21 e 22/4
Voltei à região do bazar para dar uma nova olhada na mesquita central, com sua grande cúpula dourada. Ela foi construída em 1999 no lugar de uma antiga mesquita, do final do século XIX. Tão nova e brilhante, com seu mármore branco, me parece ainda um objeto meio estranho em meio à paisagem bagunçada do bazar. Como se ainda estivesse tentando se adaptar ao seu ambiente.
O Islã chegou tarde aos Cazaquistão e sofreu transformações, se misturando às tradições locais dos pastores, dos mongóis. Xamanismo. Animismo.Apenas nos oásis do sul, onde se fixou uma população sedentária, o Islã surgiu com maior firmeza. Aí se construíram madrassas, se construíram mesquitas. Bukhara, no Uzbequistão, foi durante séculos um dos maiores centros do Islã no mundo. Mas nas estepes mais para o norte, entre os cazaques e seu estilo de vida tradicionamente nômade, foram os sufis os grandes responsáveis por espalhar o Islã.
The only real contact that most Kazakhs had with Islam seems to have been through Sufi Holy Men who travelled the steppes (...) Eighteenth-century observers note the complete absence of Mosques and Madrassas in the Steppes, while those in Semirech’e (sudeste do Cazaquistão) and southern Kazakhstan do not seem to have been rebuilt after the Mongol devastation of the cities.
- Martha Olcott, The Kazakhs
O sufismo é o lado espiritual do Islã, um caminho pelo qual o fiel busca uma relação mais direta e íntima com Alá. Na Ásia Central, os sufis absorveram essas tradições locais. Há um sincretismo. O profeta caminha de forma diferente.
Tudo isso precisa ser visto sob a sombra de décadas de comunismo, quando a religião era no melhor dos casos tolerada, quando não reprimida. E em cidades russificadas como Almaty, essa herança de a religião não ser tão forte, tão importante, é mais presente. Ainda que a independência tinha jogado os cidadãos em uma jornada em busca de sua identidade mais profunda, aqui e em toda a ex-União Soviética. Ainda que digam que por aqui, em algum lugar, já há radicais islâmicos para os quais o sufismo tradicional daqui é uma completa heresia.
Entrando na mesquita a vejo de novo quase vazia, desta vez às seis da tarde de uma sexta-feira de forte calor. Os que estão aqui são jovens, em sua maioria. Um grupo jaz alinhado, um rapaz ao lado do outro, à minha frente. À frente deles, o que parece ser o líder do grupo, outro jovem, mais perto do mihrab (o local que indica a direção de Meca na mesquita). Outros chegam e se alinham ao lado dos que já estavam lá. Embora o salão seja bem espaçoso, os que aparecem preferem ficar juntos com os que lá já estão. Duvido que se conheçam. O clima é de tranquilidade, veneração, o silêncio faz bem à cabeça. O Islã é paz. Incrível que tantas guerras sejam travadas em torno dele.
Saio. O sol começa a enfraquecer, em tons dourados. Uma rua lateral está ocupada por vendedores de Corões, de colares usados para contar preces. Meio escondido em um corredor, embaixo de um prédio, encontro um vendedor de chapéus. Encontro um incomum, circular, como uma barraca com teto cônico, mas não muito alto, quase que apenas cobrindo o alto da cabeça.Veludo preto, bordado em motivos azuis e brancos. Compro dois, um para mim, um para um amigo. O vendedor queria 2 mil tenge (cerca de R$ 30) por cada um. Barganho e ele reduz para 1,5 mil, ainda salgado. Cansa negociar toda hora, ainda mais sem saber a língua local. E acho que o vendedor, simpático, merece um lucrozinho.
No bazar, a fascinação das cores. Mas eu encontro poucos homens usando o chapéu cônico que comprei. Não é como no Uzbequistão, onde quase todos os homens usam o chapéu Doppe, preto e com base quadrada. Vejo os cazaques usando o acessório só mais perto da mesquita. As mulheres, por outro lado, usam frequentemente o véu cobrindo o cabelo no mercado. Algumas inclusive cobrem também o pescoço, mas não usam aquele véu cobrindo todo o rosto, muito menos burcas. Essas mulheres com o pescoço escondido provavelmente vêm do interior, mais conservador. Aqui, ficam misturadas com adolescentes de minissaias e suculentos decotes.
Em um canto, ouço em um alto-falante uma música tradicional em cazaque com os acordes de dombra. Em outro canto, de novo, o Michel Teló. Caminho mais. Volto ao parque da catedral daAscenção e suas cores, cercada de russos. Cruzo a Tole Bi, miro as montanhas. Aqui, na Ablai Khan, estou em alguma avenida chique de alguma cidade europeia. Sento num café, peço um café com leite. Passam pela rua ao lado as Mercedes. Ao lado, uma casa de chá estilo francês. Não longe da vista, um restaurante italiano. Todos vestindo jeans, camisetas, tênis, maquiagem, blazers. Uso meu celular para usar a rede wi-fi. Falo com o Brasil pelo Skype.
***
À noite, com meus colegas, mais cerveja. Os cazaques, ao que parece, gostam de cerveja de trigo, esbranquiçada, gelada. Tem uma aqui que amei. Chama-se Urso Branco. Para ser tomada em generosas canecas.
Rimos bem alto quando chegou à mesa a Urso Branco que uma colega tinha pedido. A caneca chega à mesa com um canudo plástico. Cerveja com canudo? Gargalhadas, fotos. Sim, explica a garçonete. Assim, apenas para as mulheres. Por quê? Aqui não é hábito as mulheres tomarem cerveja como os homens, com a brutalidade de tocar com os lábios o vidro frio. O canudo resolve isso e permite sorver o néctar mais devagar. É isso que a garçonete explica. A isso, adiciono – é também mais sexy, não? Mas não creio que as cazaques tomem cerveja pensando que isso as deixa mais atraentes.
Terminada a cerveja, mais um choque cultural. A caminho do alojamento, entro em uma loja. Queria comprar uns doces e um salgadinho para comer no dia seguinte no café da manhã. A loja parece uma padaria – balcões de vidro, produtos nas paredes, atendentes atrás deles. Não há divisões – há os atendentes, os balcões, e os caixas, dois deles, em locais diferentes do salão, no centro do qual há prateleiras com salgadinhos e doces.
A unidade da loja, porém, é uma tola ilusão, logo descubro. Simples assim – quer comprar doces? Pague no caixa da mulher ali, que é dona deste balcão e destes doces. Quer salgados? Pague para a outra dona, no caixa do outro lado, que é a responsável pelos salgados nesta prateleira aqui. Demoro para entender que são pequenos empresários trabalhando no mesmo espaço, mas separadamente. Eu, como estrangeiro e alheio a isso, pego tudo o que quero e vou para um dos caixas. A mulher dos doces me recebe e fala, fala de novo, grita, que eu devo pagar os salgados primeiro no outro balcão. Claro que não entendo nada. Digo só que quero pagar. Ela grita mais alto (para tantos, um estrangeiro que não sabe falar a língua é basicamente uma pessoa surda, então imaginam que elevando a voz vamos entender tudo direitinho). Passam-se cinco minutos de stress. Com muito esforço, finalmente entendo a complicação. Mais uma para lembrar no futuro.
***
Há uma semana atrás parte do nosso grupo da Inglaterra fez uma excursão de um dia a um canyon não muito longe de Almaty. Não fui. Depois, me mostraram empolgados as fotos. Realmente, parecia um cenário de filme de bangue-bangue, algo saído de Utah ou do Arizona. Me falaram do calor, intenso, da caminhada de meia hora pelo desfiladeiro até chegara um rio. Um alívio em um deserto.
