13 e 14/04/2012
“Você está aqui no Cazaquistão estudando a oposição no país. Então, gostaria que você contasse para nós: o que você acha da oposição no Cazaquistão?”
Me senti tremendamente tenso. Em mais uma sessão com estudantes na KBTU, vivi esta situação que me colocou contra a parede. Em frente a uns 30 universitários, a professora, uma senhorinha de uns 60 anos que mais parecia estar louca para ir para casa para assistir novela, simplesmente me pede que eu diga aos jovens que o universo perfeito deles tem problemas. Eu, um estrangeiro, que mal botei os pés neste país. Na frente deles, os filhos da elite, os bem criados, os abençoados do Cazaquistão, os que gastam milhares e milhares de tenge (a moeda local) dos pais em uma eleição para representante discente. Mas a riqueza da plateia não é exatamente o problema. Quem sou eu para falar do Cazaquistão para os cazaques? O problema é: quem sou eu para falar desta complexa sociedade, tão distante do mundo da minha São Paulo? Principalmente, quem sou eu para ensiná-los? Não quero ensiná-los, não quero influenciá-los, não quero sequer comentar qualquer coisa relacionada com política. Quero ser um observador imparcial. Mas a professora, que sei lá se tinha alguma ideia da saia justa em que me colocara, não me deu nenhuma escolha.
Me esquivei assim da armadilha por alguns minutos: disse que eu estava lá acima de tudo para ouvir, não para falar. E pedi que eles falassem primeiro. Que falassem sobre a oposição.
Como já havia ocorrido antes, de forma perfeitamente previsível, senti que a maior parte dos jovens na sala ficaram desconfortáveis com o tema. Mas, desta vez, conclui que não era por algum tipo de medo de tocar num assunto aparentemente proibido. Simplesmente os jovens não tinham nada para falar. Zero. Afinal, nasceram num país sem oposição, onde Nazarbayev há anos mantém um formidável controle sobre os atores do jogo político e, quando não mantém, os neutraliza com perícia. Nazarbayev foi o único presidente do Cazaquistão independente, desde o fim da URSS, em 1991. Esta política perfeita cobre como um manto perfeito, sem dobras ou manchas, as cabeças da criançada. Assim, ao responderem ao meu pedido, nenhum jovem adotou o discurso pró-democracia da cartilha ocidental. Ninguém defendeu a pluralidade política. Ninguém lamentou a onipotência do partido do presidente. Pelo contrário. Quem resumiu tudo foi de um garoto de uns 18 anos, cara de moleque de 13, sem sequer barba. “Nós não precisamos de oposição. Somos felizes assim”, proclamou com o peito estufado e olhar de desafio mirando meus olhos.
Todos miraram meus olhos.
Repito as frases dele em voz alta, medindo suas dimensões, cuidadosamente. Depois, com ainda mais cuidado, sem condenar nem elogiar o que o jovem disse, procuro enumerar os problemas que naturalmente surgem quando não há oposição. Ninguém fiscaliza as autoridades, elas fazem o que querem e podem cometer abusos. Se não cometem abusos, certamente cometem erros, pois erros são da natureza humana. E quem vai apontar os erros? Quem vai sugerir ideias alternativas, potencialmente melhores, para resolver os problemas do país? Se alguém está feliz, outros podem estar infelizes, e como ficam os infelizes? Quem dá voz a eles? O debate político permite a evolução, indica mudanças. Sem o debate, vive-se alienado, pensando que as coisas são como são porque têm que ser assim. Mas não têm que ser assim! As coisas podem ser diferentes! Enfim. Falei e repeti que a oposição é útil, pode e deve tornar a política melhor ao colocar em perspectiva o poder.
Mas... mesmo uma coisa que me parece tão óbvia, gerou mais silêncio, olhares se cruzando, rostos sérios. Para eles, eu não devo ser de outro país, devo ser de outro planeta, penso, quase dando uma risada.
