Sunday 1 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (I): Bishkek

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26/8/2012

Fecho os olhos.


A imagem surge. O verde intenso da Inglaterra. Em arbustos e árvores de verão, molhados, encharcados, gotejando de chuva.

O verde desaparecendo aos poucos. Entra o ocre. A poeira. O calor. O deserto, arbustos rasteiros, uma luz intensa.

E depois, vejo as montanhas, altas, altíssimas, lá no fundo, além da poeira do deserto.


Abro os olhos.


Duas pessoas checaram meu passaporte durante a longa jornada Birmingham-Londres-Berlim-Istambul-Bishkek, que me devolveu à Ásia Central em quase 24 horas de viagem. As duas checagens ocorreram no aeroporto de Tegel, em Berlim. Os dois funcionários da Turkish Airlines fizeram a mesma coisa, procuraram meu visto quirguiz. Folhearam lentamente o documento. Um deles enunciando, em voz alta, cada visto que encontrava. "Cazaque"... breve silêncio. "Uzbeque"... breve silêncio. "Tajique"... breve silêncio. "Ah, quirguiz!"

Me senti orgulhoso em ambos os casos. Foi um sufoco conseguir cada visto, em Londres. Longos meses indo e vindo de consulados, contatos telefônicos, tirar fotos, gastar dinheiro e mais dinheiro. Enfim! Todos no passaporte! Vê-los só pode ser um presságio de coisas boas. De novas aventuras. De um medo bom, gostoso, do desconhecido.

Cheguei a Bishkek, capital do Quirguistão, no mesmo horário das duas vezes que visitara o Uzbequistão: de madrugada, 3h da manhã. Boa impressão - pouca burocracia. Cheguei, peguei uma fila, mostrei meu passaporte a um policial, ele carimbou, peguei minha mala e saí para o saguão do aeroporto Manas. Nada de formulários malucos para preencher ou comprovantes para guardar durante minha estada. Não quiseram olhar dentro da minha bagagem! Abri um largo sorriso. Que se foi rapidamente.

No saguão, procurei pela motorista que eu havia combinado previamente que iria me receber e me levar para o hotel. O saguão de desembarque - também como ocorrera em minhas viagens anteriores à Ásia Central - estava lotado de taxistas farejando o cheiro de dólares dos turistas. Me assustou bastante o fato de eu ter ficado à mercê daquela corja. Cansado da viagem, cansado por causa do horário. É traumatizante, ainda mais sem saber falar a língua local. Lembrei-me do caso de minha visita a Bukhara, em 2003, quando o ônibus me deixou em uma estrada no meio do nada no romper do dia e fiquei cercado de taxistas agarrando meus braços. Os taxistas te abordam várias vezes, falam russo e inglês, tentam te vencer pelo cansaço e quase me venceram. Estava com a mão no dinheiro quando minha motorista - uma calma e simpática senhora de uns quarenta anos - apareceu se desculpando, dizendo ter se atrasado para sair de casa. Fomos correndo para o carro deixando os taxistas resmungando.

Deixamos o aeroporto e seguimos em direção ao centro num Lada. A capital quirguiz me recebeu em um breu quase completo. Atravessamos um trecho - que julguei eu ser um campo agrícola - completamente às escuras, apenas com a luz dos faróis do carro. Já na cidade, postes com luz amarelada acenavam uns aos outros de grandes distâncias. Saímos de uma avenida mais larga, entramos numa ruela novamente sem iluminação e com asfalto irregular. Dando pulos no banco do carro, chegamos ao hotel, que me pareceu um perfeito esconderijo. No escuro, ficamos tocando a campainha até uma moça abrir o portão. Nada de letreiros coloridos indicando que se tratava de um hotel. Era uma casa como qualquer outra.

Lá dentro, a moça confirmou minha reserva e me deu algo mais do que eu esperava pela fortuna de US$ 35 por noite. Esperava um quarto de hotel três estrelas. Ela me deu praticamente um apartamento: sala de estar com sofá, quarto, banheiro, piso laminado de madeira novo em folha e uma deliciosa cama de casal. Tudo impecavelmente limpo e cheiroso. Praticamente um palacete. Liguei o ventilador para driblar o calor de 27 graus. Dormi como um anjo.