Na semana anterior, fomos, o grupo inteiro, ao Medeo e ao Shimbulak. No Shimbulak tudo branco – aquela neve toda, apesar do calorão na cidade.
Hoje, embarquei sem meus colegas de universidade em um ônibus para um excursão de um dia, na qual visitei um bonito lago de montanha e uma cachoeira em reservas florestais a oeste da cidade, rumo à China. Ao redor do lago e da cachoeira, um cenário deslumbrante – lindas montanhas, lindos vales. Pinheiros nas encostas. Nas montanhas mais altas, à distância, ainda neve nos cumes. Ao meu redor, árvores e arbustos com flores e pássaros desconhecidos fazendo algazarra. A exuberância da primavera num cenário de montanhas boreais.
O lago, Yssik (fácil de confundir com o gigante Issyk Kul, no Quirguistão), é verde-esmeralda, alimentado pela água do degelo dos picos, que vem ziguezagueando encosta abaixo. Às margens dele, famílias se reúnem para preguiçosos piqueniques de domingo. Fiquei hipnotizado pelo verde da água e pela pureza da neve à distância, refletindo com intensidade o clarão do sol. De camiseta apenas, fiquei um pouco arrepiado com o frescor, nada mal, depois de dias e dias derretendo em Almaty.
Resumindo – perto da cidade, enfim, há uma incrível variedade de passeios. Deserto, estação de esqui, montanhas nevadas como as das Rochosas canadenses ou dos Alpes europeus. Mas a natureza é apenas uma das atrações. Não longe e lá mesmo em Almaty, belíssimas construções islâmicas, ruinas arqueológicas milenares, sólidas edificações czaristas e soviéticas, lojas que em nada perdem às de Nova York ou Paris.
Mas o melhor são as pessoas, as personalidades deste povo. Na escursão ao Yssik, criei um carinho silencioso pelo motorista – uma cópia xerox do Lee Van Cleef, caladão, bigodão, sempre fumando, com sua calça e camisa sociais surradas, sujo de poeira, emporcalhado de suor, nunca sorrindo. A guia da escursão – uma gordinha com os olhos meio puxados, uns 50 anos, um penteado surreal com coque mal feito e imenso no cabelo negro como a graúna, excesso absurdo de maquiagem sufocando a pele do rosto, incluindo um delineador como a moldura de um quadro ao redor dos olhos azuis. Oratória perfeita; conhecimento enciclopédico da região. Séria, como Lee Van Cleef. Risadas, jamais. Não perguntei seu nome. Algo bem russo, aposto, nada cazaque, ela deve ter sido filha e neta de exemplares leninistas. Svetlana? Yevgênia?
Os passageiros mais curiosos: um sujeito vestindo um uniforme militar completo, de camuflagem verde, mas com a camisa com os botões abertos, mostrando a camiseta cinza por baixo e o barrigão de grávido de nove meses. Na cabeça, um boné militar com a foice e o martelo na testa. E o brasileiro aqui, um ser exótico sem dúvida, sem entender o turbilhão de palavras da prolixa guia, sem perturbar o silêncio de Lee Van Cleef, sem perguntar ao barrigudo de uniforme militar se era mesmo militar ou apenas fã do Exército Vermelho. E admirando este planeta várias órbitas distantes do meu mundinho da zona sul paulistana.
Na volta para Almaty, o lusco-fusco noturno. Em cada vilarejo que encontramos no caminho, pobreza, mas não miséria. Não há favelas, não há vacas esqualidas e crianças e velhos pedindo esmola. Há casinhas simples e moleques curiosos, com rostos redondos, acenando para o ônibus. Vacas em bandos, gordinhas, sendo tocadas por um pasto preguiçoso. Mais para a frente, outro vilarejo, outro rebanho, desta vez de ovelhas. Na estrada, lá se vão um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito outdoors com imagens de Nazarbayev sorrindo, jovial, ou em poses sérias, oficiais.
Na Tole Bi, pego o ônibus 16. O cobrador repete o mantra de todo dia, para todos ouvirem – priama pa Tole Bi (direto pela Tole Bi) – aos potenciais passageiros em cada ponto no caminho. O coletivo não enche. A passageira ao lado, no celular, repete, duas vezes, au?. “O quê?”, em cazaque. Por aqui, todos os cães são meio surdos, pelo jeito.
Dou uma risada solitária. Quem aqui, a não ser eu, poderia entender essa piada?
Me despeço. Volto em setembro, Almaty.
Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Sunday, 24 November 2013
Saturday, 16 November 2013
Diário de Almaty (VII)
17/4/2012
Medeo e Shimbulak são dois lugares que qualquer turista que ambiciona conhecer bem Almaty precisa visitar. Quantas vezes professoras na KBTU me perguntaram – você já foi ao Medeo? Como não? Quando você vai? E nas aulas de cazaque, nos últimos meses, aprendendo noções básicas da língua com frases se referindo aos dois locais: eu vou ao Shimbulak. Eu estou no Medeo.
As duas professorinhas da universidade novamente foram nossas anfitriãs. Embarcamos no ônibus número seis, tarifa de 70 tenge (cerca de R$ 1), rumo ao coração das montanhas ao sul da cidade.Os ouvidos foram pipocando nas curvas ascendentes. As árvores vão se tornando mais frequentes ao redor, o sol, mais brilhante e menos carrasco, as cores, mais intensas. E então, de repente, o ponto final: um imenso rinque de patinação no gelo em um estádio decorado com estátuas soviéticas. Ao redor, as colinas cobertas de pinheiros. Tudo com aquele ar puro, gelado, que desce num sutil incômodo, a 1.691 metros de altitude.
O complexo impressiona. Construído por Stalin entre 1949 e 1951, o rinque de gelo de 10,5 mil metros quadrados é o mais alto do mundo. Foi palco de vários recordes mundiais de patinação de velocidade. As estátuas dos patinadores, na fachada do estádio em que fica o rinque – corpos flexionados na posição típica dos patinadores de velocidade, suas formas estilizadas, fortes, velozes, típicas soviéticas.
Pena que o lugar estava fechado, às moscas. Ainda assim, tiramos fotos e mais fotos.
Lá perto, fica o ponto inicial dos teleféricos que galgam ainda mais fundo o Tian Shan, subindo, subindo, subindo até onde a neve cobre o chão, a 2,2 mil metros. Aí descemos, no Shimbulak, como se chama a estação de esqui. De lá, é possível pegar outro telefério e ir ainda mais alto, até 3,2 mil metros no perder de vista, quase no Quirguistão. Para depois descer tudo, deslizando pelo branco.
Brincamos na neve subindo uma encosta no Shimbulak. A temperatura estava ótima, uns doze graus, mas tanta neve não derrete fácil. Conversamos, respiramos fundo. Então fomos caminhar. Seguimos por uma estradinha à beira de um vale. Disseram que a estrada segue até o Quirguistão. Do outro lado do vale, as montanhas íngremes, com as árvores de natal, branquinhas. Quando voltamos ao Shimbulak depois da caminhada e pegamos o teleférico de volta ao Medeo já passava das 15h30. Retornamos à poeira de Almaty. Nos despedimos das professoras em frente à KBTU.
