Tuesday 25 April 2023

Novas Fronteiras (XXI) - Mar de Aral, Uzbequistão














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22/8/2018

Subia o sol, lentamente.

Eu estava morrendo de sono. 5h30 da manhã. Acordei com o alarme do celular e pulei para fora da iurta sem nem pensar, enrolado no cobertor, para enfrentar o vento frio vindo diretamente do Aral. Me sentei em um banquinho à beira do penhasco, logo na frente da minha barraca. Lá embaixo, a praia. Ao longe, via um espelho prateado que, a cada minuto, ia ficando mais brilhante.


Lentamente magnífico.


E então apareceu um ponto de raios dourados no horizonte.

E tudo ficou alegre.

Em cinco minutos, o círculo de fogo já estava inteiro. O espelho refletindo ele era imenso. Lindo, perfeito.

O vento trazia uma poeira salgada, a areia do deserto do Aralkum.

Lacrimejei. Olhos ardendo. Fui forçado a fechar os olhos.

Os abri de novo em uns dez segundos, de volta à glória. A beleza lenta, quase estática. Mais uma hora se seguiu — repetidamente olhos abertos, lágrimas pela poeira salgada e claridade, olhos fechados, depois olhos abertos para testemunhar o cada vez mais raro fenômeno diário. Até que me chamam para o café.


Quantas vezes ainda será possível ter esse privilégio de assistir o amanhecer no Mar de Aral do Uzbequistão? É mais realista dizer que poucas. Mas isso pode ser um erro causado pelo pessimismo extremo de quem sabe que a maior parte da água já foi embora. A eliminação total certamente ainda pode ser evitada — existe um precedente. No Cazaquistão, o Mar de Aral do Norte, parte do antigo lago gigante, parou de encolher. Isso foi conseguido com a construção de um dique, o Kokaral, que foi concluído em 2005. O dique fechou a ligação entre essa parte norte do Aral e as demais. Com isso, a água que chega pelo rio Syr Darya no norte pode ficar acumulada e é suficiente para sustentar o volume daquele filho do Aral. Em comparação com o volume de 2003, o volume de água no Mar de Aral do Norte havia crescido 12 metros até 2008. Com isso, a alta salinidade da água, que mata os peixes, também foi sendo revertida. Hoje, até mesmo uma pequena indústria pesqueira voltou a ser viável por lá.

Quem sabe um sistema de diques pudesse selar o lado oeste do Mar de Aral uzbeque, esse que salgou meus olhos, permitindo salvá-lo da mesma forma. Mas Tashkent não dá sinais de que pretende seguir esse caminho.

Tomei chá preto no café da manhã. Meus companheiros ficaram falando amenidades que nada tinham a ver com o cenário. Eu fiquei em silêncio olhando para outro lado, o lado de onde vinha a luz, chorando um pouco.


* * *

Umas três horas se passaram e, então, estávamos ao lado de um arquipélago. Um arquipélago de verdade. Não uma miragem.

Ilhas, ilhas e mais ilhas, pequenas, cobertas de juncos, cercadas de uma água rasa e evaporante num sol de rachar. O lago onde elas se encontram se perdia no horizonte. Algumas ilhas se encontravam, formavam minicontinentes, mas, em sua maior parte, eram independentes, criando um padrão estranhamente atraente, provocando os olhos, fazendo-os circular entre elas como se dentro de um labirinto, procurando uma saída. Um labirinto de juncos boiando, ilhas próximas e afastadas. A água era azul. Seria incrível explorar esse arquipélago com um caiaque, passear entre as ilhotas uma tarde inteira, uma semana inteira, passar meses conhecendo seus meandros.

Essa era a visão em um mirante em algum ponto do planalto de Ustyurt. Tínhamos acabamos de vir lá de baixo, da beira do lago Sudochie, o lar das ilhas. É o maior lago que resiste no delta do rio Amu Darya, ao sul do vizinho Aral.

O Sudochie é hoje o melhor lugar da região para se observar a riqueza da fauna que existia no Aral. Ele sobrevive como resultado de um plano de recuperação do governo uzbeque usando reservatórios e a água do aqui raquítico Amu Darya. Em anos com mais precipitação, mais água chega ao lago e o nível dele sobe; em outros anos, o lago permanece como um grande poça rasa de alta salinidade. Com uma área de 333 km², ele tem uma profundidade média de apenas 1,5 metro. Antigamente, ele se conectava com o Aral. Hoje em dia ele fica a cerca de 80 km do que sobrou do mar. Cientistas preferem se referir ao Sudochie como um sistema de lagos em vez de apenas um corpo d'água. Há pelo menos quatro lagos na mesma região, sendo que, novamente dependendo do regime pluvial, eles podem acabar se unindo. Sendo tão raso, o Sudochie permite o crescimento dos juncos que formam as ilhas que vejo do mirante. Essas ilhas, por sua vez, ajudam a prover alimento para as espécies que ainda habitam a região. Um levantamento de 2009 indica que vivem no Sudochie 230 espécies diferentes de pássaros. Muitas são raras. Em alguns casos, o lago é um dos poucos pontos que restam de descanso para espécies migratórias que, antes, podiam desfrutar de todo o Aral.

À beira do lago, visitamos uma vila (quase fantasma) de pescadores chamada Urga. O primeiro sinal de existência de um assentamento é um cemitério no alto de um morro vizinho, um cemitério cristão. Cruzes ortodoxas e outras como as que conhecemos da igreja católica, de madeira, sem nenhuma identificação. Aos poucos vão sendo vencidas pelo sol e pelo sal trazido pelo vento. Estão meio enterradas na areia, mas permanecem de pé, testamento da imigração de eslavos nos tempos soviéticos para trabalhar na pujante indústria pesqueira. Na vila, ou o que sobrou dela, há uma única casa habitada, pequena e praticamente em ruínas, como o restante das edificações. A maior das casas é o que parece ter sido um dia um grande galpão onde as pessoas recolhiam os peixes e os acondicionavam para transporte. Os pescadores os salgavam e os mandavam para Moynaq, onde eram enlatados e levados aos quatro cantos da URSS. Urga era um dos dezenas de vilarejos que forneciam os peixes para Moynaq. Com o lago Sudochie ficando mais raso e o concomitante aumento da salinidade e a diminuição dos peixes, a pesca em larga escala se tornou impossível. Entretanto, os moradores que permanecem no casebre em pedaços, que não estavam quando nós visitamos o povoado, incrivemente ainda sobrevivem com isso. À vista, em um dedo de água rasa que se liga ao lago, havia algumas canoas usadas por eles para adentrar o Sudochie. Para chegar nesse dedo, é preciso andar uns 50 metros a partir do povoado. Depois, por esse canal, ainda é preciso remar muito mais até chegar a algum ponto do lago onde seja possível realisticamente encontrar alguma coisa para pescar.

O Sudochie não parece destinado ao fim como o Aral uzbeque. Fica mais a montante no curso do Amu Darya, o que o beneficia em relação ao mar. Mas é possível ver em suas margens onde ele estava há alguns anos e onde está hoje. Será que estou errado, será que este resto de paraíso também está destinado a desaparecer?

O casebre semidestruído, ainda casa para pescadores que não encontraram opção melhor na vida. Os restos do centro de processamento de pesca. E o cemitério varrido pelo vento, com as cruzes secas ainda de pé, por enquanto. Mesmo com a natureza ainda viva, teimosa, Urga é o carrasco de qualquer otimista. Há uma sensação de tristeza permanente, uma depressão que aumenta mais quanto mais tempo você permanece e olha o que sobrou.

Quase tudo acabou.

Vamos embora.


* * *

No caminho de volta para Nukus, atravessamos mais vazios do platô do Ustyurt e do deserto do Aral, com a navegação inconcebível do nosso motorista — quase sem nenhuma referência, nem uma estrada, nem placas, nem montanhas. Apenas arbustos de saxaul e uma pequena família de dromedários, três adultos e um filhote. Passamos ao lado deles enquanto descansavam parados no nada. O motorista disse que esses animais são muito comuns por aqui.

À distância, apareceram então casas. Um modesto conjunto de casebres antigos. O carro parou, e o motorista entrou em um deles sem nos falar nada. Ficamos confusos no carro. Em um quintal ao lado, uma mãe, um menino e um dromedário nos olharam curiosos. Há famílias que vivem aqui, criam suas crianças aqui. Do que vivem?

O motorista ressurgiu pela porta. Chamou todos os turistas para tomar shubat, leite de dromedário fermentado. Meus companheiros de jornada soltam algumas exclamações.

