Wednesday 11 April 2018

Nos Desertos, Nas Montanhas (XLVII): Bishkek

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13 e 14/10/2012

Solar, sorridente Bishkek!

Vou lembrar para sempre o momento em que desci da van na avenida Jibek Jolu e comecei a caminhar, mochila nas costas, de volta ao mesmo hotel onde fiquei na primeira noite na capital quirguiz, antes das sete semanas de viagem. Um retorno, antecedendo outros - logo, a volta a Londres, depois, a volta ao Brasil.

Mais cedo, em Naryn, me despedi da séria e sábia suíça, com quem em At Bashi tive várias conversas sobre nosso caminho espiritual, circulando pelo cemitério dos fantasmas dourados. Foram discussões sobre nossos pais e como nos relacionamos com eles, sobre nossos amores e o que dizer a eles, nossa liberdade e as longas jornadas dedicadas a ela. Jornadas difíceis, elucidativas. Prometemos nos escrever. Eu sabia que nunca mais nos falaríamos.

Embarquei na primeira van que encontrei para Bishkek. Uma jornada de cinco horas até a capital, cinco horas que me pareciam quase nada antes mesmo de começar. Hipnotizei-me logo após o embarque. Olhos fixos na estrada, nada mais. O caminho foi me trazendo vistas familiares: primeiro Koshkor, depois o Desfiladeiro do Cadarço, e então, as cidadezinhas de Tokmok e Kant, já perto de Bishkek.

A atenção na janela me ajudou a evitar o desconforto contumaz que outros enfrentaram no meu lugar. Ao meu lado, uma senhora de meia idade que praticamente vomitou o caminho inteiro dentro de um saco plástico, e, ao lado dela, uma mulher mais jovem e um garotinho de uns três anos, igualmente com náuseas. Atrás, um garoto de dez anos com mais vômitos. Um cheiro azedo tomou a van o caminho inteiro. Mas nenhum enjoo me atormentou, nada. Vivi apenas o caminho, descidas, subidas. Eu não estava dentro da van, eu estava fora, voando.


* * *

Os prédios residenciais soviéticos todos se parecem com o do apartamento em que dormi em Naryn. São grandes estruturas de concreto com fachadas às vezes com alguma decoração - geralmente algum detalhe geométrico que sugere alguma identidade com a cultura local. Tirando isso, são caixas cinzas, tristes, puramente funcionais, eficientes para barrar o frio e sem mais. Estes conviviam nos tempos da URSS com edificações desenhadas para inspirar o povo... palácios imensos com aparência futurista. Estes eram reservados para momentos especiais da vida. Tirando estes momentos, contudo, se vivia sem nenhum glamour.

E fui morar em um caixote soviético. Apesar da aparência enfadonha, admito que fiquei feliz ao saber que a minha futura moradia pelos próximos dois meses em Bishkek, onde vou estudar russo, seria em um desses.

Subi até o quarto andar pelas escadas escuras, bufando por carregar a mala pesada que eu havia recuperado do hotel onde passei a noite após chegar de Naryn. No alto, me esperava com a porta aberta Ekaterina Vladimirovna. Ekaterina, uma designer de uns 50 anos, com ouro radiante nos dentes incisivos que ela exibe em sorrisos pouco frequentes, vive no apartamento com os filhos Marat, de 9 anos, e Misha, de 15, além do irmão dela, também Misha, um senhor de uns 55 anos. Nenhum sinal do marido - que, segundo ela, estava na Polônia e não voltaria nem para o Natal. Ele é um dos milhões de imigrantes econômicos da Ásia Central, sustentando a região por meio de remessas de dinheiro.

O apartamento é muito bem localizado, no centro de Bishkek, e bem mais espaçoso do que eu imaginava. Embaixo, uma cozinha, um banheiro e uma sala de estar, de onde sai uma escada para os quartos e outro banheiro com o único chuveiro do imóvel, no andar de cima. Dito isso, é pequeno para mim e para toda a família: com minha chegada, assumi o quarto de Ekaterina, que passaria a dormir na mesma cama que as crianças no outro quarto, ao lado do meu. Misha ficaria dormindo no lugar em que já estava, numa cama colocada em frente à TV na sala de estar.

Todo o lugar tem uma aura de velho. No meu quarto, um papel de parede com formas abstratas que me lembra os anos 70 e alguns móveis bem gastos pelo tempo. A cama de molas faz um barulho alto e incômodo a qualquer pequeno movimento, e o colchão está deformado, com um vão no meio (o que deixa em forma de V), após tantos anos de uso. Para salvar as minhas costas, prontamente mudei lençol, travesseiro e cobertor para o chão.

Nas paredes do corredor, um papel de parede estranhíssimo, em formas de pastilhas quadradas de aproximadamente sete por sete centímetros, mas acolchoadas. Ou seja, a mão afunda nas paredes, algo que, imagino eu, seja especialmente eficiente para evitar que crianças (ou bêbados) se machuquem. O chão é de tábuas de madeira pintadas de marrom, reluzentes. O banheiro no segundo andar é pequeno demais e tem tanta coisa que você fica esbarrando em tudo. Tem um vaso sanitário que não funciona e fica tampado permanentemente, sobre o qual ficam baldes e roupas. O chuveiro, que fica sobre uma banheira pequena, não tem onde ser pendurado - você toma banho segurando-o em cima de sua cabeça. Sobre a banheira, há o varal da casa, e ao lado dela, um pequeno barril de aço: uma máquina de lavar antiga, dos tempos soviéticos.

No andar de baixo, na sala de estar, a TV está permanentemente ligada, dia e noite. Há um corredor que dá acesso a uma cozinha, ao banheiro e à porta de saída. Na cozinha, há uma mesa de jantar onde mal cabem quatro pessoas sentadas, um fogão e uma geladeira também velhos.

Apesar de ter uma aparência desgastada, o apartamento é todo muito limpo, sem cheiros, a não ser o da comida na cozinha.

Acho que vou gostar de morar daqui.

Bishkek, 14/10, 22h14

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