O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
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Khiva, 03/06/2003
O táxi atravessou parte da cidade - seca, árida, solar - e, de repente, nos deparamos com as muralhas de barro. São muralhas incomuns, as de Khiva. Como todas as demais edificações do seu centro histórico, são de cor areia, feitas com uma lama misturada com feno. Altas, sólidas, grossas, as muralhas delimitam uma máquina do tempo em uma cidade que seria, caso contrário, um nada na luz implacável do meio-dia. Em curvas, côncavas e convexas, elas são algo grandioso. Um monumento à vitória humana sobre os quilômetros infinitos de areia fervente e estepes rachadas entre os desertos do Kyzylkum e do Karakum, entre os russos e os persas, entre os mongóis e os turcos, entre ontem e amanhã.
Khiva, ou melhor, o seu centro histórico, chamado de Ichon-Qala, foi a capital de um reino que muito orgulha os locais. Mas o orgulho vem junto com a vergonha, com o medo, com sentimentos negativos que estão tão profundamente enraizados que já não é mais possível definir de que forma eles se fazem presentes no dia-a-dia. As muralhas são formidáveis, mas são cruéis. Era dentro delas que os nômades turcomanos, vindos do sul, negociavam os pobres coitados que, durante séculos, cometiam o erro de se aventurar por estas terras secas, tentando seguir os passos de Alexandre, o Grande. Era dentro delas que nômades cazaques faziam o mesmo. Era de dentro dessas muralhas que o rei, ou khan - sanguinário ou sábio na sua justiça diária, condenando seus réus-vítimas a mortes indizíveis - comandou uma terra cujos primeiros registros foram os do próprio pai da história, o grego Heródoto. Nos seus tempos, Khiva fazia parte de uma província do Império Persa - tão distante, tão obscura. Essa província era chamada de Corásmia, que é o mesmo nome desta província da atual república do Uzbequistão, o mesmo nome desde o século VI antes de Cristo.
O dia havia começado muito bem. Levantei às 5h40, acertei tudo no meu hotel em Tashkent e fui para o aeroporto apanhar meu voo para Urgench - uma cidade maior próxima a Khiva, conhecida como sua porta de entrada. Antes de embarcar, aguardando na fila para a pista do aeroporto, reconheci os dois franceses que havia encontrado no dia anterior perto do Khast Imom. Conversamos. Jean-Marie e Olivier trabalham em agências de turismo e, à medida que eu os ouvia falar, concluía mais e mais de que se tratavam de dois viajantes profissionais - aqueles que não temem ir a zonas de guerra ou terras em litígio, nem a países onde não se fale um idioma nem remotamente inteligível, se nesses locais houver um templo ou um ponto turístico de interesse. Olivier, o mais alto e moreno, me mostrou seu passaporte. "Estive no Turcomenistão no ano passado", disse, pouco antes de rir com minha cara de espanto (o Turcomenistão é uma espécie de Coreia do Norte da Ásia Central: um país fechadíssimo, imensamente misterioso, para o qual tentei arranjar visto três vezes sem ao menos receber uma carta do governo me explicando porque estava me ignorando). "E, nesta viagem, estamos indo para o Tajiquistão", disse Jean-Marie, o baixinho loiro, antes de rir da minha cara de espanto duplo (o Tajiquistão é considerado o país mais pobre e perigoso da Ásia Central, e ainda se recupera de uma longa guerra civil iniciada logo após sua independência, em 1991). Para minha sorte, descobri que em quase todo o trajeto que eles fariam no Uzbequistão eles estariam nas mesmas cidades que eu, e também o mesmo número de dias. Em Samarkand, nos separaríamos: eles embarcariam na aventura tajique e eu, em uma aventura de dois dias no Vale de Fergana, no extremo leste uzbeque. Que coisa. Se eu estava inseguro quanto a viajar numa terra tão logisticamente difícil, minhas preces por ajuda divina haviam sido atendidas. Só fiquei me perguntando (por pouco tempo) que vantagem eles teriam de me ter, como aceitaram, a tiracolo.
