O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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12/10/2012
Após tanto tempo enfrentando intempéries, nos desertos, nas montanhas, visitando mausoléus perdidos, rezando em mesquitas e madrassas com cúpulas azuis, encontrando povos hospitaleiros com línguas incompreensíveis, enfrentando doenças e fraquezas, o viajante se encontra, mais uma vez, ao lado da China. O Sol brilha, mas incerto sobre onde e quando iluminar o caminho. É esta estrada a correta para alcançar o Oriente? Não é a estrada principal, é outra, perdida em um vale enfiado nas montanhas, paralela ao curso de um pequeno rio, frequentada apenas por iaques e tomada pela grama amarelada do outono. É esta a via correta?
A luz vem e volta. As nuvens às vezes tapam o Sol.
Por 15 quilômetros, o viajante segue obstinado, sem pensar. Nem ouve o motor do pequeno carro, apertado, valente. Observa o vale. Ao redor dele, rochas afiadas, de estranhos formatos, como que imitando castelos e muralhas. E, então, completamente desavisada, como se de repente se materializasse no caminho, surge uma planície onde serpenteia o rio... e um refúgio de pedra. A confirmação. Eis o refúgio que, sim, é para o viajante que segue para o Oriente, para os domínios chineses. Nas pegadas de outros viajantes:
Nós estacionamos o veículo no gramado da frente, que se estende por quilômetros, saímos, e nos encontramos nas paredes do cânion que emolduram o vale. Sob as muralhas, a cerca de um quilômetro e meio ficava o caravançarai abandonado, refletindo sobre seu lugar na história (...) Apesar da aparente familiaridade que têm com o lugar, eu pude ver que nossos guias estavam tão boquiabertos quanto nós.
- Grand Centaur Station, Larry Frolick
Tash Rabat, o caravançarai (estalagem de caravanas) de pedra. Uma formidável e ao mesmo tempo singela fortificação, dura, áspera. Lembra um pequeno castelo galês, mas totalmente deslocado, encravado na serra Tien Shan. Feito de pedras escuras e finas, sobrepostas umas às outras, criando paredes, um arco de entrada e uma cúpula em seu interior, sobre o encontro dos seus corredores.
Um alívio, o Tash Rabat, para o viajante. E um enigma. Por que alguém gastaria tanto dinheiro para construir tal fortaleza no meio do nada? Por que aqui e não em alguma vila próxima, como em At Bashi, não muito distante daqui? Quem pagou por isso? Em que ano foi erguido?
Historiadores não chegam a uma conclusão sobre a idade do Tash Rabat. Alguns dizem que é do século X, outros, mais novo, até do século XIV. Seja um, seja outro, décadas sem fim de questionamento e investigação para os inquisitivos.
Eis o alívio: Adentra-se a arcada. Um túnel escuro, como uma caverna. Dos dois lados do túnel, em seus dez ou 15 metros de extensão, entradas para outros túneis - cinco passagens levando a outras salas ainda mais escuras, mais úmidas, como celas de uma prisão, onde ficavam outrora estacionados os viajantes e seus cavalos. O túnel principal termina sob a cúpula. Embaixo dela um dia funcionou uma pequena mesquita. No teto ao redor do domo, entre pequenas janelas que deixam entrar uma luz branca e intensa da tarde, os restos da elaborada decoração da mesquita. No chão, logo abaixo, um espaço onde eram feitas fogueiras. Sem esse fogo, como agora, o local é gelado, sombrio, assustador.
O viajante é levado a um transe, o transe o leva atravessar uma das seis passagens sem portas que saem do circulo sob a cúpula. A passagem é baixa, é preciso se curvar para passar por ela. Pouca luz entra pelas pequenas aberturas no teto. Em outra sala, conectada a esta passagem, uma estranha roda de pedra jaz jogada no fundo, num canto, na escuridão. Como em um labirinto, mais passagens e câmaras aparecem, uma a uma, cada uma com sua fantasmagórica personalidade. O lugar está negro, morto, completamente morto, mas vivo, completamente vivo pelos seus espectros (veja o vídeo abaixo).
Os espectros.
Fecha os olhos.
Uma noite de nevasca intensa no Tien Shan.
O viajante e sua caravana arrastam seus cavalos no que parece ser o caminho natural na longa jornada para Khanbaliq, a capital de Kublai Khan. Foram horas de cavalgada em condições extremas, enfrentando o vento açoitante no rosto, arranhado pela neve que se acumula no chapéu de pele e na barba congelada.
