Saturday 16 November 2013

Diário de Almaty (VII)

17/4/2012

Medeo e Shimbulak são dois lugares que qualquer turista que ambiciona conhecer bem Almaty precisa visitar. Quantas vezes professoras na KBTU me perguntaram – você já foi ao Medeo? Como não? Quando você vai? E nas aulas de cazaque, nos últimos meses, aprendendo noções básicas da língua com frases se referindo aos dois locais: eu vou ao Shimbulak. Eu estou no Medeo.

As duas professorinhas da universidade novamente foram nossas anfitriãs. Embarcamos no ônibus número seis, tarifa de 70 tenge (cerca de R$ 1), rumo ao coração das montanhas ao sul da cidade.Os ouvidos foram pipocando nas curvas ascendentes. As árvores vão se tornando mais frequentes ao redor, o sol, mais brilhante e menos carrasco, as cores, mais intensas. E então, de repente, o ponto final: um imenso rinque de patinação no gelo em um estádio decorado com estátuas soviéticas. Ao redor, as colinas cobertas de pinheiros. Tudo com aquele ar puro, gelado, que desce num sutil incômodo, a 1.691 metros de altitude.

O complexo impressiona. Construído por Stalin entre 1949 e 1951, o rinque de gelo de 10,5 mil metros quadrados é o mais alto do mundo. Foi palco de vários recordes mundiais de patinação de velocidade. As estátuas dos patinadores, na fachada do estádio em que fica o rinque – corpos flexionados na posição típica dos patinadores de velocidade, suas formas estilizadas, fortes, velozes, típicas soviéticas.

Pena que o lugar estava fechado, às moscas. Ainda assim, tiramos fotos e mais fotos.

Lá perto, fica o ponto inicial dos teleféricos que galgam ainda mais fundo o Tian Shan, subindo, subindo, subindo até onde a neve cobre o chão, a 2,2 mil metros. Aí descemos, no Shimbulak, como se chama a estação de esqui. De lá, é possível pegar outro telefério e ir ainda mais alto, até 3,2 mil metros no perder de vista, quase no Quirguistão. Para depois descer tudo, deslizando pelo branco.

Brincamos na neve subindo uma encosta no Shimbulak. A temperatura estava ótima, uns doze graus, mas tanta neve não derrete fácil. Conversamos, respiramos fundo. Então fomos caminhar. Seguimos por uma estradinha à beira de um vale. Disseram que a estrada segue até o Quirguistão. Do outro lado do vale, as montanhas íngremes, com as árvores de natal, branquinhas. Quando voltamos ao Shimbulak depois da caminhada e pegamos o teleférico de volta ao Medeo já passava das 15h30. Retornamos à poeira de Almaty. Nos despedimos das professoras em frente à KBTU.

A., o jovem professor de inglês com quem simpatizei logo ao chegar à cidade, nos acompanhara no passeio e gostou da minha ideia de ir caminhando pela Tole Bi até o alojamento, uns três quilômetros. Disse que morava para aquelas bandas e perguntou se eu me importava de ter sua companhia. Baixinho, curioso, uma perfeita mescla de turco com chinês – os olhos meio puxados, mais forte do que um daqueles chineses mirrados que todos imaginam. Um inglês bom, como o meu, às vezes errando uma ou outra palavra, às vezes hesitante. Com o sol descendo no horizonte, conversamos muito. Sobre a história do Cazaquistão, desde o tempo de origem das hordas. Teorias da Conspiração envolvendo o 11 de Setembro. Depois pulamos para o meio ambiente. O uso de agrotóxicos, transgênicos e desastres ambientais na Ásia Central, especialmente o do Mar de Aral. A. ficou sério e triste ao falar da questão ambiental. Se disse muito preocupado. Digo a ele, claro, que deveria se mobilizar e procurar um partido para lutar pela causa.

