Wednesday, 19 April 2023

Novas Fronteiras (XX) - Mar de Aral, Uzbequistão



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21/8/2018

Mad Max.

Uma planície desértica, areia e arbustos. O carro foi levantando uma coluna de poeira no off-road perdido no horizonte. Em um lugar que não pode ser localizado, apenas um lugar em algum ponto de uma vasta área vazia dos mapas, uma vasta área onde nenhum carro deveria estar passando.

À distância, bem longe, ao redor, chaminés. Fogo queimando de algumas, imensas tochas distorcendo o ar, criando miragens escaldantes.

Areia no chão, fogo à distância, calor implacável por toda a parte. Nenhuma cidade por perto. A mais próxima ficava uma hora e meia para trás e era um vilarejo miserável.

Isto é o que se vê após o fim do mundo.

O carro acelerou.



O barulho do motor foi interrompido de forma inesperada.

"Era aqui que ele costumava ficar. Bem por aqui. Imagine. Era fundo. Eu mesmo, nem consigo imaginar", disse de repente em inglês o motorista, um jovem com cara de coreano, não de caracalpaque ou cazaque ou uzbeque. Rosto magro, olhos bem puxados, pele bem branca. Devia ter no máximo uns 25 anos, usava boné, jeans, parecia distraído o tempo todo, a cabeça voltada para o celular tremendo permanentemente no seu bolso. Nunca viu este lugar como ele deveria ser sem a intervenção humana. Ao falar, finge estar triste com o ocorrido. Está, na verdade, indiferente. Esse pós-apocalipse é o seu mundo. Este deserto não levou nada que conheceu. Na verdade, trouxe sua vida, seu ganha-pão.

A Land Rover dava pulos no terreno, leves ondulações nos jogavam no ar.

À nossa frente, os rastros de outros veículos na areia. Seguimos os rastros, eram a bússola. Oitenta quilômetros por hora. Nenhum pássaro e nenhuma nuvem. O sol parecia não sair nunca do mesmo lugar, minuto após minuto.

Os passageiros que viajavam juntamente comigo estavam todos muito silenciosos.

Lá longe, uma linha do horizonte. O tempo ia passando e essa linha negra ia subindo, bem devagar ficando mais grossa. Imaginei uma onda gigantesca, um tsunami, subindo verticalmente. Ameaçador, desconhecido. O que é isso? Perguntei.

"O platô. Vamos para lá. Era onde ficava a margem daquele lado", explicou o motorista, agora sem esconder o tom de tédio.

O platô vinha vindo, cada vez mais negro e imenso, uma pura sombra. Ameaçador, desconhecido.

Nesse momento, nem mais chaminés eu via à distância. Nem a ponta das labaredas de fogo no alto dessas chaminés. Só desolação. Areia coberta de arbustos retorcidos.

E o negro ameaçador, desconhecido, engolindo o horizonte.

O fim do fim do mundo foi se aproximando.

O carro, acelerando.


A jornada ao moribundo Mar de Aral havia começado às 8h30. Saímos do hotel em Nukus em duas Land Rovers. No total, eu e três casais, divididos nos dois carros, além dos dois motoristas. Um deles saiu antes, lá pelas 8h, levando um dos casais apenas. O tour pelo fim do mundo prometia entregar uma experiência única. A ideia era atravessar o que fora o mar no lado sul, território uzbeque, dormir em iurtas à beira do que ainda sobrevive dele e no dia seguinte voltar para Nukus, parando em todos os pontos interessantes do caminho. Turismo surreal, turismo, talvez, de mau gosto: admirar a maior das catástrofes causadas pelo homem, assumir como visitantes o papel de abutres arrancando a carniça que resta dos ossos do Aral. Por outro lado, há uma visão positiva: eis uma jornada para ver como a natureza e o próprio homem, em uma tremenda demonstração de resiliência, é capaz de se reinventar face a uma tragédia tão incomensurável.

