Thursday 22 June 2023

Novas Fronteiras (XXIX) - Mary, Turcomenistão



O que é "Novas Fronteiras"?
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Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

27/8/2018

"É um caminho duro", disse T. Suava em grossos rios que se misturavam com a poeira do ar e enlameavam suas têmporas.

Pulávamos entre um buraco e outro, sem parar. T não parecia inclinado a ir mais lentamente. Conhecia bem o caminho e era evidente que não tinha grande prazer em percorrer a distância, mas talvez, sim, prazer em manter a alta velocidade. "É longe, não temos tempo", disse.

E depois disse de novo.

Gonur-Tepe apareceu após 2h30 de carro pelo deserto a partir da cidade de Mary, no sudeste do Turcomenistão, a cerca de 300 km de Ashgabat. Para chegar ao sítio arqueológico, passa-se pelo menos uma hora driblando dunas. O caminho é quase inteiramente off-road. Ele desaparece e reaparece aleatoriamente de acordo com o vento, algo muito semelhante ao que acontece com o caminho pelo leito do Mar de Aral de dias atrás. Esse acesso a Gonur só é mantido aberto pelos carros que se aventuram a levar turistas e curiosos, que, sem dúvida, precisam de muita teimosia para não desistirem no caminho.

Na chegada, uma casinha nos esperava. No meio do nada. Havia um toldo para deixar o carro na sombra e um caseiro, o único humano em léguas. Uma placa. Sim, este é o local. O sol estava horroroso, fortíssimo.

O caseiro e seu cachorro ruidoso pareceram muito felizes em nos receber. O senhor falou em turcomeno com nosso motorista, aparentava não entender nem falar nada de russo. Indicou o caminho, uma trilha ao lado da placa. Não havia sombra nenhuma. Algumas moscas zombavam da minha orelha apenas bem de vez em quando, preguiçosas em fazer o trabalho de me incomodar nesse ar escaldante. Ajeitei o chapéu. No caminho da trilha, já via as ruínas.

Gonur-Tepe é um sonho. O sonho de um só homem, um arqueólogo soviético de origem grega, Viktor Sarianidi. Ele passou a maior parte de sua existência nesta terra inóspita, torrando a pele, sendo cegado pela luz e asfixiado pela poeira, para trazer à vida um dos maiores assentamentos da Era do Bronze em toda a Ásia Central, quiçá no mundo. São cerca de 550 mil metros quadrados de ruínas.

Sarianidi, um sujeito com bigode e ar sonhador, parecia à primeira vista um daqueles pescadores de ilhas gregas, relaxados com a vida e com o universo, em busca de seu peixe diário nas águas azuis do Egeu. Que estranho que com esse jeito fosse parar tão longe do oceano para pescar um peixe tão especial. Foi o responsável pela descoberta do sítio nos anos 1950. Neste local um dia passava um rio, o Murghab, que permitiu a criação do grande assentamento, erguido, ao que indicam os estudos, entre 2400 e 1600 a.C. No entanto, o local onde fica o sítio teria sido ocupado primeiramente a partir de 7000 a.C., e os primeiros colonos deram início à agricultura nas margens do rio. As escavações começaram na década de 1970, e Gonur-Tepe foi identificado como parte do Complexo Arqueológico Margiana-Báctria, também conhecido como "Civilização do Oxus", uma das inúmeras que surgiram na Ásia na Era do Bronze. Foram descobertos, no local, três núcleos de construções. O principal, que seria o centro da cidade ancestral, foi apelidado de "Gonur Norte": fortificado, em formato elíptico, o assentamento abrigava um palácio, casas e templos. O palácio tinha uma vasta despensa e câmaras diversas, entre elas possivelmente uma sala do trono para os monarcas locais. O segundo núcleo era um imenso cemitério, com mais de 3 mil tumbas, atestando a dimensão da cidade em seu auge, e o terceiro, "Gonur Sul", teria sido habitado depois de Gonur Norte.

Seguindo pela trilha, eu e F nos vimos em um labirinto de passagens escavadas, ainda quase sem sentido, quase terra sem forma, e passagens reconstruídas. Logo nos separamos; fui por uma muralha dentro da área reconstruída e fui parar em Gonur Norte. Em questão de um minuto, perdi F completamente de vista, dada a imensidão do sítio.

