Wednesday, 27 September 2017

Nos Desertos, nas Montanhas: Prefácio

Uma viagem que foi escrita e reescrita, se repetiu, se repetiu de novo, e em retornos e relembranças durou nada menos que cinco anos.

Nos Desertos, nas Montanhas é o diário de uma viagem feita entre agosto e dezembro de 2012 a quatro países da Ásia Central - Quirguistão (onde morei por dois meses, na capital, Bishkek), Cazaquistão, Uzbequistão e Tajiquistão. Aos amigos que conhecem meu trabalho, trata-se de uma continuação do longo projeto, incluindo diários passados e futuros, que visa apresentar o desenvolvimento paralelo e conjunto de dois universos: o meu, puramente pessoal, com as mudanças da minha vida e todas as diferenças que se tornam claras com o envelhecimento (mudanças de valores e conceitos, o impacto de lembranças e a inevitável e constante busca da própria identidade), e o universo dos ex-países soviéticos da Ásia Central - sua incomensurável bagagem cultural e histórica, sua traumática ruptura com eras passadas e a sua imensa incerteza futura, fruto, novamente, da procura constante pelo que representam. Seguindo a linha estabelecida pelos diários anteriores, Nos Desertos, nas Montanhas procura ser uma obra única, construída na longa tradição desse tipo de literatura, mas tornando-se algo mais: o retrato de uma pessoa comum que se espelha e se vê em mudança concomitante a um destino que volta a visitar entre os anos. Quiçá o próprio destino mude simplesmente devido à visita do viajante. Ou quiçá o próprio destino sequer exista a não ser na visão única do viajante, em seu contexto temporal específico. Sendo certeza apenas que ambos, viajante e destino, compartilham a mesma busca por si próprios.

Dessa forma, este diário só pode ser compreendido no contexto de longo prazo, como uma etapa de uma longa jornada. A primeira versão de Nos Desertos, nas Montanhas foi escrita durante a própria viagem, mas só começou a assumir forma final em 2013, após a publicação do Diário de Almaty, um relato curto, de oito partes, que narra as três semanas que passei na cidade cazaque em 2012. A demora na publicação de Nos Desertos, nas Montanhas reflete o longo e lento trabalho de redação, edição (repetidas vezes, cada uma delas uma nova viagem) e revisão, e a ambição inédita do trabalho. Diferentemente de Diário de Almaty e do diário anterior sobre a mesma região, Um Brasileiro no Uzbequistão (2003), este novo diário é muito mais longo e não mais adota um limite de palavras por capítulo. Além disso, inclui muito mais fotos, um mapa interativo e vídeos, que, espero, tornarão a experiência muito mais agradável a todos os companheiros que me acompanharem nessa viagem.

Inevitavelmente, a longa demora para a publicação de Nos Desertos, nas Montanhas fez com que muitos trechos ficassem desatualizados. Na esfera econômica, a desaceleração econômica chinesa e a queda nos preços internacionais de commodities como o gás natural tiveram um impacto claro em todos os países da região, aumentando o risco de instabilidade e favorecendo a adoção de medidas de repressão política. Nessa esfera, num mundo que parece em mutação rápida e frenética, refletindo a conjuntura pós-11 de Setembro e Primavera Árabe, era de se esperar que as mudanças chegassem também ao longínquo Turquestão. Apesar de ainda viver de forma clara e palpável o legado dos anos soviéticos (o que ficará bastante claro no decorrer da viagem), os países da região passaram nos últimos anos por significativas mudanças políticas, em menor ou maior grau dependendo do país.

A mais significativa foi no Uzbequistão. A morte do primeiro presidente do país, Islam Karimov, em 2016, trouxe ao poder Shavkat Mirziyoyev, um líder espantosamente progressista. Em seu primeiro ano de poder, o novo presidente promoveu mudanças que pareciam mentiras aos mais otimistas analistas - defendendo publicamente a liberdade dos meios de comunicação, reaproximando-se de rivais regionais há muito ignorados por Karimov, adotando medidas para eliminar o trabalho infantil e a muito esperada mudança no câmbio fixo (que alimentava um vigoroso mercado negro de troca de moedas estrangeiras) e até mesmo indicando que pode tolerar algum tipo de oposição política (o que ainda não aconteceu). Apesar de todas as mudanças, optei por manter minhas reflexões sobre o Uzbequistão de Karimov neste diário intactas, acreditando que se tratam, acima de tudo, de um retrato e uma reflexão históricos que ajuda a entender o Uzbequistão atual e suas mudanças mais recentes.