A história que ocorreu na área ao norte de Nukus, se prolongando até e além da fronteira do Cazaquistão, é bem conhecida. Até antes da década de 60, o Aral era o quarto maior lago do mundo em área (68 mil quilômetros quadrados) e o centro de uma pujante indústria pesqueira. Mas o planejamento central soviético havia estabelecido a Ásia Central como o centro da produção de algodão do grande país, e o "ouro branco" exigia grandes volumes de água para prosperar. Uma série de canais foi construída desviando a água dos rios Syr Darya e Amu Darya para as plantações. Além de drenar a água que seguiria para o Mar, os canais foram construídos sem o cuidado necessário para evitar o desperdício. Por exemplo, em boa parte deles não foi feito o tratamento do leito para impermeabilizá-lo. Ainda assim, os canais foram, ao menos no papel, bem-sucedidos, desenvolvendo a agricultura como um todo em áreas que antes eram consumidas pela secura dos desertos do Karakum e do Kyzylkum. Em 1988, por exemplo, o Uzbequistão era o maior exportador de algodão do mundo. O impacto dos canais sobre o Mar de Aral, porém, não foi uma surpresa para os líderes soviéticos. Há relatos de que todo o projeto para desenvolvimento do algodão centro-asiático foi autorizado pelo Politburo em Moscou mesmo sabendo-se que os canais condenariam o Mar.

E assim foi. O Mar tem hoje cerca de 10% de sua área original. Uma fotografia de satélite do Mar de Aral comparando-o atualmente com o que era no início dos anos 60 é algo chocante. Com o tempo, o mar foi se dividindo em pequenos mares — o Mar de Aral do norte e o do sul, este divido por sua vez entre o do leste e do oeste. O do oeste, meu destino, ainda não está estabilizado, segue encolhendo, mas a profundidade original ajuda a mantê-lo vivo.


* * *

Antes de seguir para a grande pegada seca do Aral, começamos o passeio com um desvio. Saímos do hotel, atravessamos o canal à beira do qual estive admirando os remadores de Nukus ontem e fomos até uma cidade a menos de 20 km, chamada Khojayli ("Terra dos Peregrinos"), visitar um cemitério. Mas não um simples cemitério. É o local onde, dizem, está enterrado ninguém menos que Adão, o primeiro homem.

A necrópole, chamado Mizdakhan, fica na periferia de Khojayli, numa área rural à beira da estrada que, pouco depois, chega a um posto de fronteira turcomeno (exatamente o que irei cruzar daqui a dois dias). À distância, parece uma favela em uma colina baixa, espalhada em uma área de uns cinco estádios de futebol. O olho vê o que parecem ser casinhas empilhadas, espremidas. O carro vai se aproximando, e as casinhas passam a ser claramente mausoléus islâmicos, com suas cúpulas e crescentes, alguns tão bem construídos que lembram os grandes monumentos de outras partes de Uzbequistão. O carro parou ao lado da entrada principal, com um caminho levando para os principais monumentos. Ninguém por perto, apenas nosso grupo.

Mizdakhan está inexoravelmente ligada a uma colina com ruínas, imediatamente a seu lado, chamada Gyaur-Qala. Trata-se de uma fortaleza datada do século IV antes de Cristo. Seus habitantes, dizem os arqueólogos, eram zoroastristas e no local, além de se proteger dos inimigos, se despediam de seus mortos. A religião tem regras rigorosas que estabelecem a proibição de se enterrar os cadáveres. Tradicionalmente, os corpos são deixados no alto de torres (chamadas dakhmas) para que abutres limpem os ossos de toda carne. Depois, os ossos são recolhidos e depositados em ossuários. Uma dakhmas inclusive foi encontrada no local. O assentamento é tão antigo que inclusive alimenta teorias de que Gyaur-Qala teria sido o berço do zoroastrismo, embora seja muito difícil provar isso. Mas, o que sim está claro, é que quando os árabes chegaram e conquistaram Gyaur-Qala, no século VIII d.C., o local já era sagrado; os árabes se apropriaram dele e começaram a usá-lo para erguer, ao lado, seus mausoléus. Nascia Mizdakhan.