Um aluno então rompe o silêncio. Me pergunta se eu não acho que a presença de uma oposição forte não traria instabilidade, guerra, violência. O famoso temor de instabilidade, tão bem usado pelos ditadores mundo afora como argumento-cassetete. Evidentemente, trata-se de uma lógica também muito aprofundada aqui – a de que a pluraridade de ideias e seu choque intelectual logo necessariamente se traduzem em choque físico, em carnificinas, no caos inimaginável. É o argumento mais manjado e paradoxalmente o mais eficiente – o argumento do medo. Digo ao garoto que não. Tento fazê-lo entender, fazê-los entender que essa ideia falaciosa favorece o governante que entretém a aspiração de se manter indefinidamente no poder. O medo é uma arma para manter o status quo. Tudo fica parado.
Quanto desconforto pode caber em uma só sala de aula? Queria muito sair correndo.
Mergulho em milissegundos de melancolia histórica. O Cazaquistão já teve forte, vibrante mobilização, vida política. Nos últimos suspiros do império do czar, em 1905, cazaques fundaram um partido nacionalista, o Alash Orda (“horda de Alash”, em referência ao lendário fundador da nação). Após a Revolução Russa, no caos da guerra civil, o partido formou em janeiro de 1918 o primeiro governo independente da história do Cazaquistão. Em 1919, o território seria conquistado pelos bolcheviques. Logo viriam os expurgos de Stalin, e os membros da Alash Orda, muitos deles teimosamente resistindo a medidas como a coletivização das fazendas, seriam eliminados. Milhares morreram. Nunca mais a política se recuperou por aqui.
Tento encerrar o assunto com os estudantes, com honestidade. Deixo claro que, independentemente do que penso, o país é deles. E isso eles precisam lembrar, precisam lembrar sempre – que o país não é só do presidente e de sua família. Se eles acham que está bem assim, do jeito que está, é prerrogativa deles. Espero que percebam além do que o universo da elite lhes diz todos os dias. Que há muito que está escondido. No final da aula, sinto, ainda que brevemente, que estão fazendo as pazes comigo. Não sei se é verdade.
***
Eldar é um desses promissores jovens de Almaty. Muito bem apessoado, uns 19 anos, me saúda vestindo um blazer negro de fino caimento, que eu diria ser italiano. Estudante de segundo ano de engenharia. Eu havia procurado na KBTU por estudantes que falassem inglês e russo para me ajudar nas entrevistas com políticos, para que os oposicionistas pudesses entender minhas perguntas em inglês e eu, suas respostas em russo. Eldar me procurou. “Tenho carro, isso vai ajudar”. E que carro, um Hyundai Tiburón, uma possante máquina esportiva. Embarquei com ele. A bordo do bólido, me senti na Ocean Drive, em Miami. Pena que logo a máquina parou de roncar, e toda aquela força no motor virou máquina de fumaça atrás de uns Ladas na rua Furmanov. De sonho em Miami, passei a pesadelo na Avenida Santo Amaro, de Sampa.
Falei a Eldar da dificuldade de encontrar contatos de partidos da oposição na internet. Era algo muito simples na minha cabeça – ora, é claro que eles querem ser contatados, para difundir suas ideias! Não será difícil encontrar um porta-voz! Quanta ingenuidade. Quanta dificuldade para encontrar um mero politicozinho. Há aqui partidos de oposição de fachada, que apoiam o governo, e os que de fato tentam se opor. O principal partido de oposição de verdade, legalizado, chama-se OSDP-Azat. Ele foi recentemente formado, uma fusão das duas agremiações que lhe dão nome. Os dois partidos até apresentaram candidatos na última eleição, há cartazes de propaganda eleitoral ainda na cidade, vi um na Tole Bi (e até tirei foto, emocionado). Mas, online, o site oficial está fora do ar. Navegando, achei em outra página três fones de contato – todos fora do ar – e um endereço em Almaty.
Fui até lá com Eldar. Encontro o seguinte: uma grande casa em obras. Nem os pedreiros estavam lá. Fiquei conversando com os tapumes ao redor da obra. Fiquei convencido que os líderes do partido não querem ser encontrados.