O dono da casa, um senhor de meia-idade, com camisa e calça sociais surrados e uma pele brilhante de suor, conseguiu encaixar eu e os dois casais que viajavam comigo em sua pequena sala de estar. Encontrou rapidamente frutas secas e pão para criar um pequeno banquete para todos. Já está acostumado com a visita dos forasteiros, sempre quando voltam do Aral. Deve ganhar uns trocados do nosso motorista. Assim, se mantém a magia de pura e desinteressada hospitalidade, o que é sem dúvida uma característica de todos os centro-asiáticos, mas uma característica que pode matar de fome famílias como estas, que provavelmente dividiriam tudo o que têm com suas visitas mesmo que não ganhassem nada com isso. Além de trazer os tira-gostos, o senhor coloca em uma cadeira, como um trono, no meio dos turistas, um velhinho falador. Tem uns 90 anos. Viu tudo na vida. Pena que ninguém entende russo, só eu. Com o motorista fora de vista temporariamente, fui recrutado como intérprete, tentando fazer sentido do sotaque carregado dele.

O velhinho explicou que o vilarejo se chama Komsomolsk-na-Ustyurte (Comsomol era o nome da União da Juventude Comunista da URSS, certamente uma referência ao fato de que a liga local tinha aqui algum tipo de presença dessa instituição no passado). Perguntei como este vilarejo apareceu no meio do nada. Simples: ele surgiu por determinação das autoridades soviéticas, que relocaram para cá a mão-de-obra necessária para trabalhar em uma planta de extração de gás natural nas redondezas. O velhinho e sua família vieram de não muito longe, da região de Moynaq. Perguntei a ele o ano em que isso aconteceu. Ele não conseguiu se lembrar: "Muito tempo". Quase certamente nos últimos anos da URSS, com o Aral já desaparecido do porto de Moynaq e as comunidades pesqueiras desesperadas para encontrar um ganha-pão substituto.

Fiquei curioso com seu chapéu, cônico e baixo. Eu o reconheci como uma tubeteika cazaque. Sabendo a resposta, aticei o velho, perguntando a ele se era uzbeque. "Não!", respondeu, com uma veemência e força não completamente inesperadas. "Sou cazaque! Todos aqui são cazaques!" afirmou, com o dedo indicador direito apontado para o teto, em um gesto que me lembrou Lênin em um discurso.

— Cazaque? Não caracalpaque? O senhor não é caracalpaque, é cazaque, mesmo?
— Sim! Cazaque! — repetiu ainda mais alto, com fogo no olhar, para depois amenizar seu tom e abaixar o volume da voz — Mas cazaque do Uzbequistão. (Pausa). Com orgulho!

Coçou a barbicha e, sem sequer meu incentivo, mudou o assunto. Passou então a descrever a região onde nos encontramos. "Aqui era muito bom. Havia muitos antílopes. Muitos! Eu adorava ir caçar. Íamos com motos e era só atirar, PÁ!" — faz o gesto de rifle sento disparado. "Hoje, não há um único antílope. Todos dizimados." Liberdade nas pradarias, grandes horizontes, céu azul, caça, sangue de antílopes e carne fresca na boca. O idílio ancestral dos nômades cazaques. Um estilo de vida igualmente dizimado que sobrevive, nítido, na cabeça de um nonagenário na remota Komsomolsk-na-Ustyurte.

Fomos interrompidos. A mulher de seu filho, que descubro ser o senhor de meia-idade que nos recebera, nos trouxe então uma travessa com tigelas e um jarro com o shubat, o momento tão antecipado pelos turistas. Shubat é uma delícia ancestral dos nômades cazaques, caracalpaques e turcomenos. Nos limites do leste da Ásia Central soviética, no Quirguistão e nas montanhas perto de Almaty, a bebida é a mesma, igualmente branca e levemente alcoólica, mas feita com leite de égua. Chama-se kumiz. Eu a provei em 2012 à beira da estrada entre Bishkek e Almaty. Por aqui, no oeste, a bebida é mais comum no Turcomenistão, onde o shubat é chamado çal e é um orgulho nacional. Como vou para lá amanhã, decidi passar esta oportunidade de beber o líquido branco e denso, feito com o leite da fêmea que nos observou antes no quintal. Os casais olharam para mim com estranhamento, me perguntando como eu poderia passar a oportunidade de provar o líquido sagrado dos nômades? "Bom, amigos, prefiro fazer isso com acesso rápido a um banheiro. Ainda temos umas horas de estrada até voltar a Nukus." Eles riram, nervosos. Mas já estavam com a tigela na mão e o líquido a caminho dos lábios. Tarde demais para mudarem de ideia. "Muito bom, diferente. Gostoso, mas diferente. Meio azedo. Meio gasoso", disseram, olhando para a mulher que trouxe a bebida.

Bem perto da casa havia o que restou de um aeroporto. Impressionante pensar que Komsomolsk-na-Ustyurte um dia teve importância a ponto de ser servida por uma pista de pouso. No sol, surgiram para nos encontrar dois garotos com uma moto barulhenta e um sidecar, um assento para um passageiro ao lado do condutor. Pararam ao lado de nós para conversar entre eles, sem nos dirigir a palavra, como se tivessem se aproximado com o único objetivo de serem vistos. O nosso motorista, que havia reaparecido na sala quando eu estava conversando com o velhinho, veio atrás de mim. "Era assim, o que senhor estava falando. Vê essa moto? Ia o motoqueiro e o sujeito na garupa com as pernas amarradas na moto, para ter firmeza. Ia de pé com a espingarda, com a moto a toda velocidade. Quando via o antílope, atirava. PÁ!", repetindo o mesmo gesto do velhinho. Não explicou se o sidecar também era usado nas caçadas.

Perguntei a ele se a planta de extração de gás que fez surgir Komsomolsk ainda existe. Disse que sim.

— Mas então, por que há tão pouca gente vivendo aqui hoje?
— Ah, mas é claro. O lugar não tinha antes apenas trabalhadores da fábrica. Várias pessoas que também não trabalhavam com gás vieram para cá. Tinha pessoas que ainda se dedicavam à pesca, a água não ficava longe. Havia caçadores, também, como estava te falando. Hoje, só há o gás. Mas há outras fábricas maiores, melhores, em outras partes, atraindo mais gente. E toda a região está assim, seca. Difícil viver. Talvez tenha mais camelos por aqui que gente.

As fábricas maiores, melhores, com capital estrangeiro, voltaram a aparecer no panorama depois que saímos de Komsomolsk. As duas Land Rovers de nossa excursão continuavam correndo completamente off-road no vasto plano de arbustos, areia e sol, com as chaminés metálicas das usinas de gás brilhando à distância. O motorista da outra Land Rover, mais experiente, seguia na frente, claramente sofrendo para encontrar o caminho correto de volta à civilização. Uma das fábricas se tornou uma referência, como uma estrela. Fomos como uma flecha em direção a ela. Mais uns 30 minutos de solavanco e encontramos, de forma totalmente repentina, uma estrada de verdade, asfaltada, a chave para nosso retorno a Nukus. Já nela, passamos à frente do complexo que usamos como referência, do qual se sobressaía um conjunto com quatro chaminés baixas e uma maior, todas cobertas com um intrincado emaranhado de tubulações metálicas e brilhantes. É como se de repente tivéssemos deixado a idade média e entrado no futuro, visitando uma base terrestre em um planeta quente e inóspito.

A estrada à frente da usina de gás desembocava numa maior, com duas pistas, a rodovia principal ligando o Uzbequistão à cidade de Beyneu, no Cazaquistão, passando pelo sul do finado Aral.

Pela estrada, em alta velocidade (com os suspiros de alívio pelo fim dos buracos), encontramos mais usinas de processamento de gás com as mesmas tubulações, o mesmo ar futurista. Uma, imensa, com placas em coreano e em uzbeque, parecia ser uma joint venture de Seul com os uzbeques. Uma outra tinha algo escrito em chinês na fachada. Outra tinha placas em inglês. Já havia visto na ida para o Aral uma com placas em alemão. Outra, de russos. No moderno Uzbequistão, o gás do Aral se tornou um caminho para a riqueza do país, atraindo o olho gordo e o investimento dos estrangeiros. Isso explica a estrada lisa e perfeita, com as placas de sinalização novas e reluzentes. Mas, tirando isso, vi pouco desse dinheiro se convertendo em algo mais para Komsomol e para Moynaq. A miséria perdura, a questão de como dar sustento a toda uma população cuja vida antes era tão simples, dependendo apenas de um barco, ainda continua sem uma resposta. Para quem investe e quer tirar o gás daqui, porém, o deserto do Aral é uma pechincha. O dinheiro passa pela capital uzbeque, para onde tantos jovens daqui acabam imigrando em busca de um pouco da riqueza de sua própria terra.

Os que ficam talvez logo façam algo a respeito do fato de que não estão recebendo a parcela que merecem dos seus tesouros.

