Friday 27 April 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (LII): Fim

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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15/12-16/12/2012

Um pouco triste hoje. Pouco a pouco, as estrelas da minha passagem por Bishkek vão se apagando. Falta pouco para eu ir embora.

Ontem, me despedi da escola com farta distribuição de bombons a minhas professoras. Dois meses de russo intensivo tiveram o resultado esperado. Meu vocabulário se ampliou um bocado e, mais importante, sinto-me um pouco mais confiante na hora de falar. Mesmo cometendo erros, converso mais, sinto que me faço entender melhor. Mas esse é um esforço permanente, eterno, não posso parar nunca mais. Acho que, se eu tivesse feito o curso antes de minha viagem, os mal-entendidos, como o do Pamir, daquela vez que jurei que aquele lago era muito mais perto do que nosso motorista falou que era, poderiam ter sido evitados.

Despedi-me de uma menina simpática que conheci, Nazik, do Turcomenistão (meu eterno fantasma, o Turcomenistão, tão cobiçado, nunca visitado). Para o último papo, fomos a um café perto do teatro onde fomos assistir a um concerto o outro dia. Fascinante conversar com ela sobre a dor do fim da identidade soviética, sobre o estranhamento que é a busca por uma nova nacionalidade. Com inglês perfeito, vivendo há anos em Bishkek, Nazik insiste que eu não devo chamá-la de turcomana, apesar de ela ter nascido lá, apesar de toda sua família estar e viver lá. O pai é azerbaijano e a mãe é russa e ela está em Bishkek. Que símbolo de um legado que décadas e décadas de fim de URSS não apagam. Senti que eu era um alívio para ela, uma diversão, um ser exótico com preocupações irrelevantes, longe de traumas que sequer percebo existirem em sua vida. Alguém para compartilhar música erudita, balé e cafés. Com prazer, a ajudei a rir e passar o tempo. E ela, fazendo o mesmo por mim, me ajudou a entender mais este mundo.

Além da tristeza de me despedir de pessoas, há a tristeza de dizer adeus a lugares onde encontrei consolo para minha solidão. Os cantos onde carinhosamente me foi permitido deixar o exílio de lado e, por alguns momentos, lembrar das banalidades de casa. Os cafés Vanilla Sky e Cafeteria, o restaurante da loja Beta Stores, a pizzaria NY Pizza, uma confeitaria turca na esquina da rua Moskva com a avenida Sovietskaya, onde tantas vezes parei na volta da escola, onde comi bolo e vi a neve cair do lado de fora, pesada, pesada. E as montanhas não muito longe, visíveis da janela no primeiro andar da escola. Quanta beleza que não vai sair de mim nunca mais.


* * *

Quando você caminha sobre a neve e olha para o chão, às vezes a luz incide sobre os flocos de neve de uma forma que faz com que ela seja refletida diretamente na direção de seus olhos, como microespelhos, milhares deles. Você tem a impressão que está caminhando sobre estrelas. E as estrelas vão se apagando à medida que você caminha. Ou... se apagam repentinamente se você escorregar no gelo criado pela compactação da neve (após tanta gente caminhar pelo mesmo lugar). Outras estrelas se acendem depois do tombo (aí, são estrelas de dor, como nos desenhos animados, girando ao redor de sua cabeça!)

Lembrarei de Bishkek nos dois extremos, o calor imenso de quando comecei minha viagem e este chantili excessivo cobrindo todas as árvores, todas as ruas, todas as casas, todas as pessoas.

Pela avenida Chuy caminhei até um conhecido restaurante, o Jalal-abad, que eu tinha me prometido visitar antes de ir embora. No caminho, o frio ficou ainda mais cortante porque, pela primeira vez em meio a esta onda polar, o vento veio junto. A temperatura deve estar em torno de -20C, mas a sensação deve estar dez graus mais baixa que isso.

Cruzo com um vendedor de peixes na rua. O carrinho dele está na esquina de duas avenidas, colocado sobre o asfalto, perto da calçada. É uma visão surreal - os peixes estão lá, no carrinho, ao ar livre, congelados em cima de papelões. Parecem esculpidos, com os rabos virados para a direita e para esquerda, como se alguém tivesse interrompido de repente seus esforços para subir um rio contra a corrente, tirando-os da água, e logo em seguida eles tivessem ficado petrificados na mesma posição que estavam dentro do rio. São verdadeiras armas. Pegar um deles pelo rabo e dar com ele golpes na cabeça de alguém poderia matar facilmente a pessoa.

Continuo caminhando, pego meu celular, olho rapidamente a meteorologia no Brasil. Neste momento, em São Paulo, 28C, amanhã, 32C e subindo. Aquele calor de fundir a cuca dentro dos ônibus lotados. Nada poderia ser tão distante. E estou voltando para lá.

Uma lufada de vento ainda mais forte na Chuy, em frente à árvore de natal na praça Ala Too. Meu rosto queima nos locais onde não tenho barba. E onde os pelos protegem a pele, eles estão endurecidos. A sensação de congelamento da barba é muito estranha. Passando a mão sobre ela, tenho a impressão que alguém colou ela ali. Não parece minha. Puxo, puxo, não sinto nada até puxar muito mais forte.

