Sunday 5 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (I)

O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?

Tashkent, 31/05/2003

Estou muito, muito nervoso com esta viagem. Agora há pouco, chegando a Tashkent, olhei pela janela do avião e me veio de novo aquela sensação de insegurança por não saber falar a língua local, por estar sozinho. Mas, ao mesmo tempo, sinto que esse medo está fundido com o desafio, com a vontade de domar este lugar tão difícil de conhecer, mas sem a companhia de ninguém. Sabendo que, provavelmente, meus amigos nunca virão para cá.

"Você vai para o Uzbequistão, de férias? Por quê?", muitos deles me perguntaram. "Tem alguma coisa para fazer lá?", refraseou, no mesmo espírito, meu irmão. Para quase todos, é a mesma reação que vem à tona: se há tantos lugares para se visitar, por que ir para o centro da Ásia, para um país que faz fronteira com o Afeganistão, onde há suspeita de atividade de extremistas islâmicos, onde a natureza foi destruída pela ânsia industrial dos tempos soviéticos? A resposta vem desde os tempos de Marco Polo, o mercador italiano que, tendo sido o primeiro ocidental a realizar a jornada à China e voltar, escreveu em seu diário sobre as belezas secretas desta região do mundo. Enfrentar a rota da seda, antes do avanço das navegações no final do século 15, era a única forma de difundir nos ricos mercados europeus as especiarias e todo o exotismo daqueles mundos cheirosos, coloridos, que povoavam o imaginários de espanhóis, ingleses e vênetos. Um mundo distante, perdido em meio a desertos desconhecidos, em meio a mares sem mapas, em meio a povos e clãs que nunca ouviram falar de nosso universo.

A viagem foi sem problemas. Em Londres, fazia muito sol, mas foi só o avião entrar no leste da Europa para começar a só sobrevoar nuvens. Vim de Aeroflot, a temível empresa aérea russa que, numa incomum manifestação de anacronismo, mantém a foice e o martelo em seu logotipo. Contudo, tudo foi bem mais tranquilo do que pensei. Os atendentes de bordo foram simpáticos - algo realmente estranho, vindo de russos. Pena que a comida não me agradou muito. Tanto na viagem Londres/Moscou como no trecho Moscou/Tashkent, o prato principal foi peixe, sem nenhuma outra opção disponível. E peixe não é, exatamente, minha carne favorita.

No impronunciável aeroporto de Moscou, senti um pouco do gostinho do drama da língua. Tive um probleminha na transferência de um voo para outro, algo meio inevitável. Na hora de falar com alguém e pedir informações, até me senti confiante, mas foi só a pessoa responder para eu perceber que o grande problema nem é falar, é entender o que as pessoas dizem. Ninguém, obviamente, fala devagar. Principalmente se você deixa claro que sabe um pouquinho de russo. E conhecimento de inglês na Rússia, mesmo num aeroporto internacional, é ainda pior do que no Brasil: alguns falam sim, mas falam mal, muito mal.

Ao chegar a Tashkent, a coisa piorou. Uma daquelas heranças ridículas dos tempos soviéticos é a necessidade de preencher um formulário, ao chegar ao país, dizendo exatamente quanto dinheiro você tem. Mas, ao chegar ao aeroporto da capital uzbeque, não encontrei formulários em inglês - só em uzbeque, alemão e russo. Tentei encarar o russo, só para depois de dois minutos largar a toalha e pedir para um funcionário procurar, pelo amor de Deus, o tal do formulário em inglês no almoxarifado. O pedido, aliás, foi em russo. O russo que, mais do que nunca, percebi que só me ajudaria em caso de desespero.

Fui apresentado a Tashkent em 2001. Fiquei na cidade por três dias para fazer uma reportagem sobre os dez anos do final da União Soviética. Já naquela época, a grande motivação da minha visita foi literária. Eu havia proposto a reportagem, e a visita ao Uzbequistão, após ler o divino Imperium, um livro de memórias do polonês Ryszard Kapuscinsky, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. No livro, Kapuscinsky, considerado por alguns o maior correspondente de guerra que já viveu, descreve uma viagem que fez por vários países soviéticos do centro da Ásia no auge da União Soviética, e depois narra uma viagem parecida que fez entre 1989 e 1991, quando a colossal estrutura do politburo moscovita ruiu, vítima do reformismo de Mikhail Gorbachov. Mesclei as breves reflexões sobre Bukhara e sobre a Samarkand "que até hoje estonteia pela beleza única" à visão de Marco Polo. E, na minha imaginação, todo o patrimônio persa, turco e grego da região se tornou assim ainda mais atraente.

E mais além. O Uzbequistão foi um dos locais mais distantes onde ecoou a revolução bolchevique. Até que ponto aquela cultura secular havia sido afetada pelo ideal comunista? Até que ponto o povo havia mudado? Isso o que fui investigar.

Tashkent, vindo para cá para o hotel, me passou a mesma impressão da primeira vez. Me sinto, de alguma forma que não sei explicar direito, em uma cidade do interior de São Paulo. As árvores e o mato nas calçadas, a cor da luz dos postes, o vazio das ruas à noite, até o cheiro da brisa... Parece que, a qualquer momento, vou cruzar com um ônibus da viação Mantiqueira, fazendo o trajeto de alguma cidade do Vale do Paraíba para a rodoviária do Tietê. Sou tomado por um ar interiorano, no meio da noite; mas, ao mesmo tempo, as avenidas imensas e os detalhes dos prédios, mosaicos e pinturas geométricas, me dão a certeza de que estou numa terra muito, muito distante.

Estou cansado. Cheguei às 2h30 e amanhã tenho que levantar antes das 10h30 para arrumar minhas coisas e pegar o café da manhã, que só é servido até as 11h. Faz calor. Espero que não tenha mosquito no quarto. Parece que tem.

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