Enquanto os casais que viajavam comigo seguiram em frente pelo caminho, decidi me afastar; queria aproveitar aquela curta meia hora que teríamos no lugar para explorar, tentar ver mausoléus que os outros não veriam. Na verdade, quis ficar sozinho. Que ironia, pensei, enquanto negociava uma trilha entre as tumbas. Ontem à noite, após ver ou não ver Shackleton e ML, a solidão que senti foi tão massacrante que perdi os sentidos, só acordei de manhã.

Encontrei, de cara, o coração de Mizdakhan.



Trata-se de uma ruína de um mausoléu dedicado a um califa chamado Erejep, datada do século IX. Sobrevive uma parede, com nichos, e ao lado dela uma estrutura longa e baixa, com um teto curvado, como uma barcaça virada ao contrário. Tudo é feito de tijolos, sem azulejos. Mas os tijolos foram sendo demolidos, arrancados, derrubados pelo tempo. Estão espalhados ao redor, mas de uma forma curiosa, peculiar. Com um significado especial. Estão arranjados como dezenas de pilhas, a maioria com sete pedras, cercando o mausoléu. As pequenas pirâmides surgiram de uma crença antiga segundo a qual todo esse mausoléu é uma espécie de "relógio do apocalipse", em que os tijolos são as horas, os minutos, os segundos. Quando o último deles despencar da construção ancestral, virá o fim do mundo. Os fiéis, em meio a preces, fazem as pilhas, desta forma "reconstruindo a estrutura" e salvando a humanidade. Os tijolos empilhados devem ser sete porque esse é o número correspondente ao número de aliados do Profeta Maomé que teriam sido enterrados aqui.

Localmente, se diz que o mausoléu de Erejep foi construído sobre a tumba de Adão. Provavelmente, essa lenda vem da tradição zoroastrista que os árabes encontraram ao chegar, indicando que no local teria sido enterrado o primeiro ser vivo criado pelo deus supremo Ahura Mazda. De acordo com os zoroastristas, esse ser, Gayomard, não tinha gênero e, por sua vez, teria dado origem ao primeiro homem e a primeira mulher, que, então, originaram todos nós. Dada a dificuldade de conciliar isso com os preceitos da religião islâmica, os árabes devem ter mudado a lenda, acomodando no local a suposta tumba de Adão. Mas será que ele, ou Gayomard, ou algum ancestral importante dos primórdios da raça humana está realmente está enterrado neste local? Até agora, foi impossível confirmar isso. Mas, claro, também não foi possível provar o contrário e, assim, não são poucos os que vêm a este remoto cemitério para fazer a lenda se perpetuar. Esses fiéis dedicam suas preces a Adão, a Erejep e outros santos enterrados no cemitério, pedindo que nossa história não chegue ao fim. No entanto, ao lado de um mausoléu arruinado, cercado dos tijolos gastos pelos elementos, empilhados ao meu redor, tive a sensação de que, apesar dos esforços dos visitantes, a humanidade já acabou. Que os esforços são fúteis. O que fazemos, tudo o que fazemos, é apenas uma tentativa patética de adiar o que já ocorreu. Empilhar tijolos que podem ser derrubados por um vento mais forte.

A vida como um posfácio. Tudo morreu, foi demolido, e, se há o renascimento eventual hoje ou amanhã, ele é eliminado, morto, demolido, o tempo todo.

Não sinto um renascimento. Não em Mizdakhan.

Só tenho essa sensação dolorosa e que, ao mesmo tempo, me cativa.

