Thursday 8 June 2023

Novas Fronteiras (XXVII) - Ashgabat, Turcomenistão



O que é "Novas Fronteiras"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior deste diário
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Clique aqui para ver um mapa da viagem

Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.

25/8/2018

De volta à estrada. Estávamos chegando.

Uma hora ou menos depois de Erbent, começou a aparecer no horizonte a fronteira natural do mundo de areia. Era uma cadeia de montanhas. O fim da Ásia Central, o início do Irã. A cordilheira Kopet Dag.

Com a proximidade iminente da misteriosa capital dos turcomenos, o motorista, de novo de forma inesperada, parou no acostamento. Pensei que ele precisava urinar ou que havia algum problema no carro. Sem desligar o motor, puxou o freio de mão e abriu o porta-luvas, tirando de lá uma flanela. Saiu e começou a limpar, meticulosamente, todo o pó do deserto do para-brisa, depois da lataria, depois do para-lama, depois das calotas dos pneus. O carro ficou uma pérola. Voltou para dentro do veículo, guardou a flanela. E falou para mim, em russo: "É para evitar problemas. Carros sujos não podem circular em Ashgabat."

O asfalto continuava perfeito, a rodovia, impecavelmente sinalizada. As montanhas continuavam se aproximando como fantasmas: cobertas de uma névoa seca, ficavam às vezes visíveis e às vezes invisíveis no sol forte. Logo surgiram construções no horizonte.

E, de repente, tudo mudou. Estávamos na cidade, cercados de carros, prédios e casas. Quase todos eles brancos, uma cor associada à neutralidade pela qual o país é conhecido e também à pureza e à paz no Islã. Muitos dos edifícios eram claramente residenciais, com fachadas novas em folha, e entre eles havia palácios e monumentos. Os semáforos eram de aço inoxidável, refletindo como espelhos.

O carro finalmente parou em frente a um prédio antigo e baixo, sem nenhum tipo de decoração. T disse que era nosso hotel. Estávamos a menos de 500 metros do palácio presidencial, segundo o mapa no meu celular. O prédio nem parecia ser um hotel — minha impressão era de que se tratava de algum conjunto comercial — e tinha um nome diferente do nome do hotel onde nos disseram previamente que ficaríamos hospedados em Ashgabat. Este, onde estavam nos colocando, era chamado "Hotel do Ministério de Assuntos Internos". "Aqui costumam se hospedar militares e policiais", disse T, sem saber explicar porque os chefes dele, organizadores da nossa viagem pelo Turcomenistão, o haviam instruído a nos trazer para esse lugar. "Dormiremos em boa companhia", comentei, em espanhol, com um meio-sorriso, para F.

Eu na verdade já esperava algum tipo de imprevisto nesse sentido e o aceitei sem reclamar. Claramente, as autoridades queriam ficar bem de olho em nós e, por isso, nada melhor do que nos colocar para dormir juntamente com os agentes do estado na região mais vigiada da cidade. Uma sensação tomou conta de mim, meio medo, meio estranheza, meio apreensão. Uma sensação de ter alguém invisível me advertindo para que eu me comportasse ou sofresse as consequências.

F, por outro lado, foi pego completamente de surpresa e esperneou. Ao entrarmos no hotel, me disse que havia pago por uma hospedagem de boa qualidade, com conforto, e que estava claro que a acomodação por fim oferecida não era assim. Pedimos para ver os quartos antes de fazer o check-in. Para mim, eles estavam no limite do passável: havia paredes com pontos com reboco à mostra, outras com tinta descascando. Vi móveis bem gastos, algumas poltronas com buracos. Pelo menos tudo estava bem limpo, as camas eram boas e tinham lençóis novos. No meu quarto, havia uma TV, mas não havia banheiro; eu teria que dividir um com ocupantes de quartos vizinhos. E, nesse banheiro, a cabeça do chuveirinho manual, usado também como ducha, estava quebrada. Tive que pedir para trocar. F, não surpreendentemente, detestou tudo e, quando voltamos para a recepção, foi se queixar com T, usando meus serviços de tradução para o russo. T reiterou que não tinha culpa sobre a troca de hotel e que ele, F, deveria falar com a representante da operadora de turismo que arranjou a nossa excursão. Era uma russa que viria ao hotel dentro de uma hora. "Mas, de qualquer forma, acho melhor para vocês ficar neste hotel. O outro hotel, onde vocês iam ficar, fica em um bairro mais longe do centro", disse nosso motorista. F ouviu e ficou ainda mais irritado, preferindo interromper a conversa de uma vez e subir para seu quarto com suas coisas, ainda que a hospedagem pudesse ser provisória.