Sarianidi encontrou diversos tesouros em Gonur, alguns de grande valor material e, outros, de grande importância científica. Copos e potes de ouro e prata, um mosaico colorido mostrando o que parece ser um leão alado, um adorno de ouro para espadas. Achou câmaras onde aparentemente se realizavam sacrifícios, humanos e animais. Ele também arrancou da terra esqueletos de cavalos. Conta-se que os esqueletos intrigaram Sarianidi, já que até então não havia indícios de que o animal tivesse chegado à Ásia Central tão cedo, na época de Gonur. Logo, o arqueólogo pôde desenvolver uma teoria de que os assentamentos no Murghab se originaram de ondas migratórias vindas do levante e da Ásia Menor, onde o cavalo, sim, estava presente. Tal teoria se chocou com outra que indicava que o assentamento teria se originado de fluxos migratórios vindos das estepes ao norte, visto que em Gonur foram encontrados fragmentos de um tipo de cerâmica encontrada nessas estepes. A discussão científica ficou no ar, mas, se há algo presente em abundância no sítio são fragmentos de potes — copos, cálices e ânforas, todos feitos de argila. É impressionante: eles estão em toda a parte, alguns quase inteiros, alguns semienterrados e tentadoramente à mostra, deixados lá por Sarianidi para ajudar o visitante a viajar no tempo e ver mais facilmente o que o complexo representou. Os mais chamativos fragmentos são de fato as grandes ânforas, usadas para guardar azeite, água e grãos dentro do palácio. Em algumas delas, é possível ver desenhos, padrões geométricos decorativos. Alguém, há milênios, muito antes de Penjikent e em outros sítios arqueológicos antiquíssimos desta terra, fez essas marcas agora esquecidas no sol.

Em alguns desses potes foram identificados tentadores traços de substâncias narcóticas, como ópio e maconha. Tais traços indicam que os objetos eram usados em cerimônias rituais associadas a uma das mais antigas religiões, o zoroastrismo. No local, foram também encontrados indícios da construção de templos de fogo associados à religião. Sarianidi acreditava que Zoroastro poderia teria nascido em um dos assentamentos da civilização da qual Gonur fazia parte. O sítio então poderia indicar um ponto de partida para a religião, que primeiro teria aparecido na civilização à beira do Murghab, depois na lendária cidade de Merv (cujos restos são vizinhos a Gonur) e então na Pérsia, ao sul, e no norte, onde ficaria associada com os sogdianos. Novamente, especulações do grego sonhador.

Outra descoberta cientificamente importante feita por Sarianidi em Gonur foram rodas — algumas das mais antigas já localizadas. Parece certo que o objeto que mudou o curso do mundo surgiu no neolítico, mas onde, exatamente, é motivo de debates. Talvez a única certeza é que surgiu na Ásia, em algum ponto de uma vasta região entre a Ásia Menor e a Ásia Central, passando pela Síria, Mesopotâmia e Irã. Sarianidi achou a roda juntamente com esqueletos de cavalos (restos de uma carroça?). Esse conjunto, protegido dos elementos por uma casinha, pode ser visto em Gonur. Que bom que não foi removido para algum museu.

Como em tantos sítios arqueológicos, é muito difícil desenhar na cabeça o que era, exatamente, Gonur. Após uma hora caminhando, minha cabeça já estava dando voltas. O pensamento foi se voltando para outros lados.

Sentei-me em um canto, protegido pelo meu chapéu. Fiquei pensando em Sarianidi. Em pessoas com obsessões estranhas, que não são compartilhadas por quase ninguém ou, talvez, por ninguém. O mundo parece um elemento hostil quando sua paixão se volta para algo que todos ignoram, ou desprezam, ou simplesmente não querem conhecer por que têm outras prioridades. Imaginei o grego: perdido no nada, cavocando a secura, revelando ânforas, tratando de se convencer todos os dias de que seu trabalho era importante. Era e é importante. Mas para quem?

E veio sua morte, em 2013. Uma breve vida de 84 anos dedicada a revelar o oculto por séculos e séculos e séculos.

Compartilho seu isolamento espiritual, intelectual. Sua impotência frente ao tempo.

No horizonte, em todas as direções, terra seca que Sarianidi ainda esperava explorar melhor. Não sei se alguém vai voltar aqui um dia e continuar esse trabalho. Tomara que sim.

E que esse novo arqueólogo, como seu antecessor, se baste com sua admirável paixão.

* * *

Perto de Gonur fica Mary, a capital desta região do Turcomenistão. A cidade, com cerca de 130 mil habitantes, está longe de ser uma pequena Ashgabat. A capital do país parece ser imbatível em todos os quesitos de exagero que pautam o governo do presidente Gurbanguly Berdimuhamedow — monumentos caríssimos sobre temas insólitos, palácios nababescos, avenidas superdimensionadas — o que reforça a minha crença de que o líder turcomeno investe todas suas fichas em transformar Ashgabat no símbolo único da evolução, riqueza e orgulho do povo do Turcomenistão, ainda que às custas de pobreza em outras partes do país.

