejos azuis (...)
- Filóstrato, Imagens (citado em Edgar Knobloch, Monuments of Central Asia - A Guide to the Archaeology, Art and Architecture of Turkestan, 2001)
O auge dos partas veio por volta do primeiro século antes de Cristo. Foi nessa mesma época que Nisa também começou a se despedir da história, sendo atingida por um terremoto na primeira década a.C. Um novo assentamento, chamado de Nova Nisa, foi logo construído não longe da Nisa dos reis partas, perdurando até a idade média. Mas a capital helenística seria abandonada em definitivo com a queda do império no século III. Os partas seriam sucedidos pelo Impêrio Sassânida, o último grande império persa antes da chegada do Islã.
As palavras de Filóstrato em nada me ajudaram a encontrar um sentido nos esboços de argila à minha frente. Nisa, se um dia foi gloriosa, exige uma igualmente gloriosa imaginação para que seja possível enxergar seus palácios e muralhas. Caminhamos pelas ruínas esperando ver alguma placa informativa para ajudar a colocar em ordem o quebra-cabeças de paredes e câmaras restauradas e reconstruídas no terreno de cerca de 700 metros quadrados. Elas existem, mais são pouquíssimas e quase inúteis, puramente descritivas, sem apresentar o contexto geral da ruína. O que se vê é uma sequência de aposentos escavados de barro no terreno árido, sem teto, varridos pelo vento, e completamente sem visitantes ou mesmo administradores.
Passamos uns 20 minutos circulando entre as paredes lisas, espiando o céu azul entre um muro e outro. Depois, mais meia hora apenas caminhando sobre o que fora um dia a colossal muralha, espiando as lindas montanhas vizinhas da cordilheira Kopet Dag, nem olhando mais direito para a escavação. Na minha cabeça, apenas repetia que um local como a velha Nisa poderia ser uma atração turística fantástica, imperdível, com o tratamento correto para receber visitantes. Mas não como está. Ter acesso a mais informações sobre as câmaras escavadas e reconstruídas para entender o que eram na antiga cidade, ou a um pequeno centro de visitação com alguns objetos resgatados da ruína (todos levados para museus), ou ao menos a um folheto em inglês com o básico sobre Nisa, seria algo natural tendo em vista que uma entrada foi paga.
Nisa é um bom exemplo de como o Turcomenistão encara o turismo. O esperado pelas autoridades é que o visitante se entregue a excursões caras com guias experientes que lhe expliquem tudo o que lhe for mostrado. Turistas sem guias: ou se preparem bem, com antecedência, para tudo o que irão ver ou corram o risco de terem uma experiência frustrante.
Ashgabat, 26/8, 22h
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