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30/08/2012
A estrada atravessa estepes douradas. De um lado, à direita, o sul: um mundo rasteiro e seco, povoado por um único cavalo solto, sem mestre, galopando paralelo à estrada, lá longe, perto das montanhas. Do outro lado das montanhas, invisível, o lago Issyk-Kul, lembrando de mim. À esquerda da estrada, o norte: mais secura que reflete o Sol. Às vezes, um poste com cabos de energia. Em geral, nada, apenas imensidão. Apenas estepes.
A viagem para Almaty foi, como esperado, uma pequena aventura. A divisa internacional fica a apenas 30 minutos de carro de Bishkek. Até Almaty, negociei o preço de 600 soms (cerca de US$ 9) com o motorista, que levava mais 3 passageiros, além de mim, em seu carro coreano. Todos bem apertados.
Inevitavelmente, o posto de fronteira era uma imensa bagunça; sujeira, gente carregando volumosas sacolas e crianças, velhinhos aguentando os ossos, todos em fila para tudo. Também policiais por toda a parte. E medo por toda a parte - o medo de todos de terem suas bolsas abertas pelos guardas, de não saber explicar por que vão atravessar a fronteira que separa países com povos e línguas tão parecidos e, principalmente, separa famílias. Respiro fundo na espera. Na janelinha, entrego o passaporte ao mandarim com seu uniforme militar. Primeiro, o guarda quirguiz, depois, em outra janelinha, o guarda cazaque, que foi muito mais cortês. Até lhe fiz uma pergunta. Sim, confirmou, em Almaty não escaparei da burocracia de ter que me registrar na polícia migratória, um transtorno que por aqui na Ásia Central só os cazaques proporcionam aos turistas - felizmente, só a aqueles que atravessam as fronteiras do país por terra, o que é exatamente o meu caso. Em teoria, só para me registrar vou ter que gastar um dia inteiro em Almaty. Bom, não será um grande suplício. O problema é a lógica disso. Basicamente, irei pegar fila em um órgão do governo para confirmar que estou no Cazaquistão - algo que o governo já sabe, ou deveria saber, pois carimbaram meu passaporte. Ouço a explicação do guarda. Não entendi a burocracia, mas, é claro, isso sim, entendi que não adianta reclamar.
Para passar pela alfândega e pelo controle de passaporte, por uma hora me separei e perdi contato visual com meus companheiros de carro. Um pouco de tensão. Aperto os olhos para ver à distância - sim, uns dez carros adiante, na fila de veículos para entrar no Cazaquistão, encontro eles, um sentado numa mureta, outro agachado, outros de pé. Era um grupo bem heterogêneo - um uzbeque, dois tajiques e um quirguiz (o motorista), além de mim, usando um chapéu cazaque comprado em abril em Almaty. Ou seja, eu era o cazaque honorário do carro-lotação. Consegui conversar um pouco em russo com o tajique, que me perguntou se eu ia a seu país (disse que sim) e se eu achava, como ele, que o futebol brasileiro ia mal das pernas (concordei, mas disse para ele ficar de olho no Neymar, e o convidei a vir ao Brasil para a Copa).
Cruzando as estepes, bateu um sono. Acordei com o carro parando à beira da estrada, ao lado da barraquinha de uma velhinha miúda vendendo bebidas típicas da região. Entre as delícias que oferecia estava o tal do kumiz que não ousei provar em Bishkek. O leite de égua fermentado típico do verão cazaque e quirguiz se mostrou uma grande tentação. Pedi para provar, imaginando que a velhinha tivesse ela mesmo feito a bebida, ordenhando uma égua em seu humilde curral. Eis que ela some para sua casa, do lado da barraquinha, e volta com uma garrafa do líquido branco industrializado, com rótulo e tudo - que espanto, nem sabia que existia kumiz industrializado! Ela abre a garrafa e sai tanto gás de dentro que a espuma explode, molhando a mesa e a mão da dona. Fecho os olhos e deixo o líquido entrar em mim.