* * *
Khiva, do ponto de vista humano, me deixou perplexo. Saindo de Tashkent, uma cidade russa/uzbeque, esperava ver o mesmo tipo de dicotomia espalhada pelo país. Mas logo essa expectativa se evaporou: Não só não vi russos na cidade como também a língua russa pareceu ter quase desaparecido. Não das velhas placas, mas do dia a dia. Nem mesmo os mais velhos parecem lembrar muito. Pior: Estamos perto da fronteira com o Turcomenistão, e há alguns que falam turcomano. Também estamos perto da fronteira com uma república autônoma dentro do Uzbequistão, a república de Caracalpaquistão, onde novamente se fala uma língua própria, o caracalpaque - que se parece mais com cazaque do que com uzbeque. Levando em conta que poucas pessoas sabem falar inglês, é realmente difícil entender como esse povo consegue conversar entre si e com os turistas.
Não obstante, a língua é a última coisa que me veio à cabeça ao chegar à cidade.
Khiva é um lugar estranho. Seu coração histórico, diferentemente do de outras cidades centro-asiáticas, está inteiramente preservado - tão bem preservado que a vida foi quase espremida para fora dele.
- Guia Lonely Planet, Central Asia, 2ª edição, 2000
Difícil definir este estranho local sem falar dos últimos séculos e relembrar alguns dos momentos mais importantes da história da humanidade. A milenar capital da Corásmia é Konye Urgench, ou Velha Urgench - uma cidade que, por ironia do mapa traçado pelos soviéticos, ficou do lado turcomano da fronteira e hoje, por causa do isolamento do Turcomenistão, nem sequer pode ser visitada por muitas pessoas com raízes na Corásmia. Mas Khiva, que assumiu o status de capital pela primeira vez em 1592, foi a última capital da Corásmia independente, o reino (ou khanato, como é chamado aqui, por ter tido como monarca um khan) que deixou de existir em 1920, quando passou a ser uma república. Ainda de jure independente, pequena e frágil, se manteve separada dos soviéticos até 1924, quando foi finalmente incorporada à URSS. Até antes da chegada dos russos no século XIX, o khanato de Khiva disputava poder com outros pequenos reinos de então, os khanatos de Bukhara e de Kokand, ambos no atual Uzbequistão.
Voltando no tempo até antes de Heródoto está a lenda. A cidade teria sido fundada pelo filho de Noé, Sem, que teria encontrado um poço com água fresca no local. O poço da lenda existe até hoje, no canto noroeste de Ichon-Qala. Depois do filho de Noé, o local foi ocupado pelos persas e, daí, por uma sucessão de povos e conquistadores. Veio Alexandre, o Grande, em cerca de 328 a.C.; Vieram chineses, novamente persas, os hunos, turcos azuis (ou Kök); vieram os árabes, no século VII, e depois turcos seljúcidas; Veio Genghis Khan, no século XIII, e depois Tamerlão, no século XIV; Os uzbeques, um povo originalmente nômade que vivia ao norte do Mar de Aral, viriam no século XVI e depois disso, mais idas e vindas conduziram a cidade aos domínios dos vermelhos moscovitas. Até antes da conquista russa, a cidade era bastante conhecida justamente por ser o maior centro de comércio de escravos na Ásia Central e, possivelmente, de todo o Oriente.
Ichon-Qala é uma cidade-museu. Seus prédios foram todos restaurados e abrigam palácios vazios, mausoléus visitados com periodicidade irregular pelos moradores de Khiva, mesquitas pequenas e madrassas desocupadas. Há pessoas que moram em Ichon-Qala, mas são poucas - o que se vê mais são os locais andando de lá para cá, usando o centro como um atalho para chegar ao outro lado da cidade. As ruas são limpíssimas. A sua principal via de acesso é ocupada por vendedores de lembranças, que pulam de felicidade quando aparecem os ônibus de excursão, que geralmente trazem europeus. Esses ônibus - vi apenas um, com franceses - trazem vida e agitação às ruas de Ichon-Qala que, do contrário, seriam perfeitas demais, irreais demais. Mortas demais. Como bem convém a uma cidade-fantasma mantida no formol do calor da Ásia Central.