Segui em direção a outra parte do sítio, onde estão agora os outros visitantes que chegaram comigo e de onde não se animaram a sair. Estão saindo de uma estrutura subterrânea, onde se entra por uma escada. Sobre a terra, o que se vem são cúpulas, novamente, sete. Trata-se de outro mausoléu, o de Mazlumkhan-Sulu, datado do século XIV. Diferentemente do mausoléu anterior, este foi complemente reconstruído e não há pilhas de tijolos ao seu redor. Seu interior é uma joia azul de belos azulejos brilhantes — no teto, nos delicados frisos decorativos nos cantos das paredes, mesclados com tijolos que parecem saídos da olaria há poucos minutos. Não há nenhuma informação sobre o detalhado trabalho de restauro, tudo é apenas um grande exercício de deslumbramento que soa tristemente falso.



O Mazlumkhan-Sulu também tem uma lenda associada a ele. Mazlumkhan teria sido a linda filha de um governador local. O pai queria que ela se casasse com um dos dezenas de candidatos poderosos e ricos que cobiçavam seu amor. A filha, porém, tinha um coração rebelde, e ele pertencia a um humilde arquiteto que não poderia sonhar em se casar com uma princesa como ela. O amor permanecia secreto. A frustração do governador com a falta de interesse da filha em aceitar um marido que ele julgava apropriado, no entanto, crescia. Um dia, ele anunciou: a mão de sua filha seria do homem que construísse, de um dia para outro, a torre mais alta, alta como o céu. Julgava, na certa, que os ricos e poderosos mobilizariam seus exércitos para a construção e um deles, na certa, ganharia a corrida. Não foi isso o que ocorreu. O dia amanheceu e o arquiteto, após um frenético esforço, impulsionado pela paixão e abençoado pela sorte, foi capaz de erguer um minarete mais alto que nenhum outro. Ainda assim, o arquiteto não conseguiu o consentimento do pai de sua amada. Ele lhe recusou a donzela. Com o coração partido, o arquiteto subiu o alto minarete e de lá de cima, se atirou. Foi seguido por Mazlumkhan. Massacrado pela dor e pelo arrependimento, o pai da moça decidiu construir, para ela e para o arquiteto, o mausoléu. Mas o fez subterrâneo, usando nas paredes os tijolos da torre que o desprezado arquiteto erguera.

Em Mizdakhan há outros mausoléus de valor histórico e arquitetônico, a maioria ainda sem nenhuma reconstrução. O tempo era curto — eis o preço lamentável a pagar pela logística resolvida confortavelmente pela excursão. Apenas meia hora de exploração em Mizdakhan é mais que suficiente para quem se conforma em ver apenas o Mazlumkhan-Sulu, mas é uma piada de mau gosto para quem quer ver tudo, andar, sentar, respirar, rever, reexplorar, reviver, rezar, suspirar, admirar, imaginar, se perder, se encontrar. Como era meu caso.

Distante uns minutos a pé, fica Gyaur-Qala. Para lá fomos todos, olhando o relógio.

Em contraste com a necrópole de Mizdakhan, nessa colina não há nenhuma tumba visível, mas apenas volumes de terra lisa, pelados, edificações dilaceradas escondidas sobre a superfície criando rugas sugestivas na superfície, sem plantas, refletindo o sol. Gyaur-Qala lembra as outras fortalezas de toda a região da Corásmia, ao redor de Khiva e Urgench, o roteiro de sítios assombrando o Kyzylkum que explorei em 2003.

Que bom que eu já sabia algo sobre o sítio. Não havia placas informativas. Perguntei, e o motorista da nossa excursão são sabia absolutamente nada sobre o lugar. Também nenhum dos turistas com os quais conversei sabia algo. Aliás, não estavam interessados, não mostraram nenhuma vontade de parar no local. Queriam ir logo para o deserto do Aral. Fiquei incomodado com meus companheiros de viagem. Assim, me sentei em uma das superfícies polidas de Gyaur-Qala e me dediquei a olhar Mizdakhan à distância, apreciando a vista, tentando encontrar o mar de pirâmides de tijolos ao redor do mausoléu de Erejep. E passei a ignorar todos. Decidi, conscientemente, perder a noção da hora. Até que me avisaram que era hora de ir.