* * *

No dia seguinte, acordei às 11h, tomei meu café da manhã com dois ovos fritos e chá preto e fui caminhar. O hotel do lado de fora era uma linda casa - mais para um casa de subúrbio americana do que para qualquer coisa centro-asiática - escondida atrás do portão. Abri a porta de metal, fechei, respirei fundo vendo a rua esburacada e as árvores. Fui dar meu primeiro passo, olhando para o Sol que me ofuscava.

Tropecei feio, torcendo o tornozelo e ralando o meu joelho direito. Sangue.

Levantei-me, ignorei a dor, deu preguiça de voltar para o quarto e para o kit de primeiros socorros. Pensei rapidamente na possibilidade de uma infecção ou mesmo tétano abreviarem minha viagem (ou minha vida). Concluí que não podia perder um segundo e aquilo era só uma raladinha. Duas gotinhas vermelhas escorriam em direção a meu pé.

Vermelho. Comparando com outras cidades da ex-URSS que eu conhecera, Bishkek me espantou. Logo a três ou quatro quadras do hotel: eu nunca havia visto tantos resquícios da era Comunista. Após todas as viagens a esta parte do mundo, finalmente encontrei uma estátua de Lênin. Uma estátua imensa, imponente, de metal prateado, com o Lênin em sua postura tradicional de professor, apontando para um caminho perdido há 20 anos. Depois descobri. A estátua estava antes na principal praça da cidade, a praça Ala Too. Hoje, está atrás dela, parece que tentaram esconder um pouco. Mas foi um esforço tímido. O líder ainda está bem no centro de tudo na capital quirguiz, em uma praça em frente a um prédio do governo.

Bem perto, na mesma praça, encontro também pela primeira vez uma estátua de Marx e Engels. Curiosamente, os dois cientistas políticos conversam sentados em frente a um prédio que, ainda guardando sinais da arquitetura soviética - uma foice e martelo na fachada e um mastro com uma estrela no seu teto - , hoje é ocupado por nada menos que a Universidade Americana da Ásia Central. O que as antigas autoridades do PC achariam disso?

O dia foi de um Sol glorioso e de calor beirando o insuportável. Tentei aproveitar ao máximo as sombras, o que não foi difícil. O centro é bem arborizado, um oásis cheio de praças. Uma delas, para minha alegria, tinha um fantástico bebedor com água gelada jorrando sem parar, e uma fila constante de cinco ou seis pessoas. Fiz duas visitas durante o dia. Nas duas, praticamente tomei um banho - água na nuca, no peito, no rosto.

Não comi nada a não ser o café da manhã no hotel. E a bebida foi a água da praça e umas duas latas de Coca-Cola. Durante o dia, porém, fiquei curiosíssimo em relação a uma bebida vendida praticamente em todas as esquinas por senhoras entediadas com guarda-sóis. A bebida industrializada da empresa Shoro, chamada maksym, custava a miséria de 8 soms (cerca de US$ 0,10) um copinho pequeno. Cor de café com leite. Pensei: se eu não gostar, jogo fora, não será nenhum prejuízo.

De fato, beber aquilo foi uma das piores experiências que já tive na Ásia Central, e acabei jogando metade na sarjeta. O maksym, salgado, feito com malte, me fez imaginar que eu estava degustando uma poção à base de algum tipo de secreção digestiva. Do lado positivo, me lembrou, por ser salgado, o ayran turco, o doogh persa. Mas só me lembrou, porque o gosto é bem diferente e repugnante. Talvez eu tenha tido azar e tomado um estragado. Já planejei dar uma segunda chance à bebida numa futura oportunidade - quando voltar para Bishkek, em outubro, para os meus dois meses de estudo de russo.

Pelas esquinas, entre os parques, nas avenidas longas, há vários locais vendendo deliciosas samsas (folhados triangulares com recheios de carne, frango, queijo) como as que encontrei em Almaty, churrasco grego e outras bebidas locais que, por ora, decidi deixar de lado: bozo, kumiz. Há muita coisa diferente por aqui. Até os pássaros. Cantam alto com trinados que nunca ouvi antes.

Amanhã, vou à praia. Uma praia a milhares de quilômetros do mar.

Bishkek, 27/08/2012, 7h53

Leia aqui o próximo capítulo




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2 comments:

  1. Rafael, tell us about drinking a coke in front of Lenin...

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  2. Rafael, não entendi pelo seu relato se vc se comunica com as pessoas em russo com facilidade, se todos falam russo corriqueiramente ... cartazes, avisos estão em russo ?...
    Vc conseguiu conversar longamente com pessoas do povo ? veremos nos próximos relatos...

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