Sunday, 5 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (V)

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Urgench, 04/06/2003

O deserto mudou. Nosso motorista atravessou parte do Kyzylkum sob chuva intensa. No vento que entrava por uma frestinha da janela, um cheiro de terra molhada, uma sensação de estar cortando uma área de cerrado, de estar no coração do Brasil. "Há uns dez anos, tudo isto aqui era deserto", disse o taxista, Isak, com seu inglês beirando o incompreensível. Ainda é deserto, na verdade. Mas Isak se refere ao inusitado da chuva intensa nesta região, dos matos ao redor. Não longe, há plantações de algodão.

Estamos em uma vasta planície, com arbustos e mais arbustos crescendo até perder de vista num solo bege arenoso, de grãos bens finos. De repente, numa reta, surgem no horizonte dois promontórios - um, a um quilômetro, mais alto, e outro, mais à frente e menos elevado. Neles, as ruínas de barro de uma fortaleza e de um palácio, o complexo de Ayaz-Qala. Começaram a ser construídos nos tempos do império kuchano, nos primeiros séculos depois de Cristo. O apogeu do complexo se daria entre os séculos VI e VII. Ruínas, fantasmas da Rota da Seda. Pode-se identificar as paredes do palácio, os corredores. Até que muito bem preservados, dada a antiguidade do conjunto.

Eram duas e meia da tarde. Antes de sair de Khiva, pela manhã, já havia percebido os efeitos dramáticos daquela que é considerada por muitos a maior tragédia ambiental já causada pelo homem. Nas paredes das madrassas de Khiva, nos paralelepípedos que cobrem as ruas e cobrindo a lama seca, uma fina camada de pó branco. É o sal, o sal do Mar de Aral, que ficava a cerca de 300 km a noroeste. O sal que brotou forçado de suas não mais existentes profundezas, que foi levado pelo vento até a Corásmia, contaminando solo, construções, pulmões. Os líderes soviéticos, na sua ânsia de provar a supremacia do mundo coletivizado, vislumbraram a estratégia de transformar boa parte da Ásia Central numa plantação de algodão. Com o fabuloso destino econômico do deserto do Kyzylkum decidido, bastava adaptar toda a região, toda a natureza e sociedade para criar condições perfeitas para a cultura algodoeira. Uma tarefa não muito difícil em um país que resolvia seus problemas com truculência. Veja seu desafio étnico, solucionado com a deportação de milhões de pessoas que pertenciam a minorias para longe de suas terras natais, para que fossem substituídas por russos. Pergunte a um estoniano.

No caso do Uzbequistão, a adaptação tornou necessária a construção dos canais, sugando com avidez a água do rio Amu Darya para as plantações. A arbitrariedade soviética de tornar o deserto do Uzbequistão no maior centro mundial de produção de algodão levou em conta o fato de que a cultura do algodão exige sol e céu azul, mas também exige muita, muita água. Assim ela floresceu no sul dos Estados Unidos, às margens do Mississippi. No Uzbequistão, precisou-se desviar as águas do Amu Darya. E os canais foram construídos em quase toda a sua extensão, desde seu nascimento nas montanhas do Tajiquistão até a foz. E sua foz é o Mar de Aral. Com as obras concluídas sem o menor controle, sem a menor preocupação com suas consequências, o Kyzylkum floresceu e rendeu rublos e glória propagandística ao Kremlin. A água-vida do Amu Darya levou vida para terrenos esquecidos por Deus como o que cerca Ayaz-Qala, mas reduziu o Mar de Aral a uma ferida salgada onde antes prosperavam pescadores e banhistas. Uma ferida salgada varrida por ventos fortíssimos, cercada por vilarejos onde as pessoas não têm o que fazer a não ser imigrar ou testemunhar sua própria extinção. Casas e plantações que estão sendo consumidas pelo sal que estava no fundo do Mar. Barcos com cascos enferrujados jazem semi-enterrados na terra estéril como monumentos à estupidez humana. O sol é violento, corrói a pele como ácido. Cidades pesqueiras como Moynaq, no Uzbequistão, ou Aralsk, no Cazaquistão, se tornaram centros de tuberculose, desidratação, desnutrição, analfabetismo, depressão, suicídio, abortos espontâneos, malformações congênitas. Há gente séria que busca soluções. Uma que foi proposta é criar um longuíssimo aqueduto vindo sul da Rússia, atravessando o Cazaquistão, descarregando no mar moribundo a água que hoje provoca enchentes na Sibéria. Outra é diminuir em um terço o uso da água do Amu Darya usada para irrigação e racionalizar o seu uso. Mas ambas as ideias parecem estar longe de ser implementadas. Entre 1966 e 1993, o Mar de Aral - que originalmente tinha 68 mil km2 - encolheu pela metade e se dividiu em dois. No mar de cima, que fica em território cazaque, foi construído um dique que está impedindo que ele diminua ainda mais. Do lado uzbeque, contudo, até agora nada significativo foi feito.

Muitos turistas vão para o oeste além de Khiva, visitam Moynaq. Eu preferi não ir.