A., o jovem professor de inglês com quem simpatizei logo ao chegar à cidade, nos acompanhara no passeio e gostou da minha ideia de ir caminhando pela Tole Bi até o alojamento, uns três quilômetros. Disse que morava para aquelas bandas e perguntou se eu me importava de ter sua companhia. Baixinho, curioso, uma perfeita mescla de turco com chinês – os olhos meio puxados, mais forte do que um daqueles chineses mirrados que todos imaginam. Um inglês bom, como o meu, às vezes errando uma ou outra palavra, às vezes hesitante. Com o sol descendo no horizonte, conversamos muito. Sobre a história do Cazaquistão, desde o tempo de origem das hordas. Teorias da Conspiração envolvendo o 11 de Setembro. Depois pulamos para o meio ambiente. O uso de agrotóxicos, transgênicos e desastres ambientais na Ásia Central, especialmente o do Mar de Aral. A. ficou sério e triste ao falar da questão ambiental. Se disse muito preocupado. Digo a ele, claro, que deveria se mobilizar e procurar um partido para lutar pela causa.
Essa é a deixa para que ele me fale de sua frustração com o governo. “Há muita corrupção disseminada. Temos que pagar propinas para policiais para que eles nos deixem em paz.”Sugiro que o governo se beneficia em manter a sociedade “congelada”, acreditando que esse é o estado natural das coisas – o estado em que as autoridades podem fazer o que bem entender e todos tem que abaixar a cabeça. O estado em que a corrupção cotidiana é um fato natural, tão natural como a eternidade do presidente no poder. Mas, como contraponto, lembro a A. como este país é jovem, a relativa liberdade e o conforto de muitos em Almaty nem em sonho faziam parte da vida das pessoas nos tempos soviéticos por aqui.
- Você acha que você tem um bom presidente? – pergunto a ele, casualmente.
- Talvez... 60% bom.
- 60%? Caramba, é uma boa marca.
- 65%...
- 65%? Talvez 70%? - , provoco.
- É! Isso! 70%!
O presidente “70% bom”, segundo A., é cercado por pessoas com más intenções. “Eles são os corruptos”, diz o professor. “Eles têm que sair.” Instantaneamente, lembro de Lula e do Mensalão.
Ainda falando sobre corrupção institucionalizada e inércia, digo a A. que percebo que há muitas pessoas com ambição aqui, querendo se educar, ir além. Com certeza isso só pode ser bom? “Sim”, responde ele, com um certo ceticismo. “Hoje há muitas escolas ruins. Professores ruins.” Não sei se é verdade. Mas meu amigo é professor e é daqui. Deve saber o que está falando.
Nos despedimos, vou para o alojamento, ele, para a mesquita, para uma breve oração antes de ir para casa. Isso também era complicado de fazer nos tempos soviéticos. Mas a fé vem de antes do comunismo, muito antes.
***
Vou jantar no refeitório do alojamento pensando em como o passado influencia o presente e vai influenciar o futuro deste país.
O refeitório: seis mesas cobertas com plásticos com motivos florais, um balcão com pessoas que não parecem ser muito cazaques – tom de pele mais claro, olhos mais puxados. Logo descubro. O refeitório é de uma família coreana, dessas que Stalin fez o favor de colocar por aqui. A menina no caixa é muito quietinha, magrinha, tímida, não me olha nos olhos. Tem uns 17 anos. Pergunto se ela fala coreano. Um pouco, bem pouco, responde, com uma risadinha. A mãe – uma senhora com passos firmes e braços fortes, corpulenta – traz em seus olhos uma pesada maquiagem, lápis delineador cor cinza, muito exagerado. Sorri e sem muita delicadeza encerra meu papo com a filha, me dando o prato de plov e perguntando se quero algo mais.
Saboreio o prato. Plov, um prato uzbeque, é um arroz frito com óleo de algodão com pedaços de carne de bode ou carneiro, uma bomba na minha barriga. A TV ecoa na parede à direita, mal sintonizada, falando em um russo rápido demais. Não entendo nada. Vejo pessoas feridas em algum acidente. E Nazarbayev em um longo e importante discurso.
Já no apartamento onde vivo com meus colegas –com três quartos e uma pequena cozinha, em um prédio novo, de uns dez andares –, para me ajudar na digestão do pesado jantar e na ausência de chá ou café, tomo uma xícara de água quente. Da sacada da cozinha observo em frente a movimentação dos jovens que também moram aqui, no meu edifício ou em outros vizinhos. Têm uns 17 anos. Vêm e vão caminhando em grupos ou duplas, de cá prá lá, pela rua de asfalto entre o prédio onde estou e uma casa térrea logo em frente. Não há carros – a área é cercada, isolada do trânsito. Há um portão que dá para rua, mas aqui dentro só há pedestres. Na maioria das noites, algum moleque violeiro aparece, senta-se em algum lugar e atrai as gatinhas. Árvores aqui e lá, tudo meio escuro. Me lembra muito um camping, como os campings na minha infância. Sempre tem alguém chegando ou saindo, um lugar fugaz, provisório. Termino a água, vou bater perna pelo complexo.
Por aqui, são no total seis prédios, alguns maiores, mais altos, como o meu. Os alunos, alguns, me comprimentam, e eu retribuo com um sorriso e um olá, mesmo sem termos a mínima ideia da identidade um do outro. Na saudação, os garotos me estendem suas mãos. O aperto de mão é assim, eles vêm com a mão direita e a esquerda e as duas agarram a minha mão direita. Param de andar para fazer isso. Alguns até se curvam um pouco. É um aperto de mão muito reverente. Me sinto um ancião.
Em um banquinho, um violeiro toca algumas músicas em cazaque entremeadas com algumas em inglês que não reconheço. Um pequeno grupo se forma ao redor. E eis que surgem duas meninas vestindo trajes típicos. São de um grupo folclórico da KBTU e chegaram agora do ensaio. Empunham cada uma sua dombra, um instrumento de cordas que, em diferentes variedades, existe em toda a Ásia Central e até na Sibéria. Se parece a um alaúde, mas com apenas duas cordas. Todos se calam, e as meninas começam. As cordas são entoadas rapidamente, como um cavaquinho, mas produzindo um som mágico, que evoca um local distante, alienígena, secreto. Distante, alienígena, secreto para mim. Tresmalho-me.
***
No sol mais carinhoso da manhãzinha fui dar um passeio aqui perto da residência dos estudantes. Ruas nunca antes exploradas. Um dos piores problemas de Almaty nesta época do ano, especialmente para os pedestres como eu,é essa poeira. Não imagino o que seja no auge do verão. A poeira te consome, toma teus pulmões, cobre sua pele e endurece seu cabelo. Você fica todo meio acinzentado. À beira das ruas, em toda a cidade, uma rede de sarjetas profundas foi construída há muitos anos. Me falaram que o objetivo era enchê-las de água, criando pequenos córregos por toda a parte. Além de matar a sede das árvores, isso ajudaria a eliminar esse pó maldito. Mas não vejo água nas sarjetas. Talvez no verão. Agora, são só depósitos de bitucas.
Após uma ou duas esquinas, encontro um via férrea, acompanhada por mato e galpões industriais, seguindo contra o Sol. Há várias pessoas andando nela, sabe-se lá para onde, parecem estar indo para o trabalho, pegando um atalho por aqui. Sigo. Me equilibrando pelos trilhos, me sinto um moleque indo para a escola.
