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Este texto faz referência a minha primeira visita a Samarkand, narrada nos capítulos VIII e IX de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui
Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.
12/9/2012
Jantamos, eu e Lutfollah, em seu pequeno paraíso em Shakhrisabz. Sua casa e seu pátio, escondidos na rua principal da cidade, são dificílimos de encontrar. Passei pela sua porta umas duas vezes e não me dei conta que era o local que estava procurando. O pátio é pequeno, mas uma arca abarrotada de tesouros, de dar inveja a qualquer hotel cinco estrelas. O quadrilátero é coberto pela parreira e pelos caquizeiros, tão, tão carregados de frutos que é difícil acreditar que são de verdade. Eles parecem de plástico, tendo sido pendurados lá de propósito. Não entendo por que as frutas não foram colhidas. Estão maduras, maduríssimas, o ar está carregado de doçura. E, circundando o pátio, quartos para os hóspedes, inclusive o meu. Estou me sentindo um rei. Sou o único hóspede e, como tal, sou quase da família.
Moças trazem a comida sem dizer uma palavra e desaparecem de vista. Primeiro, uma travessa com frutas secas, amêndoas, nozes, uvas passas. Depois: em rodelas, tomates e cebolas; e um pratão de um risoto chamado shavla, um prato muito parecido com o plov, a mais conhecida especialidade da culinária do Uzbequistão. A diferença é que o shavla vem com menos ingredientes - daí ser visto por alguns como comida de pobre. Nada de cabeça de alho inteira cozida juntamente com o arroz, por exemplo. Para beber, é claro, muito chá, verde ou preto.
Lutfollah - um rapaz de seus 35 anos, bem-educado, com cara cansada, olheiras profundas, mas muita curiosidade no olhar, vestindo camisa e calça surrados - é o dono do lugar, onde mora com sua família: o pai, bem mais velho, uns setenta anos, e as mulheres, quatro, que não cometo a indiscrição de perguntar se são irmãs, esposas, amigas das esposas, netas ou sobrinhas. Ficamos uma boa hora discutindo o inevitável futebol - de Pelé e Garrincha a Neymar. Me espanto com seu conhecimentos de nomes obscuros da genialidade futebolística brasileira. Porque, como bem sabe qualquer viajante brasileiro que se aventura por aqui, nós somos automaticamente considerados especialistas em futebol, sumidades com conhecimento enciclopédico da arte da bola, das Copas do Mundo, dos sistemas táticos, dos jogadores que fazem parte de cada grande equipe do mundo. Eu não sou, infelizmente. Mas me viro. Por apreço a meus anfitriões, por gratidão pela recepção tão maravilhosa, jamais poderia deixar de dar minha melhor interpretação de João Saldanha.
As frutas são uma delícia! Mordo uma uva, verde, bem pequena, quase uma esmeralda. O sabor fresco entorpece toda minha boca. Parece ter sido injetada com mel.
No fim do verão, a Ásia Central inteira é um festival de presentes da natureza. As uvas. Os melões fatiados, um vício. Melancias. As maçãs, por toda parte. As geleias. Foi assim no Quirguistão, no Cazaquistão, agora, aqui. Um sonho.
* * *
De manhã, peguei o trem e me despedi de Bukhara. E segui para Samarkand.
Samarkand, a nobre Samarkand, a capital de Tamerlão, a capital do mundo, o epicentro da Rota da Seda. Rever o conjunto do Registan com seu esplendor, as três madrassas com as fachadas iluminadas pelo Sol respectivamente no amanhecer, ao meio-dia e ao anoitecer. Aqui estão, imutáveis, inacreditáveis, como em 2003. Pena que há tantos, tantos turistas. Mas nem isso lhe rouba o poder hipnótico. Só me faz alvo constante de muitos vendedores e de muitos, muitos outros turistas disputando comigo espaço pelas melhores fotos, de curiosos que me perguntam infinitas vezes de onde eu sou e, caso eu responda que sou brasileiro, começam a falar de futebol.