Algum companheiro em um cavalo mais à frente grita algo - pouco se pode ouvir. Mas o viajante levanta os olhos, fecha-os o quanto pode para evitar o castigo congelado. Com dificuldade, avista, além dos cavalos e iaques, algo que se sobressai, uma construção. Dentro dela é possível ver luz. Luz amarela, luz de calor. Aproxima-se. Quase tomba com seu cavalo com uma corrente mais forte de vento e neve.
E agora, próximo, encontra a entrada, e dela exala o cheiro forte que atravessa até mesmo o vento e a neve. Cheiro de gordura de iaque fervida, cheiro de carne na brasa, cheiro de pão, cheiro de kumiz, cheiro de estrume e urina de cavalo.
O viajante entra. Arranca o chapéu de pele, limpa a neve de seus ombros e olha fixamente para o final do corredor. Encontra a fogueira.
Abre os olhos.
Eis como o Tash Rabat vive.
De acordo com as lendas locais, haveria uma passagem secreta do Tash Rabat para outro lugar. Quem sabe uma possibilidade de fuga para o viajante, caso ameaçado por invasores no meio da noite? Quem sabe o caminho para uma câmara secreta, recheada da mais pura seda, ouro, jade e lápis-lázuli? Tesouros chineses e europeus das caravanas esquecidas pelo séculos, escondidos pelos bandidos das montanhas?
O viajante deixa a câmara da fogueira e seus mistérios tentadores. A jornada está prestes a terminar, mas ainda não terminou. É preciso partir. Já se ouve a chegada de mais viajantes: uma família quirguiz, pais e filhos com bonés, todos barrigudos. Está firmemente de volta ao século XXI. O viajante se reencontra, mero turista. E o Tash Rabat, simplesmente um inevitável ponto turístico para os poucos que passam por aqui. Justifica-se sua fama. Apesar dos anos e de tudo que falam dele, o Tash Rabat mantém uma aura inexplicável de aventura. Como as ruínas dos faraós no Egito. Lá, as areias do deserto ajudam a parar o tempo. Aqui, as montanhas. Não há turistas que possam eliminar tamanha magia.
* * *
Para chegar ao caravançarai, pegamos uma estrada com asfalto perfeito (cortesia dos chineses) de At Bashi rumo ao lendário Passo Torugart - a passagem de fronteira entre China e Quirguistão que o guia Lonely Planet chegou a considerar uma das fronteiras mais difíceis de se atravessar no mundo, dada a complicação logística (não há transporte direto; o viajante precisa arranjar transporte até o Torugart e depois alguém para recolhê-lo do lado chinês. O passo fecha com frequência por causa do tempo, sem aviso. Infinitos feriados, chineses e quirguizes, tornam meio imprevisível saber quando os guardas vão estar simultaneamente dos lados chinês e quirguiz da fronteira).
No caminho, fizemos um desvio e paramos rapidamente no vilarejo de Kara Suu, ou Água Preta. O vilarejo ocupa uma área onde um dia existiu uma formidável fortaleza chamada Koshoy Korgon, que hoje sobrevive apenas como uma grande ruína de barro. Como o Tash Rabat, a data em que a fortaleza foi erguida é incerta. Provavelmente é karakhanida, como os mausoléus de Taraz e Özgön, por isso acredita-se que tenha sido erguida a partir do século VII e tenha sido ocupada por muitos anos, até pelo menos o século XII.
Como Otyrar e Sauran, aqui as ruínas dizem pouco, mas sugerem muito. Difícil fazer um juízo de como esta fortificação teria sido em seu auge. E, diferentemente de outras cidades fantasmas da rota da seda que visitei, nesta há muito poucos fragmentos de artefatos no chão. Seu interior é tomado pelo mato e poucas fundações são visíveis. Entretanto, num museu ao lado das muralhas gastas de barro, há uma maquete que mostra como ela teria sido. Muralhas grossas, lembrando as de Khiva, no Uzbequistão, com inúmeras torres. Novamente, são as montanhas próximas que garantem à ruína sua beleza, emoldurando e ressaltando sua glória.
Para os locais, sua importância vem de uma lenda, e sempre as há, em todas as ruínas. Neste caso, há gerações Koshoy Korgon, sua construção e existência, estão associados a Manas, o herói mitológico cuja estátua gigante adorna a Praça Ala Too no centro de Bishkek. A figura que, com Lênin partindo em definitivo para o passado em 1991, vem sendo o centro do processo de construção da identidade nacional quirguiz.