Cinco minutos de caminhada. Do meu lado esquerdo, ultrapasso um galpão com aquele barulho repetitivo de máquinas produzindo alguma coisa. Mais sombra, mais árvores. Por toda parte, na via e no verde, plásticos, plásticos. Garrafas, potes usados e quebrados. Se este país tivesse dengue e chuva como o Brasil, com a água acumulada, seriam berços perfeitos para os mosquitos. Mas, chuva? Não choveu uma gota desde que cheguei.
Depois de muitos desvios, acabo caindo de novo na Tole Bi. Uma sede danada. Num boteco na esquina, lugar bem pequeno e frequentado por um bêbado sujo, vejo peixes defumados pendurados em cima do balcão. “Quer uma porção?”, pergunta o simpático dono do boteco com seu bigode. Agradeço e dispenso. O ambiente cheira a peixe. Minha mente me remete a algum bar a beira-mar, mesmo estando a milhares e milhares de quilômetros da costa mais próxima.
Sem a aventura do peixe seco, não dispenso uma experiência nova. Peço uma kvas. Esta era uma bebida muito popular na União Soviética – grandes barris em carroças eram encontrados nas ruas com facilidade, e o líquido era vendido rápido. Hoje, é difícil achar em Almaty. Me falaram que era fracamente alcoólico. Quando tomo o primeiro gole, concluo que não pode ter álcool – aliás, me convenço que tem gosto de guaraná. Bem doce. Guaraná! Guaraná! Não pode ser alcoólico isso. Bebo dois copos. Me deleito.
Enfim, acaba. Fico querendo mais.
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Medeo e Shimbulak são dois lugares que qualquer turista que ambiciona conhecer bem Almaty precisa visitar. Quantas vezes professoras na KBTU me perguntaram – você já foi ao Medeo? Como não? Quando você vai? E nas aulas de cazaque, nos últimos meses, aprendendo noções básicas da língua com frases se referindo aos dois locais: eu vou ao Shimbulak. Eu estou no Medeo.
As duas professorinhas da universidade novamente foram nossas anfitriãs. Embarcamos no ônibus número seis, tarifa de 70 tenge (cerca de R$ 1), rumo ao coração das montanhas ao sul da cidade.Os ouvidos foram pipocando nas curvas ascendentes. As árvores vão se tornando mais frequentes ao redor, o sol, mais brilhante e menos carrasco, as cores, mais intensas. E então, de repente, o ponto final: um imenso rinque de patinação no gelo em um estádio decorado com estátuas soviéticas. Ao redor, as colinas cobertas de pinheiros. Tudo com aquele ar puro, gelado, que desce num sutil incômodo, a 1.691 metros de altitude.
O complexo impressiona. Construído por Stalin entre 1949 e 1951, o rinque de gelo de 10,5 mil metros quadrados é o mais alto do mundo. Foi palco de vários recordes mundiais de patinação de velocidade. As estátuas dos patinadores, na fachada do estádio em que fica o rinque – corpos flexionados na posição típica dos patinadores de velocidade, suas formas estilizadas, fortes, velozes, típicas soviéticas.
Pena que o lugar estava fechado, às moscas. Ainda assim, tiramos fotos e mais fotos.
Lá perto, fica o ponto inicial dos teleféricos que galgam ainda mais fundo o Tian Shan, subindo, subindo, subindo até onde a neve cobre o chão, a 2,2 mil metros. Aí descemos, no Shimbulak, como se chama a estação de esqui. De lá, é possível pegar outro telefério e ir ainda mais alto, até 3,2 mil metros no perder de vista, quase no Quirguistão. Para depois descer tudo, deslizando pelo branco.
Brincamos na neve subindo uma encosta no Shimbulak. A temperatura estava ótima, uns doze graus, mas tanta neve não derrete fácil. Conversamos, respiramos fundo. Então fomos caminhar. Seguimos por uma estradinha à beira de um vale. Disseram que a estrada segue até o Quirguistão. Do outro lado do vale, as montanhas íngremes, com as árvores de natal, branquinhas. Quando voltamos ao Shimbulak depois da caminhada e pegamos o teleférico de volta ao Medeo já passava das 15h30. Retornamos à poeira de Almaty. Nos despedimos das professoras em frente à KBTU.
A., o jovem professor de inglês com quem simpatizei logo ao chegar à cidade, nos acompanhara no passeio e gostou da minha ideia de ir caminhando pela Tole Bi até o alojamento, uns três quilômetros. Disse que morava para aquelas bandas e perguntou se eu me importava de ter sua companhia. Baixinho, curioso, uma perfeita mescla de turco com chinês – os olhos meio puxados, mais forte do que um daqueles chineses mirrados que todos imaginam. Um inglês bom, como o meu, às vezes errando uma ou outra palavra, às vezes hesitante. Com o sol descendo no horizonte, conversamos muito. Sobre a história do Cazaquistão, desde o tempo de origem das hordas. Teorias da Conspiração envolvendo o 11 de Setembro. Depois pulamos para o meio ambiente. O uso de agrotóxicos, transgênicos e desastres ambientais na Ásia Central, especialmente o do Mar de Aral. A. ficou sério e triste ao falar da questão ambiental. Se disse muito preocupado. Digo a ele, claro, que deveria se mobilizar e procurar um partido para lutar pela causa.
Essa é a deixa para que ele me fale de sua frustração com o governo. “Há muita corrupção disseminada. Temos que pagar propinas para policiais para que eles nos deixem em paz.”Sugiro que o governo se beneficia em manter a sociedade “congelada”, acreditando que esse é o estado natural das coisas – o estado em que as autoridades podem fazer o que bem entender e todos tem que abaixar a cabeça. O estado em que a corrupção cotidiana é um fato natural, tão natural como a eternidade do presidente no poder. Mas, como contraponto, lembro a A. como este país é jovem, a relativa liberdade e o conforto de muitos em Almaty nem em sonho faziam parte da vida das pessoas nos tempos soviéticos por aqui.
- Você acha que você tem um bom presidente? – pergunto a ele, casualmente.
- Talvez... 60% bom.
- 60%? Caramba, é uma boa marca.
- 65%...
- 65%? Talvez 70%? - , provoco.
- É! Isso! 70%!
O presidente “70% bom”, segundo A., é cercado por pessoas com más intenções. “Eles são os corruptos”, diz o professor. “Eles têm que sair.” Instantaneamente, lembro de Lula e do Mensalão.
Ainda falando sobre corrupção institucionalizada e inércia, digo a A. que percebo que há muitas pessoas com ambição aqui, querendo se educar, ir além. Com certeza isso só pode ser bom? “Sim”, responde ele, com um certo ceticismo. “Hoje há muitas escolas ruins. Professores ruins.” Não sei se é verdade. Mas meu amigo é professor e é daqui. Deve saber o que está falando.
Nos despedimos, vou para o alojamento, ele, para a mesquita, para uma breve oração antes de ir para casa. Isso também era complicado de fazer nos tempos soviéticos. Mas a fé vem de antes do comunismo, muito antes.
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Vou jantar no refeitório do alojamento pensando em como o passado influencia o presente e vai influenciar o futuro deste país.
O refeitório: seis mesas cobertas com plásticos com motivos florais, um balcão com pessoas que não parecem ser muito cazaques – tom de pele mais claro, olhos mais puxados. Logo descubro. O refeitório é de uma família coreana, dessas que Stalin fez o favor de colocar por aqui. A menina no caixa é muito quietinha, magrinha, tímida, não me olha nos olhos. Tem uns 17 anos. Pergunto se ela fala coreano. Um pouco, bem pouco, responde, com uma risadinha. A mãe – uma senhora com passos firmes e braços fortes, corpulenta – traz em seus olhos uma pesada maquiagem, lápis delineador cor cinza, muito exagerado. Sorri e sem muita delicadeza encerra meu papo com a filha, me dando o prato de plov e perguntando se quero algo mais.