A cidade, a maior joia timurida, é de fato tão turística como Bukhara. Entretanto, aqui, o fluxo de visitantes é concentrado no Registan e, claro, no mausoléu de Tamerlão, o Gur-i-Emir. Nas duas cidades é ainda possível se perder pelas ruas e ir a lugares menos disputados, onde o impacto da "indústria" é menor. Assim, fujo do Registan. A grande memória que tenho é a da primeira e grande exploração dessa preciosa composição de seminários islâmicos em 2003, e assim ela permanecerá. Lembro-me explorado a madrassa Tilla-Kari, o prédio central, e seu interior dourado. Agora a vejo de perto de novo, mas não de dentro. Supervisiono as outras duas madrassas que, juntamente com a Tilla-Kari, compõe o que talvez seja o mais maravilhoso conjunto arquitetônico islâmico já erguido (não sei dizer qual é mais bonito, o Registan, o Poi Kalon de Bukhara ou a praça Naqsh-e Jahan de Isfahan). A madrassa Ulugubek, à esquerda, é a mais antiga, tendo sido concluída em 1420, logo ainda no período do domínio dos timuridas. As outras duas, feitas no mesmo estilo, são shaibanidas, do século XVII.
Fujo antes que as boas lembranças sejam deturpadas por camelôs com suvenires ou, pior, turistas entediados que chegam em seus ônibus, tiram fotos de tudo sem apreciar nada, sem conseguir enxergar beleza nem que esta lhe seja esfregada no rosto.
Espantou-me a "maquiagem" de Samarkand. Desço pela via próxima que leva à colossal mesquita Bibi Khanoum e ao pitoresco cemitério Shahr-i-Zinda. Nessa rua, o presidente Islam Karimov fez uma clara higienização. O contraste é incrível para o que guardo na cabeça de dez anos antes. Ao redor do mercado ao lado da mesquita - onde outrora havia a alegre agitação dos vendedores de todo tipo de produto e dos cozinheiros preparando panelas imensas de plov, agora há um gramado, árvores plantadas. Isso é bom ou ruim? Bom e ruim, evidentemente. Caminhando pelo local, sinto nostalgia da velha bagunça, uma bagunça ancestral, de séculos e séculos, em um dos pontos mais importantes para compra de mantimentos para as caravanas atravessando o deserto, seguindo entre China e Europa. Por outro lado, o lugar está mais calmo, mas contemplativo, e é possível ver facilmente o Shahr-i-Zinda. Contudo, eu desconfio das intenções das autoridades, de Karimov. De fato, é higienização, mas para os limpinhos e endinheirados verem, para aqueles que só ficam admirando os monumentos e não têm interesse de olhar para o lado. Logo na esquina, descendo paralelamente à rua em frente ao Shahr-i-Zinda, há uma vala com esgoto a céu aberto, ao lado de casas e crianças pobres.
Volto rapidamente ao Registan, atravesso de novo a atual bagunça, a dos ônibus de excursão e senhores obesos e ofegantes. Por causa da hora, decido deixar para lá o mausoléu Gur-i-Emir, jurando visitá-lo novamente em uma nova oportunidade, e me dirijo a uma outra mandala arquitetônica que, como tantas outras por aqui, não tive em 2003 o prazer de visitar. Graças a informações desatualizadas de meu guia, demoro muitíssimo para encontrar o ponto de onde saem táxis compartilhados de Samarkand para o local de repouso final de Al-Bukhari, minha próxima parada. Minha procura de uma hora, a pé, me levou a uma avenida surreal - mais um sinal do projeto higienista do ditador uzbeque.
Posso estar enganado, pode não ter sido por ordem direta de Islam Karimov, mas eu sinceramente acho que nada neste país é feito sem sua bênção. A avenida é, basicamente, um canteiro de obras em seus dois lados: quase um quilômetro de calçadas e casas em construção, sendo criadas ou reformadas inteiramente. Claramente, ninguém vivendo nelas. No lado esquerdo e no direito. As pessoas foram retiradas, extraídas, ou ainda ninguém nunca viveu nessas residências. Metros e metros de casas estão sendo erguidas, substituindo habitações que certamente ocupavam os mesmos terrenos há décadas. O que vejo poderia ser algo natural se este fosse um bairro planejado, sendo construído do zero. Mas estou bem perto do centro de Samarkand, e esta é uma cidade grande, antiga.
Na minha caminhada, de repente avisto uma casa antiga, grande, ainda de pé, orgulhosa, em algum ponto da avenida. Provavelmente esperando sua execução. Por que não simplesmente restaurar as residências antigas, preservando suas feições originais?
Me entristeço muito. Penso que este lugar está perdendo muito de seu passado. Lembro de São Paulo.
* * *
Outra reflexão sobre as edificações de hoje. Neste caso, sinto algo bem diferente.