Manas é protagonista de um poema épico considerado (pelo menos pelos quirguizes) o mais longo da humanidade: ele seria 20 vezes mais longo que a Odisseia, de Homero (mas, para os estudiosos, ainda perderia para o poema seminal do hinduísmo, o Mahabharata). No Quirguistão, aqueles que são capazes de recitá-lo de cor são objeto de afeição e profunda admiração, sendo chamados de Manaschi, e costumam estar presentes em festas folclóricas. A data do poema em si gera controvérsias. Para muitos quirguizes, sua origem se perde no tempo, e em 1995 o país comemorou nada menos que os mil anos de Manas e suas histórias. Mas a verdade comprovada é menos fascinante. A "Ilíada das Estepes", como é chamada, surgiu no século 18, fruto do trabalho do etnógrafo e historiador cazaque Shokan Walikanov, que certamente compilou contos da forte tradição oral dos povos da região. Por isso mesmo a importância da obra em termos de etnogênese do povo quirguiz é sem dúvida discutível, já que a identidade própria dos quirguizes, separada de outros habitantes das estepes, pode ser considerada uma criação dos soviéticos.
De qualquer forma, o admirável poema, celebrado nas jailoos e iurtas, cita as outrora gloriosas muralhas de Koshoy Korgon como tendo sido erguidas por Manas em pessoa. Neste local ele teria construído um mausoléu para um de seus generais, Koshoy (Koshoy Korgon quer dizer, previsivelmente, "Fortaleza de Koshoy"). Não há sinais do mausoléu e nada muito além de terra seca amontoada, barreiras que resistem com obstinação ao tempo. Mas a sugestão é que, aqui do lado, ou aqui embaixo, ou mais lá na frente, esteja um segredo aguardando para ser revelado - a tumba de Koshoy. Talvez uma sepultura guardando o único exemplar original do poema épico de Manas? Ou talvez tesouros inimagináveis... a mais pura seda, ouro, jade e lápis-lázuli.
Sonhos. Sonhos infinitos da Rota da Seda.
Após Koshoy Korgon, voltamos para a estrada. Ela continua rumo ao Torugart, ultrapassa o vilarejo de Kara Bulun, e o mundo acaba. Não há mais pessoas, não há mais casas, há um ou outro iaque, ovelha ou vaca. De resto, apenas pradarias e montanhas, vastas, vazias. De um lado, os altos picos da serra próxima a At Bashi, nevadas. Do outro, bem distantes, mais montanhas, mas essas se veem da estrada completamente negras, em um contraste incrível com o pasto amarelo brilhante.
A estrada é reta como uma régua. Os poucos veículos com que cruzamos estão vindo na direção contrária e são todos caminhões com placas chinesas, a toda velocidade. Rumo a algum lugar longe deste lugar nenhum.
Logo achamos uma placa indicando a saída para a estradinha que seguia para o Tash Rabat, o caminho que o viajante deveria seguir na serra para achar onde o caravançarai se esconde.
Para lá do fim do mundo.
* * *
Após o longo passeio, seguimos de volta a Naryn, eu e a senhora suíça.
Procuramos juntos alguma acomodação com chuveiro quente e preço entre 400 e 500 soms (entre US$ 6 e US$ 7, aproximadamente) para passar a noite. Uma jovem que encontramos nos ofereceu uma opção: sua própria casa. Talvez, um sinal da tradicional hospitalidade centro-asiática. Talvez, apenas um sinal de seu desejo de ganhar um dinheiro extra. Talvez os dois. A oferta era boa - 500 sons por cada quarto, incluindo jantar, café da manhã e o chuveiro quente, em um grande apartamento de um prédio dos tempos soviéticos. Aceitamos.
Que estranha morada.
A jovem, com aproximadamente 30 anos, tinha uma aparência quirguiz ordinária, magra, rosto redondo, olhos puxados. Pele um pouco escura, bronzeada, algo um pouco incomum, mas não impossível de ser nas ruas. Viveu um bom tempo no exterior, onde adquiriu um inglês excelente e um imenso fascínio pelo Ocidente, visível em sua casa, onde nada, absolutamente nada, lembrava a cultura quirguiz. Os móveis, o papel de parede, o banheiro, a cozinha, tudo parecia ter sido pensado e remodelado para parecer ocidental. O chão, por exemplo, era de carpete de madeira, algo incomum por aqui. Havia alguns tapetes, mas todos com estampas modernas, sem os tradicionais padrões quirguizes.