Nukus, 22/8, 22h13

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Wednesday 19 April 2023

Novas Fronteiras (XX) - Mar de Aral, Uzbequistão



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21/8/2018

Mad Max.

Uma planície desértica, areia e arbustos. O carro foi levantando uma coluna de poeira no off-road perdido no horizonte. Em um lugar que não pode ser localizado, apenas um lugar em algum ponto de uma vasta área vazia dos mapas, uma vasta área onde nenhum carro deveria estar passando.

À distância, bem longe, ao redor, chaminés. Fogo queimando de algumas, imensas tochas distorcendo o ar, criando miragens escaldantes.

Areia no chão, fogo à distância, calor implacável por toda a parte. Nenhuma cidade por perto. A mais próxima ficava uma hora e meia para trás e era um vilarejo miserável.

Isto é o que se vê após o fim do mundo.

O carro acelerou.



O barulho do motor foi interrompido de forma inesperada.

"Era aqui que ele costumava ficar. Bem por aqui. Imagine. Era fundo. Eu mesmo, nem consigo imaginar", disse de repente em inglês o motorista, um jovem com cara de coreano, não de caracalpaque ou cazaque ou uzbeque. Rosto magro, olhos bem puxados, pele bem branca. Devia ter no máximo uns 25 anos, usava boné, jeans, parecia distraído o tempo todo, a cabeça voltada para o celular tremendo permanentemente no seu bolso. Nunca viu este lugar como ele deveria ser sem a intervenção humana. Ao falar, finge estar triste com o ocorrido. Está, na verdade, indiferente. Esse pós-apocalipse é o seu mundo. Este deserto não levou nada que conheceu. Na verdade, trouxe sua vida, seu ganha-pão.

A Land Rover dava pulos no terreno, leves ondulações nos jogavam no ar.

À nossa frente, os rastros de outros veículos na areia. Seguimos os rastros, eram a bússola. Oitenta quilômetros por hora. Nenhum pássaro e nenhuma nuvem. O sol parecia não sair nunca do mesmo lugar, minuto após minuto.

Os passageiros que viajavam juntamente comigo estavam todos muito silenciosos.

Lá longe, uma linha do horizonte. O tempo ia passando e essa linha negra ia subindo, bem devagar ficando mais grossa. Imaginei uma onda gigantesca, um tsunami, subindo verticalmente. Ameaçador, desconhecido. O que é isso? Perguntei.

"O platô. Vamos para lá. Era onde ficava a margem daquele lado", explicou o motorista, agora sem esconder o tom de tédio.

O platô vinha vindo, cada vez mais negro e imenso, uma pura sombra. Ameaçador, desconhecido.

Nesse momento, nem mais chaminés eu via à distância. Nem a ponta das labaredas de fogo no alto dessas chaminés. Só desolação. Areia coberta de arbustos retorcidos.

E o negro ameaçador, desconhecido, engolindo o horizonte.

O fim do fim do mundo foi se aproximando.

O carro, acelerando.


A jornada ao moribundo Mar de Aral havia começado às 8h30. Saímos do hotel em Nukus em duas Land Rovers. No total, eu e três casais, divididos nos dois carros, além dos dois motoristas. Um deles saiu antes, lá pelas 8h, levando um dos casais apenas. O tour pelo fim do mundo prometia entregar uma experiência única. A ideia era atravessar o que fora o mar no lado sul, território uzbeque, dormir em iurtas à beira do que ainda sobrevive dele e no dia seguinte voltar para Nukus, parando em todos os pontos interessantes do caminho. Turismo surreal, turismo, talvez, de mau gosto: admirar a maior das catástrofes causadas pelo homem, assumir como visitantes o papel de abutres arrancando a carniça que resta dos ossos do Aral. Por outro lado, há uma visão positiva: eis uma jornada para ver como a natureza e o próprio homem, em uma tremenda demonstração de resiliência, é capaz de se reinventar face a uma tragédia tão incomensurável.

A história que ocorreu na área ao norte de Nukus, se prolongando até e além da fronteira do Cazaquistão, é bem conhecida. Até antes da década de 60, o Aral era o quarto maior lago do mundo em área (68 mil quilômetros quadrados) e o centro de uma pujante indústria pesqueira. Mas o planejamento central soviético havia estabelecido a Ásia Central como o centro da produção de algodão do grande país, e o "ouro branco" exigia grandes volumes de água para prosperar. Uma série de canais foi construída desviando a água dos rios Syr Darya e Amu Darya para as plantações. Além de drenar a água que seguiria para o Mar, os canais foram construídos sem o cuidado necessário para evitar o desperdício. Por exemplo, em boa parte deles não foi feito o tratamento do leito para impermeabilizá-lo. Ainda assim, os canais foram, ao menos no papel, bem-sucedidos, desenvolvendo a agricultura como um todo em áreas que antes eram consumidas pela secura dos desertos do Karakum e do Kyzylkum. Em 1988, por exemplo, o Uzbequistão era o maior exportador de algodão do mundo. O impacto dos canais sobre o Mar de Aral, porém, não foi uma surpresa para os líderes soviéticos. Há relatos de que todo o projeto para desenvolvimento do algodão centro-asiático foi autorizado pelo Politburo em Moscou mesmo sabendo-se que os canais condenariam o Mar.

E assim foi. O Mar tem hoje cerca de 10% de sua área original. Uma fotografia de satélite do Mar de Aral comparando-o atualmente com o que era no início dos anos 60 é algo chocante. Com o tempo, o mar foi se dividindo em pequenos mares — o Mar de Aral do norte e o do sul, este divido por sua vez entre o do leste e do oeste. O do oeste, meu destino, ainda não está estabilizado, segue encolhendo, mas a profundidade original ajuda a mantê-lo vivo.


* * *

Antes de seguir para a grande pegada seca do Aral, começamos o passeio com um desvio. Saímos do hotel, atravessamos o canal à beira do qual estive admirando os remadores de Nukus ontem e fomos até uma cidade a menos de 20 km, chamada Khojayli ("Terra dos Peregrinos"), visitar um cemitério. Mas não um simples cemitério. É o local onde, dizem, está enterrado ninguém menos que Adão, o primeiro homem.

A necrópole, chamado Mizdakhan, fica na periferia de Khojayli, numa área rural à beira da estrada que, pouco depois, chega a um posto de fronteira turcomeno (exatamente o que irei cruzar daqui a dois dias). À distância, parece uma favela em uma colina baixa, espalhada em uma área de uns cinco estádios de futebol. O olho vê o que parecem ser casinhas empilhadas, espremidas. O carro vai se aproximando, e as casinhas passam a ser claramente mausoléus islâmicos, com suas cúpulas e crescentes, alguns tão bem construídos que lembram os grandes monumentos de outras partes de Uzbequistão. O carro parou ao lado da entrada principal, com um caminho levando para os principais monumentos. Ninguém por perto, apenas nosso grupo.

Mizdakhan está inexoravelmente ligada a uma colina com ruínas, imediatamente a seu lado, chamada Gyaur-Qala. Trata-se de uma fortaleza datada do século IV antes de Cristo. Seus habitantes, dizem os arqueólogos, eram zoroastristas e no local, além de se proteger dos inimigos, se despediam de seus mortos. A religião tem regras rigorosas que estabelecem a proibição de se enterrar os cadáveres. Tradicionalmente, os corpos são deixados no alto de torres (chamadas dakhmas) para que abutres limpem os ossos de toda carne. Depois, os ossos são recolhidos e depositados em ossuários. Uma dakhmas inclusive foi encontrada no local. O assentamento é tão antigo que inclusive alimenta teorias de que Gyaur-Qala teria sido o berço do zoroastrismo, embora seja muito difícil provar isso. Mas, o que sim está claro, é que quando os árabes chegaram e conquistaram Gyaur-Qala, no século VIII d.C., o local já era sagrado; os árabes se apropriaram dele e começaram a usá-lo para erguer, ao lado, seus mausoléus. Nascia Mizdakhan.

Enquanto os casais que viajavam comigo seguiram em frente pelo caminho, decidi me afastar; queria aproveitar aquela curta meia hora que teríamos no lugar para explorar, tentar ver mausoléus que os outros não veriam. Na verdade, quis ficar sozinho. Que ironia, pensei, enquanto negociava uma trilha entre as tumbas. Ontem à noite, após ver ou não ver Shackleton e ML, a solidão que senti foi tão massacrante que perdi os sentidos, só acordei de manhã.

Encontrei, de cara, o coração de Mizdakhan.