Logo na entrada de Ichon-Qala fica a chamada Ark, o palácio do khan de Khiva. Não significa arca, como em inglês, significa fortaleza, e por isso não tem nenhuma relação com o pai do suposto fundador da cidade. Dentro dela, há um museu que, por meio de mapas, mostra o avanço confuso dos diferentes povos que conquistaram a região.
A sala do trono do khan é mais um local de lendas. Toda revestida de azulejos azuis com detalhes brancos, tem um teto alto sustentado por pilastras esculpidas de madeira e só três paredes, o que permite que o vento, captado lá no alto, circule melhor. Atrás de onde ficaria o trono, há três portas. Dizem que o khan, quando encarregado de julgar um criminoso, enviava o réu para a porta da esquerda se decidia que ele deveria ser libertado; para a porta do meio se decidia que ele deveria ser mantido preso; e para a porta da direita, se decidia que ele deveria ser executado. Pode-se subir tudo, até um terraço do palácio, bem em cima da muralha, de onde se tem uma linda visão de todo o complexo bege da cidade velha. O que se destaca mais na vista lá de cima são três grandes minaretes - magníficas estruturas que refletem como prismas o sol. Um deles, perto da Ark, é baixo, completamente coberto por linhas sucessivas de azulejos, criando mosaicos azuis que se mesclam com a cor intensa do céu sem nuvens. O minarete, chamado de Kalta Minor, parece nunca ter sido completado. Aparentemente, se tivesse sido, seria um dos mais altos do mundo. Outro minarete, o Islom Huja, é o contrário, magro e se estica no céu. É o mais alto da cidade (45 metros), um verdadeiro imã para os olhos e para os pés. Subi-lo pela espiral de degraus íngremes, no escuro calor, na companhia das piadas de meus dois novos amigos franceses, foi cansativo e não foi. O suor se misturou ao sorriso. Fiquei me perguntando - quantos brasileiros já estiveram aqui? Quantos um dia vão estar? "No ano passado, recebemos uns seis", disse um dos donos do hotel Arqonchi, que fica em Ichon-Qala, onde pernoitei. "Mas você é o primeiro, e único, neste ano." Quem são vocês, meus compatriotas, que cruzaram o planeta como eu para conhecer um local tão improvável?
Descobri depois que os azulejos azuis, que me chamaram tanto a atenção na Ark, são algo comum nas dezenas de madrassas, mesquitas e mausoléus. Os tetos são especiais, esculpidos com motivos geométricos e coloridos, parecendo tapetes persas. E as pilastras sustentando os tetos são sempre ricamente esculpidas. A técnica para dar forma a esses troncos parece ser uma tradição local, que está sendo passada a uma nova geração de entusiasmados artesãos em Ichon-Qala.
Perto do mausoléu de Pahlavon Makhmud, outro lindo prédio da cidade velha, o entoar de um suave cântico islâmico por um mulá afastou meus olhos da técnica de um jovem que esculpia um grande tronco numa oficina ao lado. O cântico, suave e hipnoticamente repetitivo, reverberava na brisa fervente, ecoava dentro dos meus ouvidos e na minha cabeça. Talvez o cântico estivesse no ar há um bom tempo, desde quando eu comecei a caminhar pela cidade. Talvez até nunca tivesse deixado de ser entoado desde os tempos dos khans.
Cheguei até o mausoléu. Adentrei seu humilde portão de tijolos ocres. Tirei meus sapatos. Pisei no tapete de uma sala redonda, alta e fresca - com paredes completamente cobertas por azulejos azuis, alguns com misteriosas inscrições em árabe. Os azulejos seguiam até o teto, onde ficava a cúpula coberta por azul do lado de fora, facilmente identificável de qualquer ponto de Ichon-Qala. O mulá estava sentado do lado direito, no chão. Algumas pessoas estavam sentadas à frente dele, em um silêncio reverente, com as mãos abertas na altura do peito e voltadas para o teto, como se esperando algo lhe cair dos céus. Uma sensação de veneração tão grande.
Ao sair do mausoléu, cruzei com um grupo de mulheres uzbeques que sorriu para mim. Usavam vestidos longos, cor de rosa, vermelho, branco. Dentes de ouro, cabelos presos numa única trança, a sombrinha também colorida para proteger do sol, sem pressa a caminhar. Poucos turistas por aqui. Tanta beleza para ser vista.
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