Foi dor o que senti a seguir, uma dor vinda de minhas pernas... por causa do contragosto de me lançarem de volta ao carro. Ao chegar, todos estavam já sentados, fazia cinco minutos, apenas me esperando. E lançaram na minha direção olhares fulminantes quando eu, displicentemente e sem nenhuma, nenhuma sinceridade, pedi desculpas pelo pequeno atraso em voltar.


* * *

Moynaq é o lugar-comum do moribundo Aral. É provavelmente o símbolo mais conhecido da imensa tragédia. E chegar a ele, após algumas horas na estrada depois de Mizdakhan, causa uma reflexão incrédula: como este lugar ainda existe?

Na estrada, na chegada, havia ainda uma placa com um símbolo de Moynaq. Um símbolo com o desenho de um peixe. A placa ainda tinha cores, cores que a cada minuto vão se tornando mais pálidas, mais inexistentes. Como que para justificar a teimosa persistência da placa com o peixe, ao lado dela resistia um laguinho. Umas crianças com trapos como roupas brincavam por perto, pegavam pedaços de pau e fingiam ser espadachins. As casas de Moynaq começaram a aparecer à beira da estrada logo depois. O asfalto era bom, parecia ter sido reformado recentemente. Mas, nas ruazinhas laterais, perpendiculares à via principal lisa como uma mesa de bilhar, nem havia pavimentação. Havia areia, areia voando para cá e varrida para lá pelo vento inconstante. Vi muros feitos de juncos provavelmente tirados dos brejos do mar quando ele ainda ficava perto. Vi casas velhas de barro, secas, se desfazendo. Algumas eram cobertas com telhas pré-fabricadas que provavelmente serão a única coisa a restar visível quando a areia das ruas consumir de vez os casebres e todos os pobres moradores forem embora. Poucos ficaram. Talvez estivessem dentro de suas casinhas naquela hora para se proteger do sol brutal. Ou talvez essas casas mais velhas sejam apenas cenário, tenham sido abandonadas há anos e ninguém teve o menor interesse de voltar a ocupá-las. Ironicamente, perto da estrada vi casas novas sendo construídas com ajuda do governo, com uma placa apresentando a obra como algo significativo. Fiquei incrédulo. É realmente verdade que há demanda para essas habitações? A obsessão de construção do governo uzbeque chegou até Moynaq, mas para quê? Não seria melhor tirar todos daqui de uma vez?

Do que vive esta cidade?

Da espera eterna por algo, um novo alento, uma nova vida. Talvez o turismo, esse turismo tão mórbido.

Hoje com cerca de dez mil habitantes, Moynaq ficava em um istmo no Aral, levando a uma pequena península, e é por esse antigo istmo que passa a estrada. Aqui ficava ancorada uma vasta frota de barcos pesqueiros, mas, atualmente, a margem mais próxima do mar, que continua encolhendo a cada ano, fica a cerca de 200 km daqui.

O lugar tem um museu e essa foi a primeira parada. Ele tem uma coleção de fotos e objetos mostrando como a vida foi boa um dia por aqui. Uma estátua dá as boas-vindas ao museu: é uma representação em concreto de um pescador, pintada com tinta prata, segurando um peixe com o rabo destruído. Os vergalhões outrora cobertos de concreto do rabo estão à mostra. Especulo que a estátua foi danificada por um morador com raiva, revoltado com o destino que tomou a indústria pesqueira local. No seu auge, nos anos 1950 e 1960, essa indústria empregava cerca de 40 mil pessoas e produzia algo como um sexto de todo o pescado da União Soviética. Quem está ainda vivo e viu esse tempo deve querer chorar toda vez que olha esta estátua.