Essa é a deixa para que ele me fale de sua frustração com o governo. “Há muita corrupção disseminada. Temos que pagar propinas para policiais para que eles nos deixem em paz.”Sugiro que o governo se beneficia em manter a sociedade “congelada”, acreditando que esse é o estado natural das coisas – o estado em que as autoridades podem fazer o que bem entender e todos tem que abaixar a cabeça. O estado em que a corrupção cotidiana é um fato natural, tão natural como a eternidade do presidente no poder. Mas, como contraponto, lembro a A. como este país é jovem, a relativa liberdade e o conforto de muitos em Almaty nem em sonho faziam parte da vida das pessoas nos tempos soviéticos por aqui.

- Você acha que você tem um bom presidente? – pergunto a ele, casualmente.
- Talvez... 60% bom.
- 60%? Caramba, é uma boa marca.
- 65%...
- 65%? Talvez 70%? - , provoco.
- É! Isso! 70%!

O presidente “70% bom”, segundo A., é cercado por pessoas com más intenções. “Eles são os corruptos”, diz o professor. “Eles têm que sair.” Instantaneamente, lembro de Lula e do Mensalão.

Ainda falando sobre corrupção institucionalizada e inércia, digo a A. que percebo que há muitas pessoas com ambição aqui, querendo se educar, ir além. Com certeza isso só pode ser bom? “Sim”, responde ele, com um certo ceticismo. “Hoje há muitas escolas ruins. Professores ruins.” Não sei se é verdade. Mas meu amigo é professor e é daqui. Deve saber o que está falando.

Nos despedimos, vou para o alojamento, ele, para a mesquita, para uma breve oração antes de ir para casa. Isso também era complicado de fazer nos tempos soviéticos. Mas a fé vem de antes do comunismo, muito antes.


***

Vou jantar no refeitório do alojamento pensando em como o passado influencia o presente e vai influenciar o futuro deste país.

O refeitório: seis mesas cobertas com plásticos com motivos florais, um balcão com pessoas que não parecem ser muito cazaques – tom de pele mais claro, olhos mais puxados. Logo descubro. O refeitório é de uma família coreana, dessas que Stalin fez o favor de colocar por aqui. A menina no caixa é muito quietinha, magrinha, tímida, não me olha nos olhos. Tem uns 17 anos. Pergunto se ela fala coreano. Um pouco, bem pouco, responde, com uma risadinha. A mãe – uma senhora com passos firmes e braços fortes, corpulenta – traz em seus olhos uma pesada maquiagem, lápis delineador cor cinza, muito exagerado. Sorri e sem muita delicadeza encerra meu papo com a filha, me dando o prato de plov e perguntando se quero algo mais.

Saboreio o prato. Plov, um prato uzbeque, é um arroz frito com óleo de algodão com pedaços de carne de bode ou carneiro, uma bomba na minha barriga. A TV ecoa na parede à direita, mal sintonizada, falando em um russo rápido demais. Não entendo nada. Vejo pessoas feridas em algum acidente. E Nazarbayev em um longo e importante discurso.

Já no apartamento onde vivo com meus colegas –com três quartos e uma pequena cozinha, em um prédio novo, de uns dez andares –, para me ajudar na digestão do pesado jantar e na ausência de chá ou café, tomo uma xícara de água quente. Da sacada da cozinha observo em frente a movimentação dos jovens que também moram aqui, no meu edifício ou em outros vizinhos. Têm uns 17 anos. Vêm e vão caminhando em grupos ou duplas, de cá prá lá, pela rua de asfalto entre o prédio onde estou e uma casa térrea logo em frente. Não há carros – a área é cercada, isolada do trânsito. Há um portão que dá para rua, mas aqui dentro só há pedestres. Na maioria das noites, algum moleque violeiro aparece, senta-se em algum lugar e atrai as gatinhas. Árvores aqui e lá, tudo meio escuro. Me lembra muito um camping, como os campings na minha infância. Sempre tem alguém chegando ou saindo, um lugar fugaz, provisório. Termino a água, vou bater perna pelo complexo.