Trata-se de uma ruína de um mausoléu dedicado a um califa chamado Erejep, datada do século IX. Sobrevive uma parede, com nichos, e ao lado dela uma estrutura longa e baixa, com um teto curvado, como uma barcaça virada ao contrário. Tudo é feito de tijolos, sem azulejos. Mas os tijolos foram sendo demolidos, arrancados, derrubados pelo tempo. Estão espalhados ao redor, mas de uma forma curiosa, peculiar. Com um significado especial. Estão arranjados como dezenas de pilhas, a maioria com sete pedras, cercando o mausoléu. As pequenas pirâmides surgiram de uma crença antiga segundo a qual todo esse mausoléu é uma espécie de "relógio do apocalipse", em que os tijolos são as horas, os minutos, os segundos. Quando o último deles despencar da construção ancestral, virá o fim do mundo. Os fiéis, em meio a preces, fazem as pilhas, desta forma "reconstruindo a estrutura" e salvando a humanidade. Os tijolos empilhados devem ser sete porque esse é o número correspondente ao número de aliados do Profeta Maomé que teriam sido enterrados aqui.

Localmente, se diz que o mausoléu de Erejep foi construído sobre a tumba de Adão. Provavelmente, essa lenda vem da tradição zoroastrista que os árabes encontraram ao chegar, indicando que no local teria sido enterrado o primeiro ser vivo criado pelo deus supremo Ahura Mazda. De acordo com os zoroastristas, esse ser, Gayomard, não tinha gênero e, por sua vez, teria dado origem ao primeiro homem e a primeira mulher, que, então, originaram todos nós. Dada a dificuldade de conciliar isso com os preceitos da religião islâmica, os árabes devem ter mudado a lenda, acomodando no local a suposta tumba de Adão. Mas será que ele, ou Gayomard, ou algum ancestral importante dos primórdios da raça humana está realmente está enterrado neste local? Até agora, foi impossível confirmar isso. Mas, claro, também não foi possível provar o contrário e, assim, não são poucos os que vêm a este remoto cemitério para fazer a lenda se perpetuar. Esses fiéis dedicam suas preces a Adão, a Erejep e outros santos enterrados no cemitério, pedindo que nossa história não chegue ao fim. No entanto, ao lado de um mausoléu arruinado, cercado dos tijolos gastos pelos elementos, empilhados ao meu redor, tive a sensação de que, apesar dos esforços dos visitantes, a humanidade já acabou. Que os esforços são fúteis. O que fazemos, tudo o que fazemos, é apenas uma tentativa patética de adiar o que já ocorreu. Empilhar tijolos que podem ser derrubados por um vento mais forte.

A vida como um posfácio. Tudo morreu, foi demolido, e, se há o renascimento eventual hoje ou amanhã, ele é eliminado, morto, demolido, o tempo todo.

Não sinto um renascimento. Não em Mizdakhan.

Só tenho essa sensação dolorosa e que, ao mesmo tempo, me cativa.

Segui em direção a outra parte do sítio, onde estão agora os outros visitantes que chegaram comigo e de onde não se animaram a sair. Estão saindo de uma estrutura subterrânea, onde se entra por uma escada. Sobre a terra, o que se vem são cúpulas, novamente, sete. Trata-se de outro mausoléu, o de Mazlumkhan-Sulu, datado do século XIV. Diferentemente do mausoléu anterior, este foi complemente reconstruído e não há pilhas de tijolos ao seu redor. Seu interior é uma joia azul de belos azulejos brilhantes — no teto, nos delicados frisos decorativos nos cantos das paredes, mesclados com tijolos que parecem saídos da olaria há poucos minutos. Não há nenhuma informação sobre o detalhado trabalho de restauro, tudo é apenas um grande exercício de deslumbramento que soa tristemente falso.



O Mazlumkhan-Sulu também tem uma lenda associada a ele. Mazlumkhan teria sido a linda filha de um governador local. O pai queria que ela se casasse com um dos dezenas de candidatos poderosos e ricos que cobiçavam seu amor. A filha, porém, tinha um coração rebelde, e ele pertencia a um humilde arquiteto que não poderia sonhar em se casar com uma princesa como ela. O amor permanecia secreto. A frustração do governador com a falta de interesse da filha em aceitar um marido que ele julgava apropriado, no entanto, crescia. Um dia, ele anunciou: a mão de sua filha seria do homem que construísse, de um dia para outro, a torre mais alta, alta como o céu. Julgava, na certa, que os ricos e poderosos mobilizariam seus exércitos para a construção e um deles, na certa, ganharia a corrida. Não foi isso o que ocorreu. O dia amanheceu e o arquiteto, após um frenético esforço, impulsionado pela paixão e abençoado pela sorte, foi capaz de erguer um minarete mais alto que nenhum outro. Ainda assim, o arquiteto não conseguiu o consentimento do pai de sua amada. Ele lhe recusou a donzela. Com o coração partido, o arquiteto subiu o alto minarete e de lá de cima, se atirou. Foi seguido por Mazlumkhan. Massacrado pela dor e pelo arrependimento, o pai da moça decidiu construir, para ela e para o arquiteto, o mausoléu. Mas o fez subterrâneo, usando nas paredes os tijolos da torre que o desprezado arquiteto erguera.

Em Mizdakhan há outros mausoléus de valor histórico e arquitetônico, a maioria ainda sem nenhuma reconstrução. O tempo era curto — eis o preço lamentável a pagar pela logística resolvida confortavelmente pela excursão. Apenas meia hora de exploração em Mizdakhan é mais que suficiente para quem se conforma em ver apenas o Mazlumkhan-Sulu, mas é uma piada de mau gosto para quem quer ver tudo, andar, sentar, respirar, rever, reexplorar, reviver, rezar, suspirar, admirar, imaginar, se perder, se encontrar. Como era meu caso.

Distante uns minutos a pé, fica Gyaur-Qala. Para lá fomos todos, olhando o relógio.

Em contraste com a necrópole de Mizdakhan, nessa colina não há nenhuma tumba visível, mas apenas volumes de terra lisa, pelados, edificações dilaceradas escondidas sobre a superfície criando rugas sugestivas na superfície, sem plantas, refletindo o sol. Gyaur-Qala lembra as outras fortalezas de toda a região da Corásmia, ao redor de Khiva e Urgench, o roteiro de sítios assombrando o Kyzylkum que explorei em 2003.

Que bom que eu já sabia algo sobre o sítio. Não havia placas informativas. Perguntei, e o motorista da nossa excursão são sabia absolutamente nada sobre o lugar. Também nenhum dos turistas com os quais conversei sabia algo. Aliás, não estavam interessados, não mostraram nenhuma vontade de parar no local. Queriam ir logo para o deserto do Aral. Fiquei incomodado com meus companheiros de viagem. Assim, me sentei em uma das superfícies polidas de Gyaur-Qala e me dediquei a olhar Mizdakhan à distância, apreciando a vista, tentando encontrar o mar de pirâmides de tijolos ao redor do mausoléu de Erejep. E passei a ignorar todos. Decidi, conscientemente, perder a noção da hora. Até que me avisaram que era hora de ir.

Foi dor o que senti a seguir, uma dor vinda de minhas pernas... por causa do contragosto de me lançarem de volta ao carro. Ao chegar, todos estavam já sentados, fazia cinco minutos, apenas me esperando. E lançaram na minha direção olhares fulminantes quando eu, displicentemente e sem nenhuma, nenhuma sinceridade, pedi desculpas pelo pequeno atraso em voltar.


* * *

Moynaq é o lugar-comum do moribundo Aral. É provavelmente o símbolo mais conhecido da imensa tragédia. E chegar a ele, após algumas horas na estrada depois de Mizdakhan, causa uma reflexão incrédula: como este lugar ainda existe?

Na estrada, na chegada, havia ainda uma placa com um símbolo de Moynaq. Um símbolo com o desenho de um peixe. A placa ainda tinha cores, cores que a cada minuto vão se tornando mais pálidas, mais inexistentes. Como que para justificar a teimosa persistência da placa com o peixe, ao lado dela resistia um laguinho. Umas crianças com trapos como roupas brincavam por perto, pegavam pedaços de pau e fingiam ser espadachins. As casas de Moynaq começaram a aparecer à beira da estrada logo depois. O asfalto era bom, parecia ter sido reformado recentemente. Mas, nas ruazinhas laterais, perpendiculares à via principal lisa como uma mesa de bilhar, nem havia pavimentação. Havia areia, areia voando para cá e varrida para lá pelo vento inconstante. Vi muros feitos de juncos provavelmente tirados dos brejos do mar quando ele ainda ficava perto. Vi casas velhas de barro, secas, se desfazendo. Algumas eram cobertas com telhas pré-fabricadas que provavelmente serão a única coisa a restar visível quando a areia das ruas consumir de vez os casebres e todos os pobres moradores forem embora. Poucos ficaram. Talvez estivessem dentro de suas casinhas naquela hora para se proteger do sol brutal. Ou talvez essas casas mais velhas sejam apenas cenário, tenham sido abandonadas há anos e ninguém teve o menor interesse de voltar a ocupá-las. Ironicamente, perto da estrada vi casas novas sendo construídas com ajuda do governo, com uma placa apresentando a obra como algo significativo. Fiquei incrédulo. É realmente verdade que há demanda para essas habitações? A obsessão de construção do governo uzbeque chegou até Moynaq, mas para quê? Não seria melhor tirar todos daqui de uma vez?