O foco do museu, aliás, são as fotos desse tempo que não volta. Os pescadores saindo em suas barcaças durante a noite, regressando de manhã ao porto da Moynaq com montes de peixe fresco. Somos conduzidos para ver as fotos uma por uma por uma funcionária do museu, uma senhora idosa de olhos sem brilho. Mais tristeza: apresentando as imagens, fala apenas russo, e apenas eu, entre os turistas, entendo o que ela fala. Quanto esforço descritivo e explicativo, quase inútil. Mas nem sei se meus companheiros de viagem se interessariam, na verdade.

Nas fotos, sorrisos lindos dos pescadores, uma visão idílica de viver em harmonia com a natureza, mas em imagens em branco e preto, escuras, gastas, nem parecem mais fotos, parecem pinturas expressionistas. Um mundaréu de água negra. O mar parecia tão fundo, tão impossível de se eliminar. Ao lado dessas mesmas fotos, a inevitável imagem de satélite mostrando o recuo do mar desde meados dos anos 60 até hoje. Uma vasta mancha escura virou uma poça esverdeada.

O carro depois nos levou a um mirante do deserto. Aqui, os moradores de Moynaq foram acumulando os esqueletos de vários dos barcos usados no auge da indústria. Alguns foram trazidos de pontos mais distantes, estavam atracados em pontilhões de madeira à beira-mar, espalhados. A água acabou e ficaram atolados, foram enferrujando, foram definhando. Alguns navegaram pela última vez nos anos 1960. E, claro, nunca mais vão navegar. Foram trazidos apenas para os turistas, para fazer parte de uma coleção lúgubre sob o sol. Estão lá agora, à frente do mirante, alinhados, um a um oferecendo seu depoimento sobre o inimaginável. Como se presos em um pier invisível, sobre a água invisível, tripulados por seres invisíveis, carregados de peixes invisíveis.



Uma visão desconcertante, reproduzida exaustivamente em jornais e revistas como o símbolo maior da tragédia. Mas as fotos não substituem o sentimento, profundamente perturbador, de observar esse panorama em pessoa.

Desci para o "mar". Os barcos estão pichados. O metal está tão deteriorado que fiquei com medo de tocar, me cortar e morrer de tétano. Em um deles, umas crianças brincavam e exploravam a pequena cabine onde um dia ficava o capitão.

Na areia fofa ao pé dos barcos, chutei sem querer alguma coisa que sai voando. Me agachei para ver. Era uma conchinha branca, apenas metade dela. Ajeitei o chapéu para proteger os olhos da luz do sol e cavei com os dedos a areia. Encontrei muitas outras, de vários tamanhos. Enfiei umas quatro no bolso. Pensei: vou dar de presente. São suvenires de um mar que já não existe. Pedacinhos do mar no meio do deserto. Não há nada mais surreal.

Me senti na obrigação de visitar cada barco enfileirado no pier imaginário. Em frente a cada um deles, tive o desejo de ficar de pé, em silêncio, não olhando para as embarcações em si, mas para o chão onde estavam fincadas. Foi o que fiz.

Sou parte da humanidade, e a humanidade causou isso. É culpa minha também.

Depois de visitar o último barco, olho para o horizonte.

Me chamam para o carro.


* * *

O platô vinha vindo, cada vez mais negro e imenso, uma pura sombra. Ameaçador, desconhecido.

Eu ainda estava com a cabeça nas chaminés, no fogo saindo de algumas. A produção de gás natural e petróleo virou uma panaceia para o Aral, juntamente com o turismo. As fábricas provavelmente poderiam ser mais numerosas, não falta espaço para elas, todas poderiam explorar os hidrocarbonetos criados por séculos de acúmulo de matéria orgânica nas profundezas do mar que não é mais mar. Mas quem se beneficia delas? A comunidade miserável de Moynaq, o que ganha com isso?