Saboreio o prato. Plov, um prato uzbeque, é um arroz frito com óleo de algodão com pedaços de carne de bode ou carneiro, uma bomba na minha barriga. A TV ecoa na parede à direita, mal sintonizada, falando em um russo rápido demais. Não entendo nada. Vejo pessoas feridas em algum acidente. E Nazarbayev em um longo e importante discurso.
Já no apartamento onde vivo com meus colegas –com três quartos e uma pequena cozinha, em um prédio novo, de uns dez andares –, para me ajudar na digestão do pesado jantar e na ausência de chá ou café, tomo uma xícara de água quente. Da sacada da cozinha observo em frente a movimentação dos jovens que também moram aqui, no meu edifício ou em outros vizinhos. Têm uns 17 anos. Vêm e vão caminhando em grupos ou duplas, de cá prá lá, pela rua de asfalto entre o prédio onde estou e uma casa térrea logo em frente. Não há carros – a área é cercada, isolada do trânsito. Há um portão que dá para rua, mas aqui dentro só há pedestres. Na maioria das noites, algum moleque violeiro aparece, senta-se em algum lugar e atrai as gatinhas. Árvores aqui e lá, tudo meio escuro. Me lembra muito um camping, como os campings na minha infância. Sempre tem alguém chegando ou saindo, um lugar fugaz, provisório. Termino a água, vou bater perna pelo complexo.
Por aqui, são no total seis prédios, alguns maiores, mais altos, como o meu. Os alunos, alguns, me comprimentam, e eu retribuo com um sorriso e um olá, mesmo sem termos a mínima ideia da identidade um do outro. Na saudação, os garotos me estendem suas mãos. O aperto de mão é assim, eles vêm com a mão direita e a esquerda e as duas agarram a minha mão direita. Param de andar para fazer isso. Alguns até se curvam um pouco. É um aperto de mão muito reverente. Me sinto um ancião.
Em um banquinho, um violeiro toca algumas músicas em cazaque entremeadas com algumas em inglês que não reconheço. Um pequeno grupo se forma ao redor. E eis que surgem duas meninas vestindo trajes típicos. São de um grupo folclórico da KBTU e chegaram agora do ensaio. Empunham cada uma sua dombra, um instrumento de cordas que, em diferentes variedades, existe em toda a Ásia Central e até na Sibéria. Se parece a um alaúde, mas com apenas duas cordas. Todos se calam, e as meninas começam. As cordas são entoadas rapidamente, como um cavaquinho, mas produzindo um som mágico, que evoca um local distante, alienígena, secreto. Distante, alienígena, secreto para mim. Tresmalho-me.
***
No sol mais carinhoso da manhãzinha fui dar um passeio aqui perto da residência dos estudantes. Ruas nunca antes exploradas. Um dos piores problemas de Almaty nesta época do ano, especialmente para os pedestres como eu,é essa poeira. Não imagino o que seja no auge do verão. A poeira te consome, toma teus pulmões, cobre sua pele e endurece seu cabelo. Você fica todo meio acinzentado. À beira das ruas, em toda a cidade, uma rede de sarjetas profundas foi construída há muitos anos. Me falaram que o objetivo era enchê-las de água, criando pequenos córregos por toda a parte. Além de matar a sede das árvores, isso ajudaria a eliminar esse pó maldito. Mas não vejo água nas sarjetas. Talvez no verão. Agora, são só depósitos de bitucas.
Após uma ou duas esquinas, encontro um via férrea, acompanhada por mato e galpões industriais, seguindo contra o Sol. Há várias pessoas andando nela, sabe-se lá para onde, parecem estar indo para o trabalho, pegando um atalho por aqui. Sigo. Me equilibrando pelos trilhos, me sinto um moleque indo para a escola.
Cinco minutos de caminhada. Do meu lado esquerdo, ultrapasso um galpão com aquele barulho repetitivo de máquinas produzindo alguma coisa. Mais sombra, mais árvores. Por toda parte, na via e no verde, plásticos, plásticos. Garrafas, potes usados e quebrados. Se este país tivesse dengue e chuva como o Brasil, com a água acumulada, seriam berços perfeitos para os mosquitos. Mas, chuva? Não choveu uma gota desde que cheguei.
Depois de muitos desvios, acabo caindo de novo na Tole Bi. Uma sede danada. Num boteco na esquina, lugar bem pequeno e frequentado por um bêbado sujo, vejo peixes defumados pendurados em cima do balcão. “Quer uma porção?”, pergunta o simpático dono do boteco com seu bigode. Agradeço e dispenso. O ambiente cheira a peixe. Minha mente me remete a algum bar a beira-mar, mesmo estando a milhares e milhares de quilômetros da costa mais próxima.
Sem a aventura do peixe seco, não dispenso uma experiência nova. Peço uma kvas. Esta era uma bebida muito popular na União Soviética – grandes barris em carroças eram encontrados nas ruas com facilidade, e o líquido era vendido rápido. Hoje, é difícil achar em Almaty. Me falaram que era fracamente alcoólico. Quando tomo o primeiro gole, concluo que não pode ter álcool – aliás, me convenço que tem gosto de guaraná. Bem doce. Guaraná! Guaraná! Não pode ser alcoólico isso. Bebo dois copos. Me deleito.
Enfim, acaba. Fico querendo mais.
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Sunday, 3 November 2013
Diário de Almaty (VI)
13 e 14/04/2012
“Você está aqui no Cazaquistão estudando a oposição no país. Então, gostaria que você contasse para nós: o que você acha da oposição no Cazaquistão?”
Me senti tremendamente tenso. Em mais uma sessão com estudantes na KBTU, vivi esta situação que me colocou contra a parede. Em frente a uns 30 universitários, a professora, uma senhorinha de uns 60 anos que mais parecia estar louca para ir para casa para assistir novela, simplesmente me pede que eu diga aos jovens que o universo perfeito deles tem problemas. Eu, um estrangeiro, que mal botei os pés neste país. Na frente deles, os filhos da elite, os bem criados, os abençoados do Cazaquistão, os que gastam milhares e milhares de tenge (a moeda local) dos pais em uma eleição para representante discente. Mas a riqueza da plateia não é exatamente o problema. Quem sou eu para falar do Cazaquistão para os cazaques? O problema é: quem sou eu para falar desta complexa sociedade, tão distante do mundo da minha São Paulo? Principalmente, quem sou eu para ensiná-los? Não quero ensiná-los, não quero influenciá-los, não quero sequer comentar qualquer coisa relacionada com política. Quero ser um observador imparcial. Mas a professora, que sei lá se tinha alguma ideia da saia justa em que me colocara, não me deu nenhuma escolha.
Me esquivei assim da armadilha por alguns minutos: disse que eu estava lá acima de tudo para ouvir, não para falar. E pedi que eles falassem primeiro. Que falassem sobre a oposição.