Do que vive esta cidade?

Da espera eterna por algo, um novo alento, uma nova vida. Talvez o turismo, esse turismo tão mórbido.

Hoje com cerca de dez mil habitantes, Moynaq ficava em um istmo no Aral, levando a uma pequena península, e é por esse antigo istmo que passa a estrada. Aqui ficava ancorada uma vasta frota de barcos pesqueiros, mas, atualmente, a margem mais próxima do mar, que continua encolhendo a cada ano, fica a cerca de 200 km daqui.

O lugar tem um museu e essa foi a primeira parada. Ele tem uma coleção de fotos e objetos mostrando como a vida foi boa um dia por aqui. Uma estátua dá as boas-vindas ao museu: é uma representação em concreto de um pescador, pintada com tinta prata, segurando um peixe com o rabo destruído. Os vergalhões outrora cobertos de concreto do rabo estão à mostra. Especulo que a estátua foi danificada por um morador com raiva, revoltado com o destino que tomou a indústria pesqueira local. No seu auge, nos anos 1950 e 1960, essa indústria empregava cerca de 40 mil pessoas e produzia algo como um sexto de todo o pescado da União Soviética. Quem está ainda vivo e viu esse tempo deve querer chorar toda vez que olha esta estátua.

O foco do museu, aliás, são as fotos desse tempo que não volta. Os pescadores saindo em suas barcaças durante a noite, regressando de manhã ao porto da Moynaq com montes de peixe fresco. Somos conduzidos para ver as fotos uma por uma por uma funcionária do museu, uma senhora idosa de olhos sem brilho. Mais tristeza: apresentando as imagens, fala apenas russo, e apenas eu, entre os turistas, entendo o que ela fala. Quanto esforço descritivo e explicativo, quase inútil. Mas nem sei se meus companheiros de viagem se interessariam, na verdade.

Nas fotos, sorrisos lindos dos pescadores, uma visão idílica de viver em harmonia com a natureza, mas em imagens em branco e preto, escuras, gastas, nem parecem mais fotos, parecem pinturas expressionistas. Um mundaréu de água negra. O mar parecia tão fundo, tão impossível de se eliminar. Ao lado dessas mesmas fotos, a inevitável imagem de satélite mostrando o recuo do mar desde meados dos anos 60 até hoje. Uma vasta mancha escura virou uma poça esverdeada.

O carro depois nos levou a um mirante do deserto. Aqui, os moradores de Moynaq foram acumulando os esqueletos de vários dos barcos usados no auge da indústria. Alguns foram trazidos de pontos mais distantes, estavam atracados em pontilhões de madeira à beira-mar, espalhados. A água acabou e ficaram atolados, foram enferrujando, foram definhando. Alguns navegaram pela última vez nos anos 1960. E, claro, nunca mais vão navegar. Foram trazidos apenas para os turistas, para fazer parte de uma coleção lúgubre sob o sol. Estão lá agora, à frente do mirante, alinhados, um a um oferecendo seu depoimento sobre o inimaginável. Como se presos em um pier invisível, sobre a água invisível, tripulados por seres invisíveis, carregados de peixes invisíveis.



Uma visão desconcertante, reproduzida exaustivamente em jornais e revistas como o símbolo maior da tragédia. Mas as fotos não substituem o sentimento, profundamente perturbador, de observar esse panorama em pessoa.

Desci para o "mar". Os barcos estão pichados. O metal está tão deteriorado que fiquei com medo de tocar, me cortar e morrer de tétano. Em um deles, umas crianças brincavam e exploravam a pequena cabine onde um dia ficava o capitão.

Na areia fofa ao pé dos barcos, chutei sem querer alguma coisa que sai voando. Me agachei para ver. Era uma conchinha branca, apenas metade dela. Ajeitei o chapéu para proteger os olhos da luz do sol e cavei com os dedos a areia. Encontrei muitas outras, de vários tamanhos. Enfiei umas quatro no bolso. Pensei: vou dar de presente. São suvenires de um mar que já não existe. Pedacinhos do mar no meio do deserto. Não há nada mais surreal.

Me senti na obrigação de visitar cada barco enfileirado no pier imaginário. Em frente a cada um deles, tive o desejo de ficar de pé, em silêncio, não olhando para as embarcações em si, mas para o chão onde estavam fincadas. Foi o que fiz.

Sou parte da humanidade, e a humanidade causou isso. É culpa minha também.

Depois de visitar o último barco, olho para o horizonte.

Me chamam para o carro.


* * *

O platô vinha vindo, cada vez mais negro e imenso, uma pura sombra. Ameaçador, desconhecido.

Eu ainda estava com a cabeça nas chaminés, no fogo saindo de algumas. A produção de gás natural e petróleo virou uma panaceia para o Aral, juntamente com o turismo. As fábricas provavelmente poderiam ser mais numerosas, não falta espaço para elas, todas poderiam explorar os hidrocarbonetos criados por séculos de acúmulo de matéria orgânica nas profundezas do mar que não é mais mar. Mas quem se beneficia delas? A comunidade miserável de Moynaq, o que ganha com isso?

O deserto no leito do antigo mar, chamado agora de Aralkum, é na verdade menos inóspito do que eu esperava. Há trechos só com areia, mas uma vasta área já é dominada por uma planta que, às vezes, se parece como uma árvore baixa, curvada, retorcida, deformada. É chamada de saxaul, é natural de uma vasta área que inclui a Ásia Central e perfeitamente adaptada para crescer em solos arenosos e com pouca água. Ela vem sendo plantada pelos locais no leito do antigo mar justamente para manter no lugar a areia, a poeira, criar condições à vida estável. Imagine: uma imensa floresta nascendo sobre o cadáver do mar. A grande floresta de Aral. E, com ela, podem aparecer animais, cria-se um ambiente onde eles podem viver em paz. Um consolo, uma compensação depois da tragédia? Tenho certeza, absoluta, que ninguém que mora aqui queria que acabasse assim. Talvez só os donos das plantas de exploração de hidrocarbonetos e os operadores de excursões como a que estou fazendo.

O platô de Ustyurt finalmente chegou. É uma barreira de pedra impressionante, branca-bege-ocre, com a altura aproximada de um prédio de dez andares; o carro foi por cerca de uma hora rasgando o Aralkum em rota de colisão frontal. Quase chegando à muralha, desviou e começou a subir por uma via com marcas de pneus. Lá em cima, paramos para ver a vista. De onde estávamos, abaixo, se via o caminho tênue por onde carros poderiam passar em direção a um cânion profundo colado ao platô. Era um cânion com as paredes de pedra dispostas em camadas, com as linhas horizontais que acusam, quem sabe, as linhas da água que um dia as erodiram. Vi água imaginária por toda a parte. Era como se estivesse fazendo mergulho autônomo.



O Ustyurt pertence firmemente ao que a história esqueceu. Seu território remoto foi, acima de tudo, passagem, a linha entre dois pontos, nunca o centro dos acontecimentos. Mesmo quando anexado formalmente por algum império, mesmo sendo hoje parte de Uzbequistão, Cazaquistão e Turcomenistão, nada aqui diz que este lugar pertence a alguém a não ser a si próprio. Os nômades que o habitavam não eram os senhores do platô, o platô que era dono deles.

Sem os nômades, hoje, este fascinante pedaço de nada é ainda mais alheio ao planeta.

De Moynaq até aqui se passaram umas três horas. Três horas sem sinal de nenhuma cidade, nenhum morador.

Tão vazio.

Voltamos para o carro. O resto do trajeto foi ainda mais lento. A Land Rover seguia à beira do precipício, mas às vezes entrava para o interior, se distanciava para um plano sem nada a perder de vista a não ser mato rasteiro. Depois, voltava para a beira. Lá embaixo, além do platô, lá onde ficava o mar, também não havia nada. O precipício, uma linha, era a única referência.

E então, o horizonte mudou.

Uma linha brilhante, refletindo o sol, apareceu embaixo, bem à frente, ainda distante, à direita do platô. Novamente, como ocorrera com o Ustyurt, foi se aproximando bem devagar. Foi tomando espaço. Logo identifiquei uma praia, uma imensa curva de areia circundando o corpo d'água. Em breve, o mar estava bem perto. A água estava parada, sem nenhuma onda, sem sequer uma ruga.

Um fóssil.