O deserto no leito do antigo mar, chamado agora de Aralkum, é na verdade menos inóspito do que eu esperava. Há trechos só com areia, mas uma vasta área já é dominada por uma planta que, às vezes, se parece como uma árvore baixa, curvada, retorcida, deformada. É chamada de saxaul, é natural de uma vasta área que inclui a Ásia Central e perfeitamente adaptada para crescer em solos arenosos e com pouca água. Ela vem sendo plantada pelos locais no leito do antigo mar justamente para manter no lugar a areia, a poeira, criar condições à vida estável. Imagine: uma imensa floresta nascendo sobre o cadáver do mar. A grande floresta de Aral. E, com ela, podem aparecer animais, cria-se um ambiente onde eles podem viver em paz. Um consolo, uma compensação depois da tragédia? Tenho certeza, absoluta, que ninguém que mora aqui queria que acabasse assim. Talvez só os donos das plantas de exploração de hidrocarbonetos e os operadores de excursões como a que estou fazendo.

O platô de Ustyurt finalmente chegou. É uma barreira de pedra impressionante, branca-bege-ocre, com a altura aproximada de um prédio de dez andares; o carro foi por cerca de uma hora rasgando o Aralkum em rota de colisão frontal. Quase chegando à muralha, desviou e começou a subir por uma via com marcas de pneus. Lá em cima, paramos para ver a vista. De onde estávamos, abaixo, se via o caminho tênue por onde carros poderiam passar em direção a um cânion profundo colado ao platô. Era um cânion com as paredes de pedra dispostas em camadas, com as linhas horizontais que acusam, quem sabe, as linhas da água que um dia as erodiram. Vi água imaginária por toda a parte. Era como se estivesse fazendo mergulho autônomo.



O Ustyurt pertence firmemente ao que a história esqueceu. Seu território remoto foi, acima de tudo, passagem, a linha entre dois pontos, nunca o centro dos acontecimentos. Mesmo quando anexado formalmente por algum império, mesmo sendo hoje parte de Uzbequistão, Cazaquistão e Turcomenistão, nada aqui diz que este lugar pertence a alguém a não ser a si próprio. Os nômades que o habitavam não eram os senhores do platô, o platô que era dono deles.

Sem os nômades, hoje, este fascinante pedaço de nada é ainda mais alheio ao planeta.

De Moynaq até aqui se passaram umas três horas. Três horas sem sinal de nenhuma cidade, nenhum morador.

Tão vazio.

Voltamos para o carro. O resto do trajeto foi ainda mais lento. A Land Rover seguia à beira do precipício, mas às vezes entrava para o interior, se distanciava para um plano sem nada a perder de vista a não ser mato rasteiro. Depois, voltava para a beira. Lá embaixo, além do platô, lá onde ficava o mar, também não havia nada. O precipício, uma linha, era a única referência.

E então, o horizonte mudou.

Uma linha brilhante, refletindo o sol, apareceu embaixo, bem à frente, ainda distante, à direita do platô. Novamente, como ocorrera com o Ustyurt, foi se aproximando bem devagar. Foi tomando espaço. Logo identifiquei uma praia, uma imensa curva de areia circundando o corpo d'água. Em breve, o mar estava bem perto. A água estava parada, sem nenhuma onda, sem sequer uma ruga.

Um fóssil.

O carro pegou uma saída e começou a descer. O motorista tomou a palavra. "Aqui, bem aqui", disse, apontando. "Está vendo esta beirada aqui, com a vegetação, e a areia, até o mar? Há dois anos, o mar cobria tudo, até chegar na vegetação". O que se via agora eram uns 500 metros dos arbustos até o início da água. Parecia só uma imensa praia. Em um dos lados, à distância e perto da área de vegetação, havia umas iurtas atrás de um muro baixo com cor de areia. Estavam longe demais para se ver se havia alguém. Tirando isso, tudo estava vazio. O sol já estava baixo; o pôr do sol seria atrás do platô, do lado oposto do mar. As sombras já estavam longas. Vento constante, com força suficiente para levantar areia do chão. Tudo tinha uma cor alaranjada. Quando o carro finalmente parou na praia, estávamos a uns 50 metros da água.