Como já havia ocorrido antes, de forma perfeitamente previsível, senti que a maior parte dos jovens na sala ficaram desconfortáveis com o tema. Mas, desta vez, conclui que não era por algum tipo de medo de tocar num assunto aparentemente proibido. Simplesmente os jovens não tinham nada para falar. Zero. Afinal, nasceram num país sem oposição, onde Nazarbayev há anos mantém um formidável controle sobre os atores do jogo político e, quando não mantém, os neutraliza com perícia. Nazarbayev foi o único presidente do Cazaquistão independente, desde o fim da URSS, em 1991. Esta política perfeita cobre como um manto perfeito, sem dobras ou manchas, as cabeças da criançada. Assim, ao responderem ao meu pedido, nenhum jovem adotou o discurso pró-democracia da cartilha ocidental. Ninguém defendeu a pluralidade política. Ninguém lamentou a onipotência do partido do presidente. Pelo contrário. Quem resumiu tudo foi de um garoto de uns 18 anos, cara de moleque de 13, sem sequer barba. “Nós não precisamos de oposição. Somos felizes assim”, proclamou com o peito estufado e olhar de desafio mirando meus olhos.
Todos miraram meus olhos.
Repito as frases dele em voz alta, medindo suas dimensões, cuidadosamente. Depois, com ainda mais cuidado, sem condenar nem elogiar o que o jovem disse, procuro enumerar os problemas que naturalmente surgem quando não há oposição. Ninguém fiscaliza as autoridades, elas fazem o que querem e podem cometer abusos. Se não cometem abusos, certamente cometem erros, pois erros são da natureza humana. E quem vai apontar os erros? Quem vai sugerir ideias alternativas, potencialmente melhores, para resolver os problemas do país? Se alguém está feliz, outros podem estar infelizes, e como ficam os infelizes? Quem dá voz a eles? O debate político permite a evolução, indica mudanças. Sem o debate, vive-se alienado, pensando que as coisas são como são porque têm que ser assim. Mas não têm que ser assim! As coisas podem ser diferentes! Enfim. Falei e repeti que a oposição é útil, pode e deve tornar a política melhor ao colocar em perspectiva o poder.
Mas... mesmo uma coisa que me parece tão óbvia, gerou mais silêncio, olhares se cruzando, rostos sérios. Para eles, eu não devo ser de outro país, devo ser de outro planeta, penso, quase dando uma risada.
Um aluno então rompe o silêncio. Me pergunta se eu não acho que a presença de uma oposição forte não traria instabilidade, guerra, violência. O famoso temor de instabilidade, tão bem usado pelos ditadores mundo afora como argumento-cassetete. Evidentemente, trata-se de uma lógica também muito aprofundada aqui – a de que a pluraridade de ideias e seu choque intelectual logo necessariamente se traduzem em choque físico, em carnificinas, no caos inimaginável. É o argumento mais manjado e paradoxalmente o mais eficiente – o argumento do medo. Digo ao garoto que não. Tento fazê-lo entender, fazê-los entender que essa ideia falaciosa favorece o governante que entretém a aspiração de se manter indefinidamente no poder. O medo é uma arma para manter o status quo. Tudo fica parado.
Quanto desconforto pode caber em uma só sala de aula? Queria muito sair correndo.
Mergulho em milissegundos de melancolia histórica. O Cazaquistão já teve forte, vibrante mobilização, vida política. Nos últimos suspiros do império do czar, em 1905, cazaques fundaram um partido nacionalista, o Alash Orda (“horda de Alash”, em referência ao lendário fundador da nação). Após a Revolução Russa, no caos da guerra civil, o partido formou em janeiro de 1918 o primeiro governo independente da história do Cazaquistão. Em 1919, o território seria conquistado pelos bolcheviques. Logo viriam os expurgos de Stalin, e os membros da Alash Orda, muitos deles teimosamente resistindo a medidas como a coletivização das fazendas, seriam eliminados. Milhares morreram. Nunca mais a política se recuperou por aqui.
Tento encerrar o assunto com os estudantes, com honestidade. Deixo claro que, independentemente do que penso, o país é deles. E isso eles precisam lembrar, precisam lembrar sempre – que o país não é só do presidente e de sua família. Se eles acham que está bem assim, do jeito que está, é prerrogativa deles. Espero que percebam além do que o universo da elite lhes diz todos os dias. Que há muito que está escondido. No final da aula, sinto, ainda que brevemente, que estão fazendo as pazes comigo. Não sei se é verdade.
***
Eldar é um desses promissores jovens de Almaty. Muito bem apessoado, uns 19 anos, me saúda vestindo um blazer negro de fino caimento, que eu diria ser italiano. Estudante de segundo ano de engenharia. Eu havia procurado na KBTU por estudantes que falassem inglês e russo para me ajudar nas entrevistas com políticos, para que os oposicionistas pudesses entender minhas perguntas em inglês e eu, suas respostas em russo. Eldar me procurou. “Tenho carro, isso vai ajudar”. E que carro, um Hyundai Tiburón, uma possante máquina esportiva. Embarquei com ele. A bordo do bólido, me senti na Ocean Drive, em Miami. Pena que logo a máquina parou de roncar, e toda aquela força no motor virou máquina de fumaça atrás de uns Ladas na rua Furmanov. De sonho em Miami, passei a pesadelo na Avenida Santo Amaro, de Sampa.
Falei a Eldar da dificuldade de encontrar contatos de partidos da oposição na internet. Era algo muito simples na minha cabeça – ora, é claro que eles querem ser contatados, para difundir suas ideias! Não será difícil encontrar um porta-voz! Quanta ingenuidade. Quanta dificuldade para encontrar um mero politicozinho. Há aqui partidos de oposição de fachada, que apoiam o governo, e os que de fato tentam se opor. O principal partido de oposição de verdade, legalizado, chama-se OSDP-Azat. Ele foi recentemente formado, uma fusão das duas agremiações que lhe dão nome. Os dois partidos até apresentaram candidatos na última eleição, há cartazes de propaganda eleitoral ainda na cidade, vi um na Tole Bi (e até tirei foto, emocionado). Mas, online, o site oficial está fora do ar. Navegando, achei em outra página três fones de contato – todos fora do ar – e um endereço em Almaty.
Fui até lá com Eldar. Encontro o seguinte: uma grande casa em obras. Nem os pedreiros estavam lá. Fiquei conversando com os tapumes ao redor da obra. Fiquei convencido que os líderes do partido não querem ser encontrados.
Intimidação do governo? É esse o motivo da reclusão eremita do tal partido, o mais destacado da oposição que não é de mentirinha? Me ocorre a paranoia de meu colega Michael - possivelmente há uma filtragem de meus emails em alguma agência secreta especializada em blindar a oposição ou estrangeiros xeretas. Ou não, há apenas uma pura e simples incapacidade dos senhores oposicionistas de lidar com emails, com internet, analfabetismo digital. Muitas teorias, mas, para o meu amigo Eldar e seu carrão, tudo muito simples. “Isso mostra a incompetência deles. Você deve falar na sua dissertação dos telefonemas que você deu, dos emails que mandou, e o que você conseguiu com isso.”
Tremendo tom de desprezo na voz. O pior é que fico louco de vontade de concordar com ele.
Mas encontramos oposicionistas. Depois de não conseguir contato por telefone ou email com o Partido Comunista do Cazaquistão, fomos, em pessoa, até o endereço que eu tinha de sua sede em Almaty. Procuramos e procuramos. Encontramos uma rua cheia de árvores e sombras, uma bênção no sol. Encontramos um corredor escuro, no segundo andar de um prédio velho. Batemos à porta.
Uma senhora com seus 45 ou 50 anos, com o cabelo arrumado com um coque estilo professora de matemática, magrinha, pergunta cordialmente o que queremos, sentada à sua mesa. Explicamos. Se levanta, firmemente aperta nossas mãos. Nos convida a entrar.