Subi ao quarto, tomei um banho rápido e cochilei por uma meia hora. Quando desci, F já estava falando com a representante da operadora. Era uma russa estranha. Seu nome era AN; era uma loira platinada, cabelos curtos, extremamente branca, uns 40 anos, com um jeito de falar e um gestual que me lembraram o de alguma espiã do período da guerra fria. Fala e rosto sem nenhuma expressão de emoção. A mão direita em movimentos eventuais como se levasse, entre os dedos indicador e médio, um cigarro imaginário. Levantou-se do sofá onde conversava com F e me saudou com um aperto de mão no melhor estilo cordial soviético. Olhos completamente vazios. Convidou-me a sentar.

"Tivemos um problema com esse hotel para onde íamos levar vocês", explicou AN, de forma vaga, com um bom inglês, mas com pesado sotaque russo. "Achamos melhor que fiquem aqui. O valor pago por aquela estadia é o mesmo que o pago por esta." F pediu mais detalhes. AN parecia preocupada em não falar demais. "O outro hotel tem problemas, vocês estão melhor aqui, não tenham dúvida." F perguntou sobre o valor da estadia: "É o mesmo preço, como disse". F parecia cada vez mais nervoso, não aceitando o fato de que o hotel onde estávamos pudesse ter o mesmo preço de outro que ele julgava que fosse ser muito melhor, embora ele nunca tivesse se hospedado nele. Percebendo o impasse, e as maças do rosto de meu companheiro de viagem levemente coradas a esta altura, propus a ele em espanhol que escrevêssemos um email ao escritório central da operadora (que ficava no Cazaquistão) para tentar esclarecer todo o problema e pedir um ressarcimento, se fosse o caso. "Estamos perdendo tempo, ela não vai falar. Pode ser algo que não sabemos que ela não pode falar. Estamos no Turcomenistão."

"Estamos em Ashgabat!", disse de novo, com ênfase. "Não temos tempo a perder!"

Ele concordou. Nos despedimos da camarada AN. E ganhamos as ruas.


* * *

Ashgabat, calma cidade. Às vezes, uma limusine Volga passa pelas ruas. De vez em quando, um burrico golpeia o asfalto com os cascos (...) Pelas ruas transitam trólebus quentes como altos-fornos. Em ambos os lados da rua, há árvores, muita relva e flores. Nota-se aqui um grande cuidado com o verde, a cidade é limpa, cuidada, lavada. As árvores proporcionam sombra, mas cumprem também outra função, psicológica. A presença do verde atenua a cansativa sensação de claustrofobia e o medo de espaços fechados do morador do oásis. O indivíduo sedentário teme o deserto, o deserto impressiona e ameaça. Aliás, basta ir até os limites da cidade ou até o final de seu pátio: o deserto está ao redor, implacável.
- Ryszard Kapuscinski, Imperium (1993)

Brilho. limpeza. Opulência. Vazio. E os ecos, na minha cabeça, da descrição da visita de Kapuscinski em 1967.

O centro da capital do Turcomenistão é um lugar singular, de uma estranheza em escala colossal. Uma sucessão espetacular e surreal de edificações altas e suntuosas, monumentos impressionantes, jardins, ruas extremamente bem iluminadas e sinalizadas. O branco é a cor dominante em tudo e, claro, é a cor favorita do presidente Berdimuhamedow, um dentista que, mantendo a tradição de seu antecessor, Saparmurat Niyazov, transformou suas predileções, suas fantasias e seus fetiches em lei, e essas leis em tijolos de um dos maiores cultos de personalidade do mundo. Tal culto já era visível no norte, em Konye Urgench e em Dashoguz. Entretanto, Ashgabat é seu ápice, sua glória. É aqui que Berdymukhamedow gasta boa parte do PIB do país, tornando realidade um sonho excêntrico e desconcertante para qualquer estrangeiro, uma tentativa que ainda não sei se é exitosa de convencer seus compatriotas de que o Turcomenistão é a Dubai da Ásia Central e vive uma era de ouro.

Voltando ao branco. As fachadas dos prédios são todas dessa cor. Os carros são todos brancos (e, como disse T, têm que estar limpos). As avenidas são imensas, com várias pistas, asfalto liso como uma mesa de bilhar; parecem superdimensionadas para a quantidade de carros circulando. No centro, não há mendigos. Os ônibus que circulam são novos. Nos pontos de ônibus, há casinhas com ar condicionado e televisão colorida para os passageiros que têm que esperar os coletivos. Os jardins são um primor. Em frente ao palácio presidencial, com três cúpulas douradas, há uma praça em que as plantas são perfeitamente podadas, as flores, lindamente coloridas. As fontes jorram com pontualidade. É a completa perfeição.

Nessa mesma praça em frente ao palácio, essa perfeição é mantida com o adubo da paranoia, um sentimento que parece ocupar cada milímetro do espaço vazio da capital. É possível andar por apenas uma parte da praça. Na parte em frente ao palácio, policiais com uniformes verde-oliva impedem qualquer pessoa de se aproximar. Uma vasta área é isolada. As plantas e flores se exibem apenas para o sortudo ocupante do palácio, mas só se por acaso ele tiver tempo de olhar pela janela e admirar tamanha beleza.Tentar chegar ao palácio indo por trás, dando a volta no quarteirão, também é inútil. Todas as vias de acesso a ele são bloqueadas por policiais e militares.