Todos saíram do carro. Os meus companheiros de viagem pareciam acima de tudo aliviados de esticar as pernas de novo. Um casal se abraçou, parecia incomodado com o vento, e nem olhou direito o mar. O outro casal, de italianos, parecia dividido: a mulher olhou um pouco o panorama, mas logo só tinha olhos para o namorado, um moço jovem que foi o único que pareceu ter ouvido minha pergunta para o motorista: "Tenho tempo para um mergulho?" Com os braços cansados de horas de volante, o motorista deu uma risada. "Claro! É para isso que trouxe vocês aqui". Tirei a roupa suada em segundos, a bota colada nos meus pés demorou mais para sair. O calção de banho já estava embaixo da calça. O moço italiano, em meio a gritos de incentivo da mulher, de repente começou a me copiar, dando risadas.

— Deve estar fria! — disse o italiano.
— Fria ou não, aqui vamos nós!

Gargalhei. No meio da corrida para a água, abri os braços. Êxtase com tristeza, empolgação com culpa, encantamento com luto, uma mistura de sensações que nunca havia sentido na vida. Eu era um representante da humanidade, um representante dos responsáveis por reduzir um mar imenso e lindo a uma poça. Agora, iria tomar banho nessa poça. Parecia que estava tripudiando do destino trágico do Mar de Aral. Mas continuei correndo, de braços abertos, e logo a água tépida começou a bater em meus tornozelos.

Nada de ondas mesmo, apenas o balanço da água que, logo, se transformaria em pura espuma branca. O chão era de lama profunda, pegajosa, que em alguns trechos afundava até os joelhos. Logo o meu companheiro de mergulho, que tinha ficado para trás, me alcançou. Eu e ele, com grande esforço, fomos vencendo o lodo e a espuma branca até finalmente chegar em um local com a água batendo no abdômen.

E mergulhamos.

Água salgadíssima, azul-acinzentada, uma verdadeira salmoura. Com a extinção progressiva das últimas décadas, a concentração de sal no que sobrou do mar foi aumentando. Quando a cabeça voltou para fora da água, senti o vento batendo nos lábios queimados de sol. Com o sal, eles estavam ardendo. Mergulhei de novo. E depois, comecei a boiar, boiar incrivelmente, como se estivesse amarrado em flutuadores de isopor. Meu peito inteiro estava para fora da água, meus pés, no ar. A água era densíssima.

Somente a fauna capaz a se adaptar à salmoura sobreviveu. Quase nenhum ser vivo. Uma exceção: em toda a superfície da água, aos trilhões, havia artêmias, minicrustáceos vermelhos de um centímetro de comprimento, conhecidos por viverem em águas salgadíssimas, como por exemplo as encontradas em poças em salinas. Artemia parthenogenica, seu nome científico. Com o mar calmo, ficam passeando pela superfície da água, perambulando de cá para lá com suas minúsculas patas nadadoras. Na minha barriga, as vi colidindo umas com as outras. Eu estava, na verdade, em uma grande sopa de artêmias. Fiquei preocupado em evitar que alguma entrasse no meu olho, o que seria doloroso mesmo se a água entrasse sem um dos crustáceos. Talvez uma água tão salgada possa até cegar uma pessoa.

Flutuando, perguntei ao italiano o que estava achando da experiência. Ele disse que havia estado uma vez no Mar Morto, conhecido pela sua extrema salinidade. "Aqui é muito divertido. Menos nojento e mais limpo do que lá, onde tem gente demais."

Minha culpa morreu por excesso de sal.

Saímos rapidamente, o motorista nos levou para cima do platô de novo. Lá havia um acampamento de iurtas com uma vista fabulosa do mar, promessa de um grande amanhecer.

Mar de Aral, 21/8, 22h20

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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