A sala tem uns 25 metros quadrados. Logo no lado oposto à porta, a mesa da senhora, nada menos que a secretária do partido que, um dia, foi todo o poder por aqui. A mesa com várias pequenas pilhas de papel e um telefone com teclas, provavelmente da primeira geração deles, quando ainda o mais comum eram aqueles discos que giravam. Atrás da mesa, atrás da cadeira simples de madeira da mulher, mirando-nos nos olhos, na parede, Lênin. Um retrato pendurado na parede. Atrás do retrato, tomando a maior parte da parede, uma imensa, uma gloriosa bandeira da União Soviética. Na parede ao lado, o desenho de outra bandeira soviética, igualmente triunfal, igualmente mais viva do que nunca, com a cabeça de Lênin na parte superior. Ouço o hino na minha cabeça.
Olho para as paredes, para a secretária. Voltei no tempo. Não pode ser sério.
Respiro fundo aquele ar com cheiro de papéis velhos. A mulher fala apenas em russo, e muito, e rápido. Muito atenciosa. Nos passa vários contatos de políticos do partido. Diz que a agremiação foi provisoriamente suspensa por seis meses, até o fim de abril, por ligações com um grupo ilegal de oposição. De acordo com a interpretação do meu tradutor, ela usa palavras imponentes e quase desabando de tanta carga histórica: “esforço”, “trabalhadores”, “burgueses”. Me comoveu. Uma coisa era ser comunista assim nos tempos soviéticos. Outra coisa é numa realidade embasbacada com o capitalismo como a de Almaty. Me comovi com sua paixão abnegada. Imagino a miséria que ganha de salário, se ganhar algo.
Nos despedimos com mais cordialidade. No corredor, me vem o jovem Eldar, desabafa: “que tédio, essa mulher”. A tradução dele foi péssima, ele sabe disso. Péssima porque o inglês dele é péssimo, e infelizmente só descobri na prática, na tradução. E péssima porque o garoto simplesmente estava com a cabeça flutuando, muito, muito longe das paixões perdidas no passado da secretária e sua sala de bandeiras vermelhas. Provavelmente pensando nas meninas em algum shopping center. Penso: com essa idade, uns 20 anos, eu também só pensava nisso. Não dá para condenar. Ele estava despreparado para o cardume de palavras, vorazes como piranhas, tentando almoçar seu cérebro. Saiu do rio. Mas eu estava despreparado também. Não esperava tanta resposta para tão poucas perguntas. O resultado, em suma: marcamos uma entrevista com o líder nacional do partido. Da próxima vez vai ser melhor, digo a Eldar. Melhor para ele e para mim.
Enquanto isso, aquele retrato de Lênin teima em não sair da minha cabeça. Ele mexe com minhas fantasias retrógradas, pós-soviéticas.
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“Você está aqui no Cazaquistão estudando a oposição no país. Então, gostaria que você contasse para nós: o que você acha da oposição no Cazaquistão?”
Me senti tremendamente tenso. Em mais uma sessão com estudantes na KBTU, vivi esta situação que me colocou contra a parede. Em frente a uns 30 universitários, a professora, uma senhorinha de uns 60 anos que mais parecia estar louca para ir para casa para assistir novela, simplesmente me pede que eu diga aos jovens que o universo perfeito deles tem problemas. Eu, um estrangeiro, que mal botei os pés neste país. Na frente deles, os filhos da elite, os bem criados, os abençoados do Cazaquistão, os que gastam milhares e milhares de tenge (a moeda local) dos pais em uma eleição para representante discente. Mas a riqueza da plateia não é exatamente o problema. Quem sou eu para falar do Cazaquistão para os cazaques? O problema é: quem sou eu para falar desta complexa sociedade, tão distante do mundo da minha São Paulo? Principalmente, quem sou eu para ensiná-los? Não quero ensiná-los, não quero influenciá-los, não quero sequer comentar qualquer coisa relacionada com política. Quero ser um observador imparcial. Mas a professora, que sei lá se tinha alguma ideia da saia justa em que me colocara, não me deu nenhuma escolha.
Me esquivei assim da armadilha por alguns minutos: disse que eu estava lá acima de tudo para ouvir, não para falar. E pedi que eles falassem primeiro. Que falassem sobre a oposição.
Como já havia ocorrido antes, de forma perfeitamente previsível, senti que a maior parte dos jovens na sala ficaram desconfortáveis com o tema. Mas, desta vez, conclui que não era por algum tipo de medo de tocar num assunto aparentemente proibido. Simplesmente os jovens não tinham nada para falar. Zero. Afinal, nasceram num país sem oposição, onde Nazarbayev há anos mantém um formidável controle sobre os atores do jogo político e, quando não mantém, os neutraliza com perícia. Nazarbayev foi o único presidente do Cazaquistão independente, desde o fim da URSS, em 1991. Esta política perfeita cobre como um manto perfeito, sem dobras ou manchas, as cabeças da criançada. Assim, ao responderem ao meu pedido, nenhum jovem adotou o discurso pró-democracia da cartilha ocidental. Ninguém defendeu a pluralidade política. Ninguém lamentou a onipotência do partido do presidente. Pelo contrário. Quem resumiu tudo foi de um garoto de uns 18 anos, cara de moleque de 13, sem sequer barba. “Nós não precisamos de oposição. Somos felizes assim”, proclamou com o peito estufado e olhar de desafio mirando meus olhos.
Todos miraram meus olhos.
Repito as frases dele em voz alta, medindo suas dimensões, cuidadosamente. Depois, com ainda mais cuidado, sem condenar nem elogiar o que o jovem disse, procuro enumerar os problemas que naturalmente surgem quando não há oposição. Ninguém fiscaliza as autoridades, elas fazem o que querem e podem cometer abusos. Se não cometem abusos, certamente cometem erros, pois erros são da natureza humana. E quem vai apontar os erros? Quem vai sugerir ideias alternativas, potencialmente melhores, para resolver os problemas do país? Se alguém está feliz, outros podem estar infelizes, e como ficam os infelizes? Quem dá voz a eles? O debate político permite a evolução, indica mudanças. Sem o debate, vive-se alienado, pensando que as coisas são como são porque têm que ser assim. Mas não têm que ser assim! As coisas podem ser diferentes! Enfim. Falei e repeti que a oposição é útil, pode e deve tornar a política melhor ao colocar em perspectiva o poder.
Mas... mesmo uma coisa que me parece tão óbvia, gerou mais silêncio, olhares se cruzando, rostos sérios. Para eles, eu não devo ser de outro país, devo ser de outro planeta, penso, quase dando uma risada.
Um aluno então rompe o silêncio. Me pergunta se eu não acho que a presença de uma oposição forte não traria instabilidade, guerra, violência. O famoso temor de instabilidade, tão bem usado pelos ditadores mundo afora como argumento-cassetete. Evidentemente, trata-se de uma lógica também muito aprofundada aqui – a de que a pluraridade de ideias e seu choque intelectual logo necessariamente se traduzem em choque físico, em carnificinas, no caos inimaginável. É o argumento mais manjado e paradoxalmente o mais eficiente – o argumento do medo. Digo ao garoto que não. Tento fazê-lo entender, fazê-los entender que essa ideia falaciosa favorece o governante que entretém a aspiração de se manter indefinidamente no poder. O medo é uma arma para manter o status quo. Tudo fica parado.
Quanto desconforto pode caber em uma só sala de aula? Queria muito sair correndo.