Tanto em Mary quanto na capital do país há uma abundância inevitável de cartazes com retratos do Arkadag Berdimuhamedow, a propaganda que alimenta seu chocante culto de personalidade. Contudo, em Mary, diferentemente de Ashgabat, não me sinto sendo vigiado o tempo todo por policiais à paisana, o que me deu incentivo para apreciar mais, e mais longamente, o surrealismo de tais obras. Fui caminhar pela cidade. Logo encontrei na avenida principal, na fachada de um prédio que imagino seja uma sede das Forças Armadas, o presidente retratado impecavelmente vestido com farda e quepe, com uma pose de bravura, o perfeito comandante-em-chefe. Em outro prédio do governo, quase em frente, o polivalente líder aparece em outro retrato gigante, desta vez com um franco e cativante sorriso, vestindo terno e gravata, cabelo primorosamente partido e penteado — caso outdoors exalassem aromas, seu perfume de lavanda seria enfeitiçante. Por fim, descendo a mesma via, em frente a uma mesquita gigante, com uma cúpula parecendo um grande ovo de páscoa, Berdimuhamedow aparece em outro cartaz em mais uma persona, a de religioso. Chapéu (é bem visto o muçulmano cobrir a cabeça na mesquita), mãos em gesto de prece, unidas e abertas com as palmas viradas para cima, rosto transcendente. Nada assim vi nos outros quatro países da Ásia Central. O mais próximo disso, o Tajiquistão, decora as ruas com retratos do presidente Emomali Rakhmon, mas eles são menos frequentes e ele não muda sua aparência de acordo com o objetivo do outdoor.

Mas não há apenas retratos gigantes de Berdimukhamedow espalhados por Mary. Há também suas frases, que ressaltam a sabedoria infalível do líder. Pena que não entendo turcomeno. Em uma esquina, há um outdoor com uma grande frase cheia de letras W atribuída ao presidente, impossível de não ser vista pelos motoristas. Em outro outdoor praticamente ao lado (parcialmente coberto por galhos de uma árvore que, se o responsável não a podar logo, na certa corre o risco de ser preso), mais uma.

É simplesmente massacrante. O presidente está realmente por toda parte. Imagino como deve ser nada divertido para um turcomeno, revoltado com seu salário baixo e a falta de perspectivas, ver tanta adulação diariamente. Ainda menos divertido deve ser ter que demonstrar ser um bom cidadão-fã-do-presidente, para todos ouvirem e verem, no dia a dia. Sem ousar reclamar. Afinal, nunca se sabe se o sujeito ao lado é um agente de inteligência de olho em você.

Cansado de ver Berdimuhamedow, decidi me esconder um pouco. Achei um shopping center, um idêntico aos do Brasil — impressionante como a fórmula é replicada com sucesso ao redor do planeta, sempre com ampla aceitação, tornando o mundo mais e mais um lugar entediante e previsível. Escadas rolantes, ar condicionado, lojas requintadas. Uma diferença, e fiquei feliz de ver que havia alguma diferença, são as lindas e chiques mulheres com seus vestidos típicos, longos e com detalhes bordados, e, se casadas, as altas plataformas na cabeça.

No último andar do prédio, como em alguns shoppings brasileiros, ficavam os cinemas. Por curiosidade, foi conferir o que estava passando. Em exibição, hoje, apenas um filme da série Tomb Raider, com Alicia Vikander no papel de Lara Croft, e Taxi 5, um filme de ação-comédia francês (para meu espanto, um filme francês no Turcomenistão? Pelo visto, Hollywood não reina supremo na terra do Arkadag). Evidentemente, dois filmes fantasiosos, adolescentes, bobos. Os dois já haviam saído de cartaz havia muito tempo na Europa, parece que aqui eles chegam com bastante atraso.

Ao lado também havia uma praça de alimentação, bem pequena, com apenas duas opções de fast food: ou pratos chineses ou hambúrgueres. Também havia um restaurante de verdade, com um salão separado, para o público VIP. Lá, estavam tocando nos alto-falantes música clássica com violino. Com meu dinheiro de turista, o restaurante era barato. E tinha comida típica do Turcomenistão e mesas com vista para a avenida. Foi minha escolha, sem dúvida, mas eu estava vestido de forma completamente inadequada para um ambiente tão requintado. Pedi uma mesa torcendo para que os garçons não se importassem com minha roupa empoeirada, que acabara de explorar Gonur-Tepe.

Sentei-me à mesa. Finos talheres de prata. Os violinos logo acabaram e foram substituídos por Celine Dion. Detesto Celine Dion. A decoração era extremamente kitsch — estátuas e colunas gregas, vasos com plantas tropicais vistosas, flores nas mesas. Se esforçam para ser o chique que imaginam ser chique, para os ricos locais que imaginam ter bom gosto. Curiosamente, no menu, o estabelecimento nem tentava ser sofisticado. Entre as opções, além dos pratos turcomenos, pizza e hambúrguer. Fiquei com meu kakmach típico, carne em cubos.

Internet gratuita. Entre um e outro sorriso solicito da jovem estudante que trabalhava como garçonete, felicíssima em treinar seu excelente inglês, mergulhei em meu celular.

Mary, 22h02, 27/8

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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