Finalmente chego ao Jalal-abad. Um restaurante evidentemente bem turístico, com uma entrada com arco de madeira todo esculpido, a poucos metros do Palácio Presidencial. Mas, claro, no inverno não há turistas. Entro em seu salão e só encontro mesas com pessoas falando em quirguiz e russo. Num canto, parcialmente escondida atrás de biombos, há uma festa acontecendo. Há uma grande e baixa mesa redonda ao redor da qual mulheres estão sentadas, diretamente no carpete, sem cadeiras. No centro, uma grande travessa redonda, de proporções épicas, com uma montanha de um cheiroso plov. Que aroma de arroz com especiarias. Minha fome aumenta mais e não posso esperar nem mais um minuto. Peço o beshbarmak, o famoso prato quirguiz que eu já havia provado em Osh.

Carne de carneiro cozida, desfiada, embebida em caldo da carne e jogada sobre uma massa estilo talharini. Chegou bem quente e aromática à mesa, saindo vapor suficiente para defumar o ambiente à minha volta. Trazem um pão nan típico, redondo, fino e borrachudo, com os seus detalhes decorativos, circulos desenhados com furos que parecem feitos com garfos e sementes de papoula encravadas na crosta. Além disso, trazem um pequeno bule de chá. Um último brinde com chá preto, o que tomei em toda a viagem. Talvez o componente mais importante desta despedida. Claro, como também não poderia deixar de acontecer, queimei a língua.

Rasguei o pão, enfiei os dentes na carne desfiada, sorvi as tiras de macarrão, voltei a fazer tudo de novo. E de lá do outro lado do salão, por uma porta distante, entrou outro forte sopro de inverno. Estou bem defendido pelo movimento das mandíbulas, pelo garfo voador, pela xícara evaporante.

De volta à rua. Passo, indo para a minha última noite no apartamento de Ekaterina Vladimirovna, por uma casa de apostas. Cheia, lotada de homens fumando. Dezenas de TVs ligadas ao mesmo tempo, mostrando jogos de toda parte do mundo. Paro um pouco do lado de fora para reconhecer os times nas telas me sentindo totalmente excluído daquele ambiente, sem amigos, sem conhecidos, sem saber a língua e por isso sem poder me enturmar, sem ser fumante, sem ter dinheiro para gastar com apostas. Os times são os esperados, Chelsea, Inter, Real Madrid. Algum time russo, provavelmente, naquela tela em que jogam uniformes que não conheço. E, de repente percebo, em uma das TVs principais, bem à vista da rua, um uniforme bem conhecido. No Brasil, a nação corintiana acorda cedo para acompanhar no Japão seu time conquistar seu primeiro mundial. Em Bishkek, já é noitinha. E os quirquizes acompanham atentos e erguem os braços e gritam - gol!

Fico uns bons 20 minutos no frio olhando para a TV lá dentro. Primeiro torço ferrenhamente contra os corintianos, como exige meu coração santista. Depois, a simpatia dos quirguizes pelo time desconhecido do distante Brasil me contagia. Não importa que muitos provavelmente só estivessem assistindo ao jogo porque apostavam dinheiro. Muitos outros pareceram genuinamente torcer para o time da minha cidade. Me sinto como se os quirguizes estivessem torcendo para mim. Quem diria: por fim, sim, sorrio e torço pelo Corinthians. Me junto a eles, ficamos eu e os quirguizes, juntos, vibrando. Eles lá dentro, eu, aqui fora.

Volto para o meu velho edifício soviético - sinto mais frio ainda agora, talvez por eu ter ficado tanto tempo na rua. Que alívio entrar, voltar à velha paisagem do meu quarto, minha caminha no chão. Tudo velho aqui dentro, o cheiro eterno de sopa na cozinha no andar de baixo. Tamanha nostalgia antecipada. Nostalgia de Bishkek, do Quirguistão, do Tajiquistão, do Uzbequistão, do Cazaquistão, dos amigos, dos desconhecidos, das línguas infinitas que sei e desconheço, de panoramas que sequer cheguei a tocar direito. Dos desertos. Das montanhas.

Apago a luz, deito na cama, puxo as cobertas.

O vento uiva alto de novo lá fora. Uma lufada de neve.

Confortável, doce aqui dentro. Mas enlouqueço pensando em tudo que está lá fora e não conheço, tudo o que está lá fora e quero traduzir, descrever, pintar, imaginar, reimaginar e sonhar.


Fecho os olhos.

Bishkek, 16/12, 22h35






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4 comments:

  1. Linda trajetória!!! Sim, isso é mais que uma simples viagem! Mal posso esperar pelas histórias da nova aventura!!!!!

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  2. Rafael, meus parabéns pelo maguinifico texto, ele me proporcionou uma rara oportunidade de conhecer uma região culturalmente rica e repleta de história, infelizmente tão desconhecida.

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  3. Maravilha de relato! Melhor ainda que terminou com vitória do Corinthians:)

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  4. Achei poética a sua visão de caminhar sobre estrelas olhando os reflexos da neve. Tão bela, que daria o título a este epílogo "Caminhando sobre estrelas" (porque fim, sabemos, não é...)

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