O carro pegou uma saída e começou a descer. O motorista tomou a palavra. "Aqui, bem aqui", disse, apontando. "Está vendo esta beirada aqui, com a vegetação, e a areia, até o mar? Há dois anos, o mar cobria tudo, até chegar na vegetação". O que se via agora eram uns 500 metros dos arbustos até o início da água. Parecia só uma imensa praia. Em um dos lados, à distância e perto da área de vegetação, havia umas iurtas atrás de um muro baixo com cor de areia. Estavam longe demais para se ver se havia alguém. Tirando isso, tudo estava vazio. O sol já estava baixo; o pôr do sol seria atrás do platô, do lado oposto do mar. As sombras já estavam longas. Vento constante, com força suficiente para levantar areia do chão. Tudo tinha uma cor alaranjada. Quando o carro finalmente parou na praia, estávamos a uns 50 metros da água.

Todos saíram do carro. Os meus companheiros de viagem pareciam acima de tudo aliviados de esticar as pernas de novo. Um casal se abraçou, parecia incomodado com o vento, e nem olhou direito o mar. O outro casal, de italianos, parecia dividido: a mulher olhou um pouco o panorama, mas logo só tinha olhos para o namorado, um moço jovem que foi o único que pareceu ter ouvido minha pergunta para o motorista: "Tenho tempo para um mergulho?" Com os braços cansados de horas de volante, o motorista deu uma risada. "Claro! É para isso que trouxe vocês aqui". Tirei a roupa suada em segundos, a bota colada nos meus pés demorou mais para sair. O calção de banho já estava embaixo da calça. O moço italiano, em meio a gritos de incentivo da mulher, de repente começou a me copiar, dando risadas.

— Deve estar fria! — disse o italiano.
— Fria ou não, aqui vamos nós!

Gargalhei. No meio da corrida para a água, abri os braços. Êxtase com tristeza, empolgação com culpa, encantamento com luto, uma mistura de sensações que nunca havia sentido na vida. Eu era um representante da humanidade, um representante dos responsáveis por reduzir um mar imenso e lindo a uma poça. Agora, iria tomar banho nessa poça. Parecia que estava tripudiando do destino trágico do Mar de Aral. Mas continuei correndo, de braços abertos, e logo a água tépida começou a bater em meus tornozelos.

Nada de ondas mesmo, apenas o balanço da água que, logo, se transformaria em pura espuma branca. O chão era de lama profunda, pegajosa, que em alguns trechos afundava até os joelhos. Logo o meu companheiro de mergulho, que tinha ficado para trás, me alcançou. Eu e ele, com grande esforço, fomos vencendo o lodo e a espuma branca até finalmente chegar em um local com a água batendo no abdômen.

E mergulhamos.

Água salgadíssima, azul-acinzentada, uma verdadeira salmoura. Com a extinção progressiva das últimas décadas, a concentração de sal no que sobrou do mar foi aumentando. Quando a cabeça voltou para fora da água, senti o vento batendo nos lábios queimados de sol. Com o sal, eles estavam ardendo. Mergulhei de novo. E depois, comecei a boiar, boiar incrivelmente, como se estivesse amarrado em flutuadores de isopor. Meu peito inteiro estava para fora da água, meus pés, no ar. A água era densíssima.

Somente a fauna capaz a se adaptar à salmoura sobreviveu. Quase nenhum ser vivo. Uma exceção: em toda a superfície da água, aos trilhões, havia artêmias, minicrustáceos vermelhos de um centímetro de comprimento, conhecidos por viverem em águas salgadíssimas, como por exemplo as encontradas em poças em salinas. Artemia parthenogenica, seu nome científico. Com o mar calmo, ficam passeando pela superfície da água, perambulando de cá para lá com suas minúsculas patas nadadoras. Na minha barriga, as vi colidindo umas com as outras. Eu estava, na verdade, em uma grande sopa de artêmias. Fiquei preocupado em evitar que alguma entrasse no meu olho, o que seria doloroso mesmo se a água entrasse sem um dos crustáceos. Talvez uma água tão salgada possa até cegar uma pessoa.

Flutuando, perguntei ao italiano o que estava achando da experiência. Ele disse que havia estado uma vez no Mar Morto, conhecido pela sua extrema salinidade. "Aqui é muito divertido. Menos nojento e mais limpo do que lá, onde tem gente demais."

Minha culpa morreu por excesso de sal.

Saímos rapidamente, o motorista nos levou para cima do platô de novo. Lá havia um acampamento de iurtas com uma vista fabulosa do mar, promessa de um grande amanhecer.

Mar de Aral, 21/8, 22h20

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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Thursday 13 April 2023

Novas Fronteiras (XIX) - Nukus, Uzbequistão



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Este capítulo descreve uma visita à República do Caracalpaquistão (pertencente ao Uzbequistão) antes dos protestos de julho de 2022, nos quais pelo menos 18 pessoas morreram. Os confrontos foram motivados por uma proposta de emenda à constituição do Uzbequistão, apresentada pelo governo uzbeque, que previa o fim do status autônomo da república e de seu direito legal de reivindicar sua independência por meio da realização de um plebiscito. Após os protestos, o governo uzbeque retirou a proposta. Clique aqui para ler um resumo dos acontecimentos.

20/8/2018

No fim da tarde, sol e vento agradável. Temperatura perfeita, uns 22 graus. Em um passeio à beira-rio.

Jamais esperava ver isto nesta cidade.

A promenade estava sendo bem aproveitada: havia ciclistas, pessoas correndo, famílias passeando com seus bebês. No rio em si, mais atividade: remadores, caiaqueiros. Aliás, de longe vinha se aproximando, passando por baixo de uma ponte, a toda velocidade, um barco a remo com dois tripulantes. Me perguntei se os atletas estavam treinando para a Olimpíada.

Esta é uma cidade europeia?

É Nukus, capital da remota República autônoma do Caracalpaquistão, a maior cidade na região do Uzbequistão onde fica o moribundo Mar de Aral. Uma visão pré-concebida foi forjada na minha cabeça pela tragédia ambiental no mar. Imaginava toda esta região torturada pela natureza desolada, com pouca gente e, esses poucos restantes, todos doentes, magros, tristes. Imaginava um lugar seco, com residências sendo destruídas implacavelmente pelos elementos, vento horroroso trazendo sal e poeira, solo infértil, poucos pássaros, árvores raquíticas... céu azul sempre visto com um filtro cinza, por todos os lados a sombra da morte, os presságios do apocalipse.

O que vejo é o oposto disso. Em primeiro lugar, há o mesmo que se vê em tantos outros lugares do Uzbequistão, desde o agora longínquo vale de Fergana, no extremo leste, a agora este, no extremo oeste: o governo destruindo construções antigas e construindo prédios novos, criando e reformando calçadas, reformando tudo. Eu não estive em Nukus antes, então não posso saber exatamente o que existia aqui antes. Certamente, muitas memórias. Mas o que encontro é uma calçada agradabilíssima, uma área de prazer e lazer, uma oportunidade de admirar o rio — na verdade um canal com água desviada do Amu Darya (o rio em si passa alguns quilômetros a oeste). O canal é grande, amplo. Não é um regatinho de líquido contaminado com pesticidas, uma fonte de vergonha. Os remadores que o digam. Impressionante o contraste com o que eu tinha na minha cabeça. Impressionante como o Amu Darya é ainda poderoso por aqui, tão poderoso a ponto de alimentar este grande canal. Não consigo imaginar como era antes dos soviéticos, que durante seus anos foram construindo canais e canais para desviar água do Amu Darya para suas plantações antes de chegar a Nukus. O rio deve ter sido colossal no passado.

Vi muita gente no passeio ao longo do canal. Uma menina passou com patins, atrás veio a mãe e o pai, de braços dados, ambos arrumados com capricho, ela com seu vestido colorido, ele, barbeado, com o cabeço penteado cuidadosamente. Caminhei um pouco mais e me sentei em um banco à frente de um chafariz de águas dançantes, com música. Ao redor da fonte, alguns camelôs arrumavam as mercadorias no chão — claramente esperando a freguesia que viria mais tarde. Uma menina de uns 12 anos era um desses camelôs; chegou para vender doces industrializados e brinquedos de plástico coloridos. Estava completamente sozinha. Encontrou seu canto e fez tudo com habilidade e velocidade: abriu uma grande sacola, com metade de seu próprio tamanho, tirou um cobertor, o estendeu no chão, foi removendo das caixas cada tipo de mercadoria, ajeitou-as em fileiras sobre o cobertor, guardou de volta as caixas na sacola, a colocou em um lado e, finalmente, se agachou em frente à sua vitrine improvisada, com os braços cruzados. Passou a se dedicar a olhar para o chafariz. Não para os lados, nunca, olhava apenas para a fonte.