Mergulho em milissegundos de melancolia histórica. O Cazaquistão já teve forte, vibrante mobilização, vida política. Nos últimos suspiros do império do czar, em 1905, cazaques fundaram um partido nacionalista, o Alash Orda (“horda de Alash”, em referência ao lendário fundador da nação). Após a Revolução Russa, no caos da guerra civil, o partido formou em janeiro de 1918 o primeiro governo independente da história do Cazaquistão. Em 1919, o território seria conquistado pelos bolcheviques. Logo viriam os expurgos de Stalin, e os membros da Alash Orda, muitos deles teimosamente resistindo a medidas como a coletivização das fazendas, seriam eliminados. Milhares morreram. Nunca mais a política se recuperou por aqui.
Tento encerrar o assunto com os estudantes, com honestidade. Deixo claro que, independentemente do que penso, o país é deles. E isso eles precisam lembrar, precisam lembrar sempre – que o país não é só do presidente e de sua família. Se eles acham que está bem assim, do jeito que está, é prerrogativa deles. Espero que percebam além do que o universo da elite lhes diz todos os dias. Que há muito que está escondido. No final da aula, sinto, ainda que brevemente, que estão fazendo as pazes comigo. Não sei se é verdade.
***
Eldar é um desses promissores jovens de Almaty. Muito bem apessoado, uns 19 anos, me saúda vestindo um blazer negro de fino caimento, que eu diria ser italiano. Estudante de segundo ano de engenharia. Eu havia procurado na KBTU por estudantes que falassem inglês e russo para me ajudar nas entrevistas com políticos, para que os oposicionistas pudesses entender minhas perguntas em inglês e eu, suas respostas em russo. Eldar me procurou. “Tenho carro, isso vai ajudar”. E que carro, um Hyundai Tiburón, uma possante máquina esportiva. Embarquei com ele. A bordo do bólido, me senti na Ocean Drive, em Miami. Pena que logo a máquina parou de roncar, e toda aquela força no motor virou máquina de fumaça atrás de uns Ladas na rua Furmanov. De sonho em Miami, passei a pesadelo na Avenida Santo Amaro, de Sampa.
Falei a Eldar da dificuldade de encontrar contatos de partidos da oposição na internet. Era algo muito simples na minha cabeça – ora, é claro que eles querem ser contatados, para difundir suas ideias! Não será difícil encontrar um porta-voz! Quanta ingenuidade. Quanta dificuldade para encontrar um mero politicozinho. Há aqui partidos de oposição de fachada, que apoiam o governo, e os que de fato tentam se opor. O principal partido de oposição de verdade, legalizado, chama-se OSDP-Azat. Ele foi recentemente formado, uma fusão das duas agremiações que lhe dão nome. Os dois partidos até apresentaram candidatos na última eleição, há cartazes de propaganda eleitoral ainda na cidade, vi um na Tole Bi (e até tirei foto, emocionado). Mas, online, o site oficial está fora do ar. Navegando, achei em outra página três fones de contato – todos fora do ar – e um endereço em Almaty.
Fui até lá com Eldar. Encontro o seguinte: uma grande casa em obras. Nem os pedreiros estavam lá. Fiquei conversando com os tapumes ao redor da obra. Fiquei convencido que os líderes do partido não querem ser encontrados.
Intimidação do governo? É esse o motivo da reclusão eremita do tal partido, o mais destacado da oposição que não é de mentirinha? Me ocorre a paranoia de meu colega Michael - possivelmente há uma filtragem de meus emails em alguma agência secreta especializada em blindar a oposição ou estrangeiros xeretas. Ou não, há apenas uma pura e simples incapacidade dos senhores oposicionistas de lidar com emails, com internet, analfabetismo digital. Muitas teorias, mas, para o meu amigo Eldar e seu carrão, tudo muito simples. “Isso mostra a incompetência deles. Você deve falar na sua dissertação dos telefonemas que você deu, dos emails que mandou, e o que você conseguiu com isso.”
Tremendo tom de desprezo na voz. O pior é que fico louco de vontade de concordar com ele.
Mas encontramos oposicionistas. Depois de não conseguir contato por telefone ou email com o Partido Comunista do Cazaquistão, fomos, em pessoa, até o endereço que eu tinha de sua sede em Almaty. Procuramos e procuramos. Encontramos uma rua cheia de árvores e sombras, uma bênção no sol. Encontramos um corredor escuro, no segundo andar de um prédio velho. Batemos à porta.
Uma senhora com seus 45 ou 50 anos, com o cabelo arrumado com um coque estilo professora de matemática, magrinha, pergunta cordialmente o que queremos, sentada à sua mesa. Explicamos. Se levanta, firmemente aperta nossas mãos. Nos convida a entrar.
A sala tem uns 25 metros quadrados. Logo no lado oposto à porta, a mesa da senhora, nada menos que a secretária do partido que, um dia, foi todo o poder por aqui. A mesa com várias pequenas pilhas de papel e um telefone com teclas, provavelmente da primeira geração deles, quando ainda o mais comum eram aqueles discos que giravam. Atrás da mesa, atrás da cadeira simples de madeira da mulher, mirando-nos nos olhos, na parede, Lênin. Um retrato pendurado na parede. Atrás do retrato, tomando a maior parte da parede, uma imensa, uma gloriosa bandeira da União Soviética. Na parede ao lado, o desenho de outra bandeira soviética, igualmente triunfal, igualmente mais viva do que nunca, com a cabeça de Lênin na parte superior. Ouço o hino na minha cabeça.
Olho para as paredes, para a secretária. Voltei no tempo. Não pode ser sério.
Respiro fundo aquele ar com cheiro de papéis velhos. A mulher fala apenas em russo, e muito, e rápido. Muito atenciosa. Nos passa vários contatos de políticos do partido. Diz que a agremiação foi provisoriamente suspensa por seis meses, até o fim de abril, por ligações com um grupo ilegal de oposição. De acordo com a interpretação do meu tradutor, ela usa palavras imponentes e quase desabando de tanta carga histórica: “esforço”, “trabalhadores”, “burgueses”. Me comoveu. Uma coisa era ser comunista assim nos tempos soviéticos. Outra coisa é numa realidade embasbacada com o capitalismo como a de Almaty. Me comovi com sua paixão abnegada. Imagino a miséria que ganha de salário, se ganhar algo.
Nos despedimos com mais cordialidade. No corredor, me vem o jovem Eldar, desabafa: “que tédio, essa mulher”. A tradução dele foi péssima, ele sabe disso. Péssima porque o inglês dele é péssimo, e infelizmente só descobri na prática, na tradução. E péssima porque o garoto simplesmente estava com a cabeça flutuando, muito, muito longe das paixões perdidas no passado da secretária e sua sala de bandeiras vermelhas. Provavelmente pensando nas meninas em algum shopping center. Penso: com essa idade, uns 20 anos, eu também só pensava nisso. Não dá para condenar. Ele estava despreparado para o cardume de palavras, vorazes como piranhas, tentando almoçar seu cérebro. Saiu do rio. Mas eu estava despreparado também. Não esperava tanta resposta para tão poucas perguntas. O resultado, em suma: marcamos uma entrevista com o líder nacional do partido. Da próxima vez vai ser melhor, digo a Eldar. Melhor para ele e para mim.
Enquanto isso, aquele retrato de Lênin teima em não sair da minha cabeça. Ele mexe com minhas fantasias retrógradas, pós-soviéticas.
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