Kumiz foi, com certeza, melhor do que aquela asquerosidade, o maksym, que provei em Bishkek. Lembra um refrigerante bem gasoso, mas com gosto de iogurte salgado, meio ácido... um pouco azedo. Também um pouco alcoólico (de fato, os nômades das estepes tradicionalmente tomam porres de kumiz). Gostei, mas decidi não repetir... não por ora. O motivo é simples: se precisar ir ao banheiro por causa dos efeitos indesejáveis do líquido sobre minhas tripas, que o banheiro esteja bem perto. E não à beira do asfalto.
* * *
Almaty. Diferentemente da primeira vez em que estive aqui, em abril, os canais nas calçadas, sulcos para levar água às plantas e árvores, para tirar um pouco a poeira do ar, viraram verdadeiros rios. A cidade me recebeu verde, cheirosa, cheia de flores, especialmente no centro. Entendi o encanto verde de Almaty como não havia entendido antes, quando a poeira e os carros falaram mais alto, quando as árvores estavam cinzentas no fim do inverno. Agora, nas praças, as fontes criam lindos prismas com o Sol poente, tudo colorido pelos arco-íris que incidem na vista. Os velhinhos conversando nos bancos. As gotículas entrando pelo nariz, que alívio num dia seco!
Reencontro o parque Panfilov - aquele perto da universidade KBTU que tanto frequentei há quatro meses, o que guarda a linda catedral da Sagrada Ascensão. Uma simpática muçulmana de meia idade, rosto enrugado, ao me ver com meu chapéu cazaque - a partir de então meu companheiro inseparável de viagem - me elogia, diz que o chapéu ficou muito bem em mim. Me pergunta se sou muçulmano - geralmente, quem usa o chapéu é muçulmano praticante, de ir na mesquita todo dia. Digo que não, mas ressalto o quanto gosto do chapéu, chamado em russo de tubeteika. Ela sorri, muito, e parece muito sincera. Nos despedimos. Em outra vida, provavelmente eu a convidaria a ir à mesquita. Mas neste mundo, nesta vida, minha oração por ela se faz em longos goles de refrigerante gelado, de uma latinha suada, sentado num banquinho do parque, fechando os olhos para não ser ofuscado pelo Sol, por Alá.
Tenho uma reserva. O hotel Turkistan tem lados negativos e positivos. Os negativos: fica exatamente em frente ao mercado (ou bazar, como eles são chamados em todos os países da Ásia Central, geralmente uma mistura de barracas em espaço coberto e feira ao ar livre) mais importante da cidade. Muita gente passa por aqui, há muito barulho, muita confusão, tenho até medo de ser assaltado. Além disso, é bem perto da mesquita central, exposto aos cantos do muezim (o homem que faz o chamado para as orações) às 5h da manhã. É um prédio mal preservado por fora e por dentro. No meu quinto andar, um corredor cavernoso, assustador, com luz fraca demais para o meu gosto, tudo gasto, desbotando. Tudo vermelho: tapete, o papel de parede descolando. No quarto, a janela não fecha direito, a cortina velha não cobre todo o vidro, a luz passa forte durante todo o dia. Acho que a noite vai ser barulhenta e cheia de mosquitos. As paredes são finas, e meus vizinhos aparentemente não estão muito preocupados com os ouvidos dos outros hóspedes. Pontos positivos: barato (3000 tenge por noite, aproximadamente US$ 9). O quarto é limpo e, algo inesperado, tem até TV. E, analisando friamente, o fato de ser perto de tudo, bem central, é também uma vantagem. Espero conseguir dormir para poder passear bastante amanhã.
Almaty, 30/8, 21h34
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Rafa, se fala chines no quirguistão ?
ReplyDeleteVendo a igreja da NS da ascensão, tão europeia, fico imaginado... essa igreja não tem cara de ortodoxa...
ReplyDeleteAfinal tem muitos cristãos na Ásia Central ? Pelo que vc escreveu havia imaginado que a maioria era muçulmano...