Muhammad Al-Bukhari (810-870) foi uma das maiores autoridades da história na interpretação dos hadiths, os dizeres e feitos do Profeta Maomé. Seu mausoléu, tal qual pode ser visitado hoje nas cercanias de Samarkand, é uma construção moderna, de 1998. Para mim, ela foi uma prova de que construções islâmicas modernas podem ser tão lindas e evocativas quanto as antigas, ainda que as do passado tragam o feitiço que só os séculos lhe podem conferir.
O mausoléu: um cubo de pedra de uns cinco metros de altura, feito de mármore amarelo, vestido de complexa caligrafia árabe e desenhos em alto-relevo que sugerem estrelas, espaços, flores, o cosmos. Em cima dele, uma cúpula-cebola azul. Dentro da construção, pode-se ver o paralelepípedo da tumba em si, também de mármore amarelo. Ao redor do mausoléu foi construído um pequeno parque com árvores e uma fonte que ajudam a enfrentar o Sol. A água é potável, deliciosa, e brota da terra à sombra. Um pavilhão com sólidas colunas de madeira, provavelmente de álamos, circunda o parque, dando acesso a uma mesquita e a um museu que guarda exemplares do Corão doados por vários países. Uma composição em branco, das paredes do pavilhão, em verde, das árvores do parque, e em castanho-claro, das colunas de madeira.
Sento-me com um grupo de senhores na faixa de 50 anos com seus chapéus uzbeques em um longo banco com almofadas verdes bem em frente ao mausoléu. Ao lado deles, um jovem com conhecimento religioso entoa uma oração-cântico. Todos estão com as mãos abertas e unidas, com as palmas viradas para o céu, na altura do peito. Um gesto de prece. É irresistível e me junto à oração. Fecho os olhos. O pensamento se tresmalha no eco da voz, na suave brisa que leva as palavras para perto da tumba do grande sábio. Mais ecos no mármore amarelo. Sem compreender a língua, entendo seu significado, o significado do momento. O louvor a Deus, o agradecimento pela água, pela brisa, pedidos de sabedoria. O breve silêncio final: as mão são levadas ao rosto, acariciam a pele, lavam a face com gotas imaginárias.
Fatos em relação a Al-Bukhari beiram o mitológico. Diz a lenda que ele memorizou todo o Corão aos sete anos e passou a vida colecionando as hadiths, entre as quais milhares (pelo menos uma fonte diz 300 mil) ele teria também memorizado. Sua obra mais conhecida é a Sahih Al-Bukhari, uma das seis grandes compilações de ensinamentos do Profeta para os muçulmanos sunitas, uma obra de fôlego, de centenas de páginas, que teria custado a Al-Bukhari 16 anos de dedicação.
O respeito e a adoração a Al-Bukhari surpreenderam as autoridades soviéticas, que apenas por uma rara intervenção externa se deram conta da necessidade de criar uma mínima infraestrutura para os visitantes do mausoléu. No século 16, uma modesta mesquita fora construída ao lado da tumba do sábio. Nos anos 1950, estava dilapidada. Em 1954, em uma visita à URSS, o então líder indonésio Sukarno solicitou às autoridades em Moscou autorização para visitar o mausoléu e prestar suas homenagens. Na época, Nikita Krushchov buscava se aproximar da Indonésia e de outras nações de maioria muçulmana, e uma recusa teria sido vista como prejudicial a esse esforço. Assim, o local foi arrumado às pressas - construiu-se até mesmo uma via asfaltada para dar acesso a ele, e a mesquita voltou a ter condições de receber fiéis. No entanto, apenas sob Karimov ganharia a dimensão de complexo que tem hoje.
* * *
Após Al-Bukhari, volto para Samarkand. Encontro transporte e sigo para as montanhas. No caminho para Shakhrisabz, abraço um frescor na estrada que só havia sentido antes na Ásia Central no lago alpino em Almaty. A estrada não é muito sinuosa, mas é cheia de desvios pela presença de vacas, bois, burros, carneiros, cavalos, todos cismando em dividir a estrada com os carros. À beira da via, que passa por Shakhrisabz para depois chegar ao Afeganistão, as montanhas vão revelando pequenas casas de chá; nelas, os motoristas se deitam preguiçosamente nas típicas camas-mesas, tomando suas infusões quentes. Vendo a tarde passar, mudar de cor, fitando as reses passando pela estrada... bem devagar... bloqueando o tráfego...
Ao anoitecer, já em Shakhrisabz, sou deixado pelo motorista na praça central, à sombra da impressionante estátua de Tamerlão. O conquistador olha para o infinito em sua cidade natal. O sol se põe.
Shakhrisabz, 13/9, 10h
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