Intimidação do governo? É esse o motivo da reclusão eremita do tal partido, o mais destacado da oposição que não é de mentirinha? Me ocorre a paranoia de meu colega Michael - possivelmente há uma filtragem de meus emails em alguma agência secreta especializada em blindar a oposição ou estrangeiros xeretas. Ou não, há apenas uma pura e simples incapacidade dos senhores oposicionistas de lidar com emails, com internet, analfabetismo digital. Muitas teorias, mas, para o meu amigo Eldar e seu carrão, tudo muito simples. “Isso mostra a incompetência deles. Você deve falar na sua dissertação dos telefonemas que você deu, dos emails que mandou, e o que você conseguiu com isso.”
Tremendo tom de desprezo na voz. O pior é que fico louco de vontade de concordar com ele.
Mas encontramos oposicionistas. Depois de não conseguir contato por telefone ou email com o Partido Comunista do Cazaquistão, fomos, em pessoa, até o endereço que eu tinha de sua sede em Almaty. Procuramos e procuramos. Encontramos uma rua cheia de árvores e sombras, uma bênção no sol. Encontramos um corredor escuro, no segundo andar de um prédio velho. Batemos à porta.
Uma senhora com seus 45 ou 50 anos, com o cabelo arrumado com um coque estilo professora de matemática, magrinha, pergunta cordialmente o que queremos, sentada à sua mesa. Explicamos. Se levanta, firmemente aperta nossas mãos. Nos convida a entrar.
A sala tem uns 25 metros quadrados. Logo no lado oposto à porta, a mesa da senhora, nada menos que a secretária do partido que, um dia, foi todo o poder por aqui. A mesa com várias pequenas pilhas de papel e um telefone com teclas, provavelmente da primeira geração deles, quando ainda o mais comum eram aqueles discos que giravam. Atrás da mesa, atrás da cadeira simples de madeira da mulher, mirando-nos nos olhos, na parede, Lênin. Um retrato pendurado na parede. Atrás do retrato, tomando a maior parte da parede, uma imensa, uma gloriosa bandeira da União Soviética. Na parede ao lado, o desenho de outra bandeira soviética, igualmente triunfal, igualmente mais viva do que nunca, com a cabeça de Lênin na parte superior. Ouço o hino na minha cabeça.
Olho para as paredes, para a secretária. Voltei no tempo. Não pode ser sério.
Respiro fundo aquele ar com cheiro de papéis velhos. A mulher fala apenas em russo, e muito, e rápido. Muito atenciosa. Nos passa vários contatos de políticos do partido. Diz que a agremiação foi provisoriamente suspensa por seis meses, até o fim de abril, por ligações com um grupo ilegal de oposição. De acordo com a interpretação do meu tradutor, ela usa palavras imponentes e quase desabando de tanta carga histórica: “esforço”, “trabalhadores”, “burgueses”. Me comoveu. Uma coisa era ser comunista assim nos tempos soviéticos. Outra coisa é numa realidade embasbacada com o capitalismo como a de Almaty. Me comovi com sua paixão abnegada. Imagino a miséria que ganha de salário, se ganhar algo.
Nos despedimos com mais cordialidade. No corredor, me vem o jovem Eldar, desabafa: “que tédio, essa mulher”. A tradução dele foi péssima, ele sabe disso. Péssima porque o inglês dele é péssimo, e infelizmente só descobri na prática, na tradução. E péssima porque o garoto simplesmente estava com a cabeça flutuando, muito, muito longe das paixões perdidas no passado da secretária e sua sala de bandeiras vermelhas. Provavelmente pensando nas meninas em algum shopping center. Penso: com essa idade, uns 20 anos, eu também só pensava nisso. Não dá para condenar. Ele estava despreparado para o cardume de palavras, vorazes como piranhas, tentando almoçar seu cérebro. Saiu do rio. Mas eu estava despreparado também. Não esperava tanta resposta para tão poucas perguntas. O resultado, em suma: marcamos uma entrevista com o líder nacional do partido. Da próxima vez vai ser melhor, digo a Eldar. Melhor para ele e para mim.
Enquanto isso, aquele retrato de Lênin teima em não sair da minha cabeça. Ele mexe com minhas fantasias retrógradas, pós-soviéticas.
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