O palácio, que dessa forma só pode ser admirado de longe, é deslumbrante. As cúpulas refletem o brilho do sol, parecem de ouro maciço. Fiquei tentado a tirar uma foto. Coloquei a mão no bolso, cheguei a pegar minha câmera. Mas, segundos depois, acordei do meu transe momentâneo e desisti. Fotos de prédios do governo são completamente proibidas em Ashgabat. Fotos de policiais, também. Nem pensar. Aliás, fotos de pessoas talvez também sejam proibidas, dependendo da pessoa, dependendo do lugar (mas, essas, vou me arriscar a tirar). E ainda, dependendo da hora, do lugar, podem ser proibidas fotos de monumentos, da paisagem natural, das plantas, do céu, das estrelas. Talvez selfies sejam proibidos.

Poucas pessoas nas ruas. Com exceção de fardados. E alguns senhores civis sentados em bancos, lendo jornais de forma displicente, parando constantemente a leitura. Vejo alguns outros caminhando de forma igualmente distraída. De vez em quando, passando, olham para F e para mim. Quando olham, parecem prestar muita atenção.

Na passagem subterrânea sob uma avenida perto do palácio presidencial há um monte de câmeras à vista. Chão e paredes de granito polido, mármore reluzente. E tudo às moscas. Não cruzei com ninguém ao usar a passagem.

Os monumentos. Formalmente, eles buscam ressaltar os elementos tradicionais da cultura e história turcomena, unindo esses elementos a um conceito estético de modernidade e vanguarda. Em geral, novamente, são brancos, mas com frequentes detalhes dourados: há estátuas inteiramente foleadas a ouro. Há muitos, muitos monumentos. No centro de Ashgabat, a cada rotatória há um diferente, e meu mapa online indica que esse padrão é seguido em boa parte da cidade. Por ter tamanha predileção por monumentos na capital, o governo turcomeno se viu diante de um dilema bastante incomum. As figuras da história do país foram todas homenageadas, o finado presidente Niyazov foi homenageado. Os velhos monumentos soviéticos foram quase todos eliminados. Quem ou o que homenagear com tantos espaços vagos? A resposta veio com muita criatividade, sempre com uma boa explicação fundamentada na modernidade e no desenvolvimento invejáveis do país, primeiro sob a batuta de Niyazov e agora sob Berdimuhamedow. Alguns poucos exemplos dessa imaginação fértil na hora de gastar dinheiro público já conheci no primeiro passeio por Ashgabat. O "Monumento à Vida Saudável" tem a cabeça de um cavalo da raça akhal-teke (e os dizeres "Esporte do Turcomenistão" em inglês), ou seja, é um monumento que glorifica a prática de esportes, e especialmente montar a cavalo, como chave para a "vida saudável" do povo turcomeno. Falando de cavalos, um outro faz uma homenagem apenas aos cavalos akhal-teke. O "Monumento aos Cavalos Turcomenos" traz em uma plataforma branca elevada uma série de cavalos em poses diversas, sugerindo graça e leveza. Para minha surpresa, não são folheados a ouro.

Parei em uma praça em frente a um grande e alva estrutura com cinco arcos que inclui no meio um retrato do presidente usando seu chapéu telpek branco e no lombo de um akhal-teke. F estava longe de mim, inspecionando uma outra praça vizinha. Até então, não tinha ousado tirar meu celular do bolso em nenhuma situação em Ashgabat, nem para uma mísera selfie. Fiz o movimento rápido, liguei o aparelho, o removi do bolso, tirei uma panorâmica. Imediatamente após tirar a foto, ouvi um grito distante de um dos homens com roupas civis, sentado, com um jornal na mão, em um banco à direita do retrato de Berdimuhamedow. Olhei para ele, ele sinalizou "não" com a mão. Acho que pensou que não cheguei a tirar a foto. Acenei, guardei a câmera, dei meia-volta.

Cansados, com o sol se pondo, F e eu encontramos um restaurante. Um restaurante perfeitamente ocidental, certamente pensado para turistas ou diplomatas, servindo Kakmach, uma iguaria local — carne de carneiro refogada em óleo, com cebolas e pimentões, um pouco picante. Nesse jantar, aproveitei para iniciar o planejamento para visitar o máximo de monumentos possível em Ashgabat. Se estes dois que vi hoje já são incríveis, disse a F, imagine, então, o que podem ser o "Monumento ao Trigo" ou o "Monumento à Continuidade" indicados no meu mapa?

Rimos e viramos com gosto a cerveja da marca turcomena Berk, servida em grandes canecas, como deve ser.

Ashgabat, 22h10, 25/8

Clique aqui para ler o próximo capítulo



Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

Clique aqui para ler o primeiro capítulo deste diário
Voltar para o topo desta página
.

No comments:

Post a Comment