Pelas paredes do banheiro e de seu quarto, a jovem espalhou folhas de papel com frases motivacionais em inglês como "Você é linda!" e "Eu gosto de você!" Também espalhou seus diplomas e muitas e muitas fotos. Fotos que indicavam uma certa auto-obsessão. Nelas, nada de paisagens, nada de pai, mãe, outros parentes, nada de viagens a Bishkek ou Osh, nada de monumentos de Manas. As fotos mostravam, a maioria delas, apenas a garota em poses variadas e em locais desconhecidos para mim (e que pouco apareciam no fundo das fotos). Em algumas fotos, ela aparecia com alguns amigos. Em outras, poucas, estava o namorado, que não morava em Naryn e era citado por ela com uma certa veneração religiosa. Numa conversa, repetiu várias vezes orações carregadas de fé como "Ele vem me visitar" ou "Nós iremos nos casar no ano que vem".
As fotos da jovem depois de um tempo começaram a me parecer algo doentio, uma demonstração de sua necessidade intensa de reforçar sua vaidade, martelada incessantemente para qualquer lugar que se olhasse no apartamento. Até nas paredes ao redor do vaso sanitário havia fotos, e nessas ela aparecia como uma modelo posando de várias formas para capas de revista. Quando ela anunciou que eu iria dormir no seu próprio quarto aquela noite (ela dormiria no mesmo quarto que a mãe, uma senhora silenciosa e triste), já sabia que me sentiria desconfortável. Nas paredes do quarto estavam a maioria dos seus diplomas e certificados. Na sua pequena mesa de escritório do quarto, mais fotos, neste caso mostrando ela com roupas de profissional, terninhos e saias, em poses mais sérias. Me senti me afogando em um universo que era completamente de uma só pessoa que, ao contrário de mim, não aparentava ter nenhuma atração por esta cultura, por este país, só por si mesma, só por seu próprio espelho, e não demonstrava ser nada além do que se vê nas paredes, nos porta-retratos. Que tristeza ser cercado por tamanha vaidade, tamanho isolamento. Tudo me dizia, o tempo todo, que eu não pertencia a aquele lugar. Só à jovem!
A ego-obsessão da garota ficou ainda mais clara no jantar. Ela falava muito de si o tempo todo e não deixava ninguém falar. Quando lhe disse que eu também havia morado fora do meu país de origem, algo que imaginei que fosse desencadear as perguntas "Onde? Quando? Por quê?" como reação, tive que repetir três vezes a mesma informação até que tivesse alguma reação dela. E a reação dela foi "é mesmo?", seguida de mais algum fato fascinante relacionado a si mesma.
Volto-me à mãe, a senhora que parecia um retalho de tecido desbotado, magra, com as bochechas grandes e enrugadas. Sem saber falar inglês, apenas observava a filha em seu voo solo e a nossa participação como expectadores. Absolutamente deslocada neste pequeno mundo ocidental e ditatorial da filha, em meio aos objetos estranhos que ela introduziu no seu lar. Em um breve momento, quando a jovem estava fora do apartamento, minha colega suíça perguntou (em russo) à mãe se poderia usar a máquina de lavar roupa. A mãe ligou para a jovem simplesmente para perguntar se havia algum problema com isso. Depois, perguntei a ela que hora o jantar ficaria pronto. Ela ligou para a filha para confirmar o horário em que ela gostaria de comer. Sua função na casa parecia ser a de uma serviçal: tudo era ao redor da filha, tudo só funcionava com a filha e em função da filha.
De manhã, acordamos e logo depois a garota se despediu, foi trabalhar. Durante o café da manhã, a mãe ligou o rádio da cozinha e voltou para a mesa que compartilhava conosco. Pôs-se a escutar uma canção folclórica quirguiz entoada com o alaúde típico de três cordas (chamado de komuz). Uma melancólica canção, linda, linda.
A mãe em seguida se afastou, levantou-se novamente da mesa e seguiu quietinha para a cozinha. Lá, de pé, perto do rádio, passou a olhar pela janela.
A vista era de um pátio entre prédios de apartamento soviéticos, um chão de concreto com rachaduras, entre as rachaduras algum mato, e entre os matos algumas poucas flores pequenas, brancas, delicadas, silenciosas, machucadas pelo vento, olhando de volta para ela.
Naryn 13/10, 10h03
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I understand that I made a mistake leaving some of your personal details in my account of the night I spent in Naryn, and for this I sincerely apologise. You will notice that all personal information that could be used to track you has been deleted from the article. I am however not going to the delete the whole extract as I believe it is an important part of the chapter. Please do not insist. Any further comment coming from you will be deleted right away.
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