Se o Uzbequistão seguiu um caminho certamente positivo, o mesmo não se pode dizer do Tajiquistão. O único país da região a viver uma guerra civil (1992-1997) e o mais pobre entre os ex-soviéticos, o Tajiquistão testemunhou desde 2012 o recrudescimento do regime do presidente Emomali Rahmon. Certamente não é coincidência que foi justamente em 2012 que o país viveu um sério conflito na região do Pamir, envolvendo milicianos armados e forças do governo, o que trouxe à tona o fantasma da volta da guerra civil e quase me impediu de visitar a região. Após o conflito, Rahmon reforçou seu controle sobre as elites locais, usando todas as armas necessárias para banir aqueles que representassem algum tipo de risco à sua hegemonia. Isso se traduziu na punição ao Partido do Renascimento Islâmico do Tajiquistão, que foi banido em 2015. A existência do partido, o único de cunho islâmico em toda a Ásia Central, havia sido um dos pilares do acordo de paz de 1997. Em flagrante desrespeito ao acordado há 20 anos, Rahmon eliminou o partido. Minha visita em 2012 mostrou um Tajiquistão sombrio, assustador, nas mãos implacáveis de um déspota que estampa seu rosto nos principais prédios. O Pamir, com sua identidade própria, respira com alívio sua relativa autonomia, refletindo talvez o isolamento físico das montanhas. Mas, como ocorreu em 2012, a qualquer momento o Tajiquistão pode voltar a explodir, e o Pamir certamente é um dos prováveis cenários para que isso ocorra de novo.

Cazaquistão e Quirguistão seguem basicamente os mesmos caminhos de 2012, com alguns desdobramentos que podem ter importantes implicações no futuro. No Quirguistão, o presidente Almazbek Atambayev conseguiu aprovar mudanças na constituição que foram severamente criticadas pela oposição e até mesmo por ex-aliados, como a ex-presidente Roza Otunbayeva. As mudanças, segundo a oposição, aumentaram os poderes do primeiro-ministro. Impedido de buscar a reeleição em outubro de 2017, Atambayev deve se manter muito próximo do poder com a esperada eleição de um aliado para a presidência e a sua própria provável indicação para, justamente, o cargo de primeiro-ministro. A reforma constitucional e a provável continuidade de Almazbek nas esferas de poder colocam em dúvida o único experimento de democracia ao estilo ocidental em toda a Ásia Central. No Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev é o grande sobrevivente - o último presidente da era soviética ainda no poder na região. Embora mantenha controle absoluto do país e um genuíno apoio especialmente em cidades grandes, o presidente, de 77 anos, parece cada vez mais olhar para seu próprio legado e a transição após sua morte. Embora tenha enfrentado um inesperada onda de protestos em 2016, forçando-o a mudar um projeto de lei que pretendia liberalizar a venda de terras para estrangeiros, o presidente em 2017 apoiou uma nova lei que reduz seus próprios poderes e aumenta os do parlamento. Para críticos, a mudança ainda significa pouco, já que não há oposição de verdade no país. Mas ela pode ser um sinal de que o presidente espera ver um novo universo político no Cazaquistão, mais pluralista, num futuro em que não esteja mais presente.

Se houve mudanças no universo centro-asiático, evidentemente também houve mudanças no meu próprio universo. Se em 2012 eu comemorava o fim de meu mestrado, com o inevitável retorno ao Brasil e a meu antigo emprego em 2013, hoje vivo um retorno à Inglaterra, onde vivi entre 1999 e 2006, assumindo novamente residência em 2014. Sinto que sou um ser mais pragmático e talvez menos aventureiro, mas quando as conversas me levam para o meu amado coração da Ásia, tudo muda de figura. O exercício de escrever Nos Desertos, nas Montanhas me levou de volta a algumas das grandes referências literárias de minha vida - autores que, certamente, um leitor atento poderá encontrar em vários trechos do meu trabalho. Em primeiro lugar e sempre, Ryzchard Kapucinski, em particular por seu trabalho em Imperium (1993), o livro em que o polonês vasculha o universo soviético. Em segundo lugar, o lirismo de Colin Thubron. E a seguir, muitos, muitos outros, desde os cronistas da antiguidade até os modernos, passando por Marco Polo e Ruy González de Clavijo. Com todos, tenho uma dívida imensa. Espero que as citações de seus trabalhos façam juz à qualidade de suas linhas e atraiam muitos mais viajantes a suas aventuras.

Londres, 27/09/2017

Leia aqui o primeiro capítulo: Bishkek

NOTA SOBRE TRADUÇÕES, CITAÇÕES E ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS

Nos Desertos, nas Montanhas contém uma infinidade de termos nas línguas locais e em russo. Procurei padronizar a forma como são escritos de acordo com a grafia que, em primeiro lugar, me pareceu a mais comum para o termo em português brasileiro ou, em segundo, a forma como aparece dicionarizada. Dessa forma, por exemplo, usei termos como "gaznévidas" (em inglês, "Ghaznevids") em vez de "ghasnávidas" ou mesmo "gasnávidas"); "Iurta" em vez de "yurta" ou "yurt"; ou "Genghis Khan" em vez de "Gingis Khan" ou outras variantes. Termos não dicionarizados, em língua estrangeira, aparecem grafados em itálico.

Todas as citações de outras obras no texto foram traduzidas por mim. Mantive os títulos das obras no idioma ao qual tive acesso às mesmas, não necessariamente o idioma em que foram escritas originalmente.

Por fim, cada capítulo começa com data a que o mesmo se refere e termina com a data e o local em que a entrada no diário foi escrita - não necessariamente a mesma abordada no capítulo.

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