A fonte. Os jatos d'água estavam desajustados, deveriam ir todos para o alto e em direção ao centro, mas uns iam para um lado, outros, para o lado oposto, criando poças ao redor. Do lugar onde eu e a menina camelô estávamos, o sol estava na posição oposta. A luz atravessava os jatos subindo e descendo, começando e recomeçando a dança. A música saia de algum lugar que eu não conseguia identificar, acho que da própria fonte. A luz atravessava a água voadora e a dissociava em cores infinitas.

De repente, o vento veio e meu rosto se molhou. Que sonho refrescante.

Havia algumas árvores ao redor. Verdes, vibrantes. E passarinhos. Cantoria de andorinhas em grupos, outras aves maiores que nem consegui identificar.

Onde está a desolação? Onde está a morte?

Uns dez minutos hipnotizado. Nesse tempo, uma única pessoa, uma garota, passou entre a fonte e mim, bloqueando o sol por um instante. Só vi seu perfil escurecido pelo contraste, cabelo puxado para trás num rabo de cavalo. Tirei uma foto. A imagem do seu perfil ficou marcada também na minha retina, a luz do sol ao redor de sua cabeça, criando uma aura.

Me levantei. A menina camelô estava muda, ainda agachada exatamente da mesma maneira. Olhando para o mesmo lugar. Nem notou minha existência. Fiquei com pena.

Ao lado do canal e do passeio fica o mercado central de Nukus. Naquele momento estava fervilhando, todos correndo para comprar comida após um dia de trabalho. Fartura de tudo, frutas, legumes, carne. Vi crianças sapecas, correndo e pulando entre as caixas, entre os sacos, entre os velhos com sacolas, entre os odores de endro e de gases de escapamento. Ao lado, um terminal de vans serve o mercado. Veículos partiam cheios. A gritaria caótica dos cobradores e motoristas, dos clientes correndo de lá para cá para apanhar a condução que já estava partindo.

A sensação era de arrebatamento dos sentidos, muita coisa acontecendo simultaneamente. Meus olhos flutuavam em cada rosto enrugado, murcho pelo sol forte. Meus olhos flutuavam em cada cor nas barracas do mercado. O nariz, em cada cheiro.

De repente, quase atropelei uma velhinha baixinha. Usava uma roupa suja, cores desbotadas, lenço puído na cabeça. Vinha com uma panela pequena na mão. Dentro dela, brasas e um maço de uma planta que estava queimando. Saia uma tremenda fumaça, e eu não sentia nenhum aroma agradável. Ela aproximou a panela do meu rosto, fez movimentos circulares verticais com ela no ar. A erva queimada é chama de ishrik; seu uso em bênçãos supostamente tem raízes anteriores à chegada dos muçulmanos à Ásia Central. Dizem que a erva tem propriedades medicinais, mas era impossível identificar naquele momento se essa era mesmo alguma erva boa para a saúde ou se era apenas um mato qualquer que a mulher pegou e botou fogo. Fiquei desconfortável. A velhinha insistiu em circular a fumaça em meu rosto. Parecia ser cigana, queria um trocado, mas eu não poderia tirar do bolso minha carteira no meio do mercado, alguém poderia facilmente pegá-la e sair correndo. Sorri, fiz um gesto para ela se afastar, e ela se distanciou sem reclamar.

Mirei o outro lado do terminal de vans, para onde saíam os veículos. Era uma avenida. Negociei passagem entre as buzinas, atravessei tudo. Da calçada à beira da via, enxerguei um lindo mural de visual soviético adornando um dos prédios antigos ao redor. Os edifícios pareciam ser sedes de escritórios do governo local. Nas fachadas, um estranhamento; vi grandes cartazes de propaganda. Estavam em uma língua estranhíssima, que não conhecia, nunca havia visto antes.

E lembrei, então. Nukus fica no Uzbequistão. E não fica. Isso não é uzbeque, é caracalpaque.

A primeira vez que ouvi falar dessa nacionalidade obscura foi também na minha primeira vinda ao Uzbequistão, em 2001. Naquela época, e até hoje, os caracalpaques respondiam por boa parte dos imigrantes pobres que iam tentar a vida em Tashkent. Fugiam da miséria causada pelo assassinato do Mar de Aral — inclusive o fim da indústria pesqueira. Certamente em 2001 as melhorias do governo que vejo criando hoje um pequeno paraíso em Nukus estavam longe de se tornar realidade. Caracalpaque era sinônimo em Tashkent de miserável, de pessoa sem perspectiva. Existia preconceito na capital contra eles. Como o que os nordestinos que imigram sofrem no sudeste e sul do Brasil.

Mas o preconceito ia, e vai, além do fato de que os caracalpaques vêm de uma região mais pobre. Há mais razões, baseadas em diferenças culturais.

Ainda os estudiosos não têm inteira certeza sobre a origem dos caracalpaques. Há uma crença de que a etnia tem sua origem em uma tribo túrquica conhecida por ser a origem de mercenários ativos na Rússia medieval, anterior à invasão dos mongóis (a chamada Rússia de Kiev). Eram então chamados pelos russos de "chapéus pretos". Essa é justamente a etimologia da palavra "caracalpaque" (em túrquico, kara é preto, kalpak, chapéu). Mas a teoria nunca foi provada. O mais possível é que os caracalpaques tenham sido um grupo que se separou dos cazaques em determinado momento do século XVII — sendo que os cazaques, da mesma forma, também teriam sido um dia parte de uma grande tribo que os unia com os uzbeques, dos quais teriam se separado no século XV e então seguido uma evolução paralela, criando sua própria cultura. Na sua suposta separação, os caracalpaques, assentados na região do Mar de Aral, levaram consigo a maior característica dos cazaques, o pastoralismo nômade, segundo o qual os cidadãos vivem nas estepes circulando com seus cavalos em busca das melhores pastagens e se fixando em algum lugar por mais tempo apenas para passar os rigores do inverno. Diferentemente dos uzbeques, que têm uma forte associação com o sedentarismo, os caracalpaques usam tradicionalmente a iurta, a barraca circular dos nômades da Ásia Central, tal qual os cazaques, os quirguizes e os turcomenos.

A língua, inevitavelmente levando em conta a provável origem dos caracalpaques, é outra diferença fundamental que eles têm em relação aos uzbeques, e, é claro, a mais chamativa ao visitante. Se parece tanto com o cazaque que há quem julgue que são a mesma língua, apenas escrita de forma diferente de cada lado da fronteira. Eu esperava, na prática, que ela não se fizesse sentir de forma clara em Nukus. Esperava que a língua local fosse reservada a alguns, deixada como uma peculiaridade semioculta em meio à dominância do uzbeque, essa sendo a língua nacional de um governo com forte orgulho nacionalista. Ou seja, eu previa que a língua caracalpaque nunca fosse visível em grandes cartazes em prédios. Que surpresa. Esses cartazes de propaganda que encontrei perto do mercado estavam apenas em caracalpaque, não eram sequer cartazes bilíngues, incluindo o uzbeque. Escrito com o alfabeto latino, o caracalpaque me lembrou visualmente o holandês (talvez pela presença constante da letra W, ausente no uzbeque).

Mais além da língua, eu julgava improvável que o Caracalpaquistão exercitasse de forma explícita e contundente qualquer coisa que pudesse enaltecer seu direito a uma hipotética independência. Contudo, não foi isso que vi. Alguns detalhes falam muito, reforçando a ideia de uma identidade distinta. Os homens caracalpaques, por exemplo, não costumam usar o chapéu típico uzbeque, o dope. Desde minha chegada, não vi absolutamente nenhum com ele nas ruas, no mercado, à beira do canal, no hotel onde fiz check-in. As iurtas são uma referência constante em Nukus. No hotel, construíram uma num pátio, o turista pode se hospedar nela se quiser. Há lembranças temáticas de iurtas em lojas de suvenires. Claramente os caracalpaques se orgulham da barraca e a usam para estressar sua diferença dos uzbeques. Também há a ausência das camas quadradas, colocadas em baixo de árvores ao ar livre, nas quais os uzbeques gostam tanto de se recostar para tomar chá, os tapchans. Em termos de religião, o Islã sempre teve uma penetração mais fraca entre os povos de origem nômade. Não vi madrassas por aqui e só encontrei até agora uma mesquita, algo impensável nos centros velhos de Samarkand, Khiva e Bukhara. Simplesmente não há no Caracalpaquistão tesouros arquitetônicos ancestrais como nessas joias da Rota da Seda a leste daqui, como também eles são raros no Cazaquistão, com exceção da região mais ao sul onde os cazaques disputam espaço com os uzbeques. Até mesmo no aspecto físico, uzbeques e caracalpaques parecem ter uma ligação mais distante que caracalpaques e cazaques, estes dois tendo olhos mais puxados, rosto mais redondo. Assim, estranhamente, me sinto muito mais próximo de Almaty do que de Tashkent em Nukus. Há até, segundo cartazes colados em paredes no mercado, um serviço de ônibus direto conectando Almaty e a capital caracalpaque. Imagino que seja um destino atraente para migrantes econômicos que falem melhor caracalpaque que uzbeque. Imagino que, se eu fosse caracalpaque e tivesse a escolha, sem problemas envolvendo vistos ou permissão oficial e se eu tivesse fluência na língua da república autônoma, certamente escolheria imigrar para Almaty em vez de Tashkent. Assim, evitaria o preconceito dos uzbeques. Aliás, os cazaques eram, até meados de 2010, aproximadamente um terço da população do Caracalpaquistão. Esses podem ser imigrantes cazaques que se fixaram no território, caracalpaques que têm passaporte cazaque e preferem se identificar assim ou mesmo caracalpaques que, questionados pelo censo, sequer identificaram qualquer diferença entre a sua própria identidade e a de seus irmãos ao norte da fronteira.

