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27/08/2012
As montanhas da serra Ala Too, sem árvores, bege esverdeadas, coroadas com neve nos pontos mais altos mesmo neste auge do verão, cercam Cholpon-Ata. Este é um dos locais mais surreais da Ásia Central. Aqui funciona um movimentado balneário frequentado por famílias de russos, cazaques e quirguizes. Os cazaques até alguns anos atrás ainda podiam vir por trilhas atravessando as montanhas - logo ali, do outro lado delas, fica a Almaty que visitei em abril.
Todos vêm para cá para ficar hipnotizados com o lago Issyk-Kul, um leviatã de águas azuis e verdes, muito transparentes, alimentadas por rios, pelo degelo e por fontes termais. À distância, vindo de Bishkek, o lago aparece no horizonte de repente, após minha lotação passar por uma serra. Aparece como uma grande faixa azul. Em vários trechos, não há nada à beira dele a não ser vegetação rasteira. O Issyk-Kul, o segundo maior lago de montanha do mundo (só perde para o lago Titicaca na Bolívia), fica a cerca de 1,6 mil metros de altitude e chega a uma profundidade de quase 700 metros. Estende-se por quase 180 km, ocupando o nordeste do Quirguistão. Curiosamente, mesmo no mais tenebroso inverno, jamais congela. Trata-se do resultado de sua alta salinidade e das fontes termais que o alimentam. Daí seu nome: "lago morno", a tradução literal de Issyk-Kul.
Testemunhou séculos de violência - mongóis a caminho de suas conquistas, chineses, tribos turcas. Esse seu passado de envolvimento em guerras contrasta com a paz que todos sentem ao vê-lo hoje. Nenhuma onda, só marolinhas, uma superfície de poucas rugas, a água até quase a perder de vista, só muito distante, em dias muito claros, talvez você consiga ver as montanhas do outro lado.
Há outros balneários, mas sem dúvida Cholpon-Ata é o mais movimentado. Há dezenas de barraquinhas vendendo comida e artesanato a caminho da praia; casas alugando quartos, hotéis e restaurantes ao redor da estrada - que liga Bishkek a Karakol, a maior cidade no leste, quase na China. Também há lojas vendendo boias coloridas. O estilo de todo local praiano, uma paulista Praia Grande, em escala menor. A areia é disputada. Talvez a principal diferença em relação às praias do Brasil seja a falta de corpos malhados. Os gordinhos e gordinhas se divertem sem frescura, com roupas de banho nada reveladoras. Apenas olho, apenas olho. Ainda vou tomar banho nesse azul.
* * *
Isso foi ontem. Hoje, acordei às 7h e vim à praia escrever. Optei por começar o dia bem cedo, sacrificando, em troca, qualquer agito na noite anterior para dormir o suficiente e acordar disposto. A estratégia me deu hoje a praia quase vazia. Alguns velhinhos já se banham, acarinhados pelo solzinho leve, enquanto mochileiros dormem com seus sacos de dormir na areia. Apesar do número de pessoas que aqui fazem veraneio, o balneário mantém sua magia. As montanhas ao redor são lindas demais. Na Serra do Mar do litoral paulista ou fluminense, as montanhas perto da orla são de uma mata densa, barulhenta de grilos e pássaros. Aqui, elas são silenciosas, são areia, são pedra, mato rasteiro, pouco mais que alguns insetos desconhecidos as usam como lar. Na curta planície entre elas e o lago-mar, álamos crescem juntamente com macieiras. Sentado em uma das mesinhas de madeira plantadas na areia, lembro-me de Parati: a mesma tranquilidade do porto da cidade. Mas estou a milhares e milhares de quilômetros do oceano mais próximo e ainda mais do Rio de Janeiro. Isso fica se repetindo como um mantra na minha cabeça.
Ontem, em Bishkek, o dia começou com uma surpresa bem ruim - longas viagens são inevitavelmente cheias delas, e concluo cada vez mais que são elas que nos ensinam as coisas mais valiosas. Perdi meu celular, que eu usava como despertador e, principalmente, como câmera fotográfica. Perdi em uma lotação, ele escorregou do meu bolso quando me deslocava do hotel para a rodoviária, onde peguei outra lotação para Cholpon-Ata. Estou à beira do Issyk-Kul sem poder tirar uma foto. Já me martirizei o suficiente pelo que ocorreu, e agora tenho a missão de comprar outro celular-câmera assim que voltar a Bishkek. Custe o que custar. Depois, no fim da viagem, volto para fazer novas fotos.
No caminho para cá, a estrada parece recapeada recentemente e boa parte dela cruza áreas desabitadas, de colinas e picos, novamente um terreno muito seco, sem árvores. Em dado momento, o asfalto passa em meio a duas colunas de montanhas, o chamado de "Desfiladeiro do Cadarço" - um nome curioso que ninguém conseguiu me explicar de onde vem. Lá encontrei pela primeira vez algumas iurtas - as tendas de forma circular dos povos nômades e seminômades da região. Até então, só as havia visto em um museu em Almaty, o que não conta. Na estrada, são usadas como moradia para vendedores de kumiz, o tradicional e popular leite de égua fermentado, que ainda não provei.
Em Cholpon-Ata, mesmo com o dinheiro dos turistas, falta infraestrutura. Na pousada onde fiquei, o banheiro é uma fossa, um buraco no chão, se enchendo de excrementos, poluindo o solo e a água subterrânea. Não sei quão regular é a coleta de lixo, mas em alguns locais perto da praia parece que isso não é uma preocupação. Garrafas de vidro quebradas ficam espalhadas pela areia. Não importa. Nada tira o deslumbramento deste lugar, nem isso. Ao lado da fossa da pousada, uma macieira e uma pereira tortas de tão carregadas de frutos me deixaram boquiaberto nesta manhã, e uma maçã vermelhíssima quase caiu em minha cabeça! Por pouco tive meu momento Newton.
A noite por aqui foi difícil. Ouço do quarto: como em uma boa cidade praiana, os jovens fazem seus luaus com pés na areia. Som altíssimo, um eletrônico bate estaca, bem anos 80. Desmaiei de cansaço e uma hora depois acordei espantado com a bizarrice, na parte final da balada: uma versão em russo de The Lady in Red, de Chris de Burgh. Em seguida, Hello, aí sim em inglês, a versão original de Lionel Richie. O momento dos casaizinhos se amassarem, talvez? Depois de Hello, por fim, tudo ficou em silêncio. Acabou por volta da meia-noite. Acho que no Brasil as festas de praia não terminam exatamente assim...
De volta ao presente. Estava me preparando para sair da praia, e um casal ficou curioso comigo e me abordou. A moça, bem simpática, russa com um inglês decente, me recomendou que hoje eu vá a Karakol, a umas três ou quatro horas daqui. Muito bonito, ela diz. Sou um rebelde. Me recuso a decidir até daqui a pouco.
Cholpon-Ata, 28/08, 7h30
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Rafael, poderia esclarecer como conseguiu traduzir "cadarço" do uzbeque?
ReplyDeleteVeio do inglês. Meu guia diz que o desfiladeiro se chama "Shoestring", o que é, literalmente, cadarço. Não sei como se chama na língua local.
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