Por aqui, são no total seis prédios, alguns maiores, mais altos, como o meu. Os alunos, alguns, me comprimentam, e eu retribuo com um sorriso e um olá, mesmo sem termos a mínima ideia da identidade um do outro. Na saudação, os garotos me estendem suas mãos. O aperto de mão é assim, eles vêm com a mão direita e a esquerda e as duas agarram a minha mão direita. Param de andar para fazer isso. Alguns até se curvam um pouco. É um aperto de mão muito reverente. Me sinto um ancião.

Em um banquinho, um violeiro toca algumas músicas em cazaque entremeadas com algumas em inglês que não reconheço. Um pequeno grupo se forma ao redor. E eis que surgem duas meninas vestindo trajes típicos. São de um grupo folclórico da KBTU e chegaram agora do ensaio. Empunham cada uma sua dombra, um instrumento de cordas que, em diferentes variedades, existe em toda a Ásia Central e até na Sibéria. Se parece a um alaúde, mas com apenas duas cordas. Todos se calam, e as meninas começam. As cordas são entoadas rapidamente, como um cavaquinho, mas produzindo um som mágico, que evoca um local distante, alienígena, secreto. Distante, alienígena, secreto para mim. Tresmalho-me.


***

No sol mais carinhoso da manhãzinha fui dar um passeio aqui perto da residência dos estudantes. Ruas nunca antes exploradas. Um dos piores problemas de Almaty nesta época do ano, especialmente para os pedestres como eu,é essa poeira. Não imagino o que seja no auge do verão. A poeira te consome, toma teus pulmões, cobre sua pele e endurece seu cabelo. Você fica todo meio acinzentado. À beira das ruas, em toda a cidade, uma rede de sarjetas profundas foi construída há muitos anos. Me falaram que o objetivo era enchê-las de água, criando pequenos córregos por toda a parte. Além de matar a sede das árvores, isso ajudaria a eliminar esse pó maldito. Mas não vejo água nas sarjetas. Talvez no verão. Agora, são só depósitos de bitucas.

Após uma ou duas esquinas, encontro um via férrea, acompanhada por mato e galpões industriais, seguindo contra o Sol. Há várias pessoas andando nela, sabe-se lá para onde, parecem estar indo para o trabalho, pegando um atalho por aqui. Sigo. Me equilibrando pelos trilhos, me sinto um moleque indo para a escola.

Cinco minutos de caminhada. Do meu lado esquerdo, ultrapasso um galpão com aquele barulho repetitivo de máquinas produzindo alguma coisa. Mais sombra, mais árvores. Por toda parte, na via e no verde, plásticos, plásticos. Garrafas, potes usados e quebrados. Se este país tivesse dengue e chuva como o Brasil, com a água acumulada, seriam berços perfeitos para os mosquitos. Mas, chuva? Não choveu uma gota desde que cheguei.

Depois de muitos desvios, acabo caindo de novo na Tole Bi. Uma sede danada. Num boteco na esquina, lugar bem pequeno e frequentado por um bêbado sujo, vejo peixes defumados pendurados em cima do balcão. “Quer uma porção?”, pergunta o simpático dono do boteco com seu bigode. Agradeço e dispenso. O ambiente cheira a peixe. Minha mente me remete a algum bar a beira-mar, mesmo estando a milhares e milhares de quilômetros da costa mais próxima.

Sem a aventura do peixe seco, não dispenso uma experiência nova. Peço uma kvas. Esta era uma bebida muito popular na União Soviética – grandes barris em carroças eram encontrados nas ruas com facilidade, e o líquido era vendido rápido. Hoje, é difícil achar em Almaty. Me falaram que era fracamente alcoólico. Quando tomo o primeiro gole, concluo que não pode ter álcool – aliás, me convenço que tem gosto de guaraná. Bem doce. Guaraná! Guaraná! Não pode ser alcoólico isso. Bebo dois copos. Me deleito.

Enfim, acaba. Fico querendo mais.

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