Quantas diferenças em relação aos uzbeques. Me pergunto se já houve alguma discussão séria sobre separatismo entre os caracalpaques.

De fato, sim e ela segue existindo. O debate se fundamenta no que ocorreu nos tempos da URSS. Um território para os caracalpaques surgiu na região pela primeira vez em 1925, inicialmente como uma região autônoma da República Soviética do Cazaquistão. Em 1932, passaria a ser uma república autônoma, ainda do Cazaquistão soviético, e, em 1936, passaria ser incluída no território da República Socialista Soviética do Uzbequistão. Durante os primeiros anos da URSS, outras duas repúblicas autônomas foram criadas por Moscou na Ásia Central, a dos tajiques e as dos quirguizes, mas ambas, alguns anos após criadas, seriam promovidas a repúblicas soviéticas, um grau acima. Que o Caracalpaquistão nunca tenha subido de status é algo um tanto misterioso, mas provavelmente reflete a significativa influência das elites políticas uzbeques ou a falta de influência das elites caracalpaques nos tempos da URSS. Após a queda do comunismo, todas as repúblicas soviéticas fizeram a transição para virar países independentes. O Caracalpaquistão, ainda como república autônoma, não. Tal figura jurídica, "república autônoma", existe, aliás, em outros países da ex-URSS. Na Rússia, por exemplo, há dezenas de repúblicas autônomas, cada qual com sua língua, governo, bandeira, estrutura burocrática. Mas, lá, essas repúblicas são parte integrante de uma federação, algo que não ocorre no Uzbequistão. Além disso, nenhuma república autônoma russa tem, isoladamente, a mesma importância geográfica dentro da Federação Russa que o Caracalpaquistão tem dentro do Uzbequistão. O território da república autônoma equivale a cerca de um terço do território uzbeque. Em caso de separação, o Uzbequistão ficaria seriamente desfigurado nos mapas.

Por via das dúvidas, é claro, o governo uzbeque investe em sua república autônoma, embeleza Nukus, e mostra sua tolerância com a identidade local.

Seguindo pela avenida ao lado do mercado, depois de tentar encontrar algum sentido nos Ws alienígenas nos cartazes nos velhos prédios, fui me afastando do bazar. E a verdade transpareceu clara. Se há prédios novos, se aqui e ali uma avenida parece recém-construída ou reconstruída, com sua calçada reluzente e lojas que parecem ter fachadas pré-fabricadas, nas quadras ocultas atrás dessas vias um retrato de miséria ainda existe. Encontrei velhos conjuntos habitacionais soviéticos, alguns em estado tão deplorável que pareciam cortiços. Esses conjuntos existem por toda a Ásia Central, mas nunca os vi no estado que estavam alguns que achei em Nukus. Imagino que, antes da sanha higienizante e modernizadora dos presidentes Karimov e Mirziyoyev, tudo por aqui fosse assim, caindo aos pedaços, triste, exatamente como eu esperava encontrar. Neste caso, sem ter conhecido a cidade antes, mas sabendo o quanto ela foi afetada pela tragédia do Aral, sabendo que ela nem tem tesouros arquitetônicos ou uma profundamente enraizada cultura urbana (visto que a tradição por aqui era ancestralmente o nomadismo), só consigo ver vantagens na febre de reconstrução imposta por Tashkent. Faz sentido. E espero que continue, respeitando as comunidades, permitindo que os moradores possam permanecer onde estão.

Dobrei uma esquina. Encontrei do outro lado da avenida, oposto a mim, o palácio do Parlamento local, moderno, lindo, perfeito, uns cem metros atrás de um portão que impede qualquer um de chegar perto. As duas bandeiras na cúpula do edifício baixo são do Uzbequistão e do Caracalpaquistão, esta quase idêntica à bandeira uzbeque, mas com a faixa central branca substituída por um amarelo alaranjado, cor que remete ao deserto. Observei à distância. Tive pouco interesse, a arquitetura do palácio não me chamou a atenção. Fui caminhando de volta para o hotel.

À direita do portão, vi dois turistas parados, olhando para a edificação. Dois homens, um alto, outro menor, vestindo roupas surradas e suadas. Pensei que algum policial ia chegar perto e dar uma bronca naqueles malucos por estarem perto demais do portão. Olhei melhor. Eles me pareceram familiares.

Shackleton e o moleque, vestidos da mesma forma que os encontrei pela última vez em Samarkand.

Esfreguei os olhos. Como assim? Inacreditável! O que estão fazendo aqui?

Gritei para chamar a atenção, eles não ouviram. Estavam, na verdade, longe: entre nós, havia uma avenida de várias faixas, movimentada, com ônibus, táxis, barulho. Para atravessar, só havia um ponto possível, também distante; eu teria que voltar umas duas quadras do meu lado da avenida até alcançar a faixa de pedestres. Mesmo assim, fui para lá, de olho nos meus dois amigos. Eles cobriam o rosto para proteger os olhos do sol e ver direito a fachada. Pouco depois seguiram caminhando bem devagar para o sentido oposto ao que eu seguia.

Me veio uma sensação de desespero, de repente. Uma vontade imensa de vê-los de perto, de conversar com eles. Um vácuo me puxava por dentro, ameaçando me engolir se eu não os abraçasse. Era um desespero, louco, agudo.

Gritei. Meus amigos! Aqui! Aqui! Olhem para cá!

Parei de gritar. Fechei os olhos uns segundos, ainda caminhando para a travessia de pedestres.

Abri os olhos. Olhei de novo. Eles não estavam mais lá. No lugar deles, estava lá, do nada, perfeitamente nítida, ML.

Ela estava com o mesmo vestido florido de ontem.

Que diabos estava acontecendo?

Gritei de novo. Nada, ela não me ouvia. Como antes estavam Shackleton e o moleque, estava imersa demais na arquitetura do palácio para perceber algo além disso.

Senti como se ML ou os meus dois companheiros das montanhas fossem uma boia no oceano e eu estivesse me afogando.

Corri com o máximo de velocidade. Finalmente cheguei à faixa de pedestres. Maldita dificuldade proposital para atravessar, pensei, com muita raiva, a faixa ficava longe demais, as autoridades simplesmente não querem que as pessoas se aproximem muito do Parlamento.

Olhei para os dois lados da via, não esperei o sinal verde para os pedestres. Atravessei as faixas negociando com os carros em alta velocidade.

Cheguei ao outro lado, enfim. Mas ML tinha desaparecido. Shackleton e o moleque não tinham voltado.

Não me passou pela cabeça nenhuma explicação racional, apenas que o que ocorrera não poderia ter ocorrido. A visão dos três foi extremamente real, tão real quanto a visão do prédio do governo caracalpaque do outro lado do portão agora à minha frente.

Olhei para o portão fixamente. Para o palácio.

Nada.

Meus amigos evaporaram.

O vácuo me engoliu.

Atravessei a rua de volta. Apesar de não fazer tanto calor, pois já estava anoitecendo, senti uma gosta de suor escorrendo em minha testa, entre as sobrancelhas.

Desapareceram.

Eu queria perguntar aos meus amigos das montanhas porque decidiram estender suas viagens para tão longe do Tajiquistão. Queria perguntar a ML de sua viagem de Khiva até aqui, ouvir novamente seus planos de total liberdade e fascinante imprudência, contar a ela da linda promenade em que passeei à beira do canal hoje, mais cedo.

Tudo ao redor parecia, de repente, repelir minha existência. Por que eu estou tão longe do mundo? Por que o mundo está tão longe de mim?

Entrei no quarto do hotel. Me joguei na cama e comecei a chorar.

Nukus, 23h20, 20/8

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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