* * *

Foi o primeiro dia cinzento que vi desde que cheguei ao Uzbequistão. Minha preocupação número um era me reabastecer com mantimentos para a longa jornada que eu e meus amigos franceses combinamos iniciar logo à tarde - pegar um ônibus de Urgench, que fica ao lado de Khiva, para a mística Bukhara. Minha preocupação número dois era simplesmente como ser capaz, com eles, de me comunicar. Como saber onde, exatamente, para o ônibus para Bukhara? Como saber quando parte? Quanto custa a passagem? A preocupação número dois, na verdade, era só minha. Afinal, antes de voltar ao albergue no dia anterior, Olivier e Jean-Marie me identificaram como o potencial tradutor deles, elevando a "perfeito" o meu parco russo. Poucos sabem falar russo em Khiva, mas, na ausência de conhecimento das línguas locais, saber russo ainda é melhor que o inglês, especialmente se você for a uma loja comprar uma garrafa de água mineral. Cometi o erro de experimentar meu conhecimento com um vendedor, um homem mais velho e que certamente tinha aprendido a língua nos tempos de Stálin, e ele me deu a garrafa geladinha e barata, como eu havia pedido. Os franceses abriram um grande sorriso. Eu também - nem imaginava a tensão que meu "trabalho" iria me reservar no restante da viagem. Eu, tradutor de russo. Que vontade de rir.

Cruzamos com Isak na saída de Ichon-Qala. Ele estava lá com seu carro esperando por clientes, e ficamos espantados quando ele nos abordou falando inglês e nos oferecendo um panfleto que ele usa para explicar seus serviços para os turistas. Nossa intenção era pedir a ele que nos levasse para a estação de ônibus de Urgench. No caminho para a estação, Isak puxou papo e falou sobre uma misteriosa região com ruínas históricas, na área da fronteira da Corásmia com a República Autônoma de Caracalpaquistão. A tentação era grande demais, para meus amigos e para mim, e concordamos em rachar os US$ 40 do passeio. Antes, porém, pedimos a Isak que nos levasse a algum mercado para comprar filmes para nossas câmeras e água. "Vocês não querem almoçar?" perguntou. "Conheço um bom lugar, acho que vocês vão gostar." Fomos conduzidos a uma bairro não muito longe do centro de Urgench.

Lá encontramos uma casa de chá absolutamente lotada. Fomos os ilustres convidados do aniversário de 83 anos do senhor Ali, um orgulhoso nativo da Corásmia e defensor das tradições locais. O local não tinha nome, nenhuma placa indicava que se tratava de uma casa de chá. Nada, lá, parecia ter sido pensado para turistas e, ao mesmo tempo, tudo correspondia aos mais profundos anseios de um visitante interessado na cultura local. À frente da casa, numa varanda espaçosa, foram colocadas mesas bem baixas tradicionais da Ásia Central, chamadas tapchans, ao redor das quais as pessoas se sentam no chão, ocupando espaços sobre os tapetes coloridos. Do lado de fora da casa, só havia os chamados aksakals - palavra cuja tradução literal é "barbas brancas", usadas para se referir aos homens mais velhos - usando o tradicional chapéu uzbeque, o dope (com quatro lados, preto e com detalhes bordados com linha branca). Quando chegamos, os aksakals estavam devorando juntos, sem garfo e com a mão direita, um pratão coletivo de plov - um dos pratos mais conhecidos do Uzbequistão, um arroz cozido com óleo de algodão e pedaços de carne - , o pão nan, frutas secas diversas e chá, preto e verde. As mulheres estavam separadas, dentro da casa, e também usavam um chapéu tradicional, com a forma do dope, mas branco e dourado, com uma franja de contas amarelas descendo por um dos lados da cabeça. Na frente do restaurante, entre as mesas dos idosos, dois músicos, com instrumentos típicos: uma espécie de pandeiro bem grande e um tipo de banjo.

Mal nos viram, muitos velhos se levantaram e fizeram sinais levando a mão direita à boca, convidando-nos para comer. Com a falta de espaço, improvisaram uma mesa na calçada, do lado de fora do restaurante. Experimentei sem pudor o plov, sem garfo ou colher, e logo Isak me mostrou um pouco da técnica: o certo é amassar um monte de arroz contra uma das paredes do prato de plov, criando um bolinho mais ou menos como uma pequena salsicha, e depois empurrar tudo de uma vez para dentro da boca. Pensei: de repente, não sou mais um brasileiro no Uzbequistão, e sim uma pessoa no Uzbequistão. Não havia espaço para ser tímido, recusar a refeição - a hospitalidade é tão grande que intimida. É como se os uzbeques precisassem mostrar que vivem bem, que sua comida é excelente, que seu povo é alegre, e que eles não precisam de nada do que vem do exterior.

"Gosto de mostrar a minha terra", disse Isak, com seus cerca de 60 anos e olhos brilhantes, amarelecidos, lacrimejantes. "Guio passeios para as ruínas, passeios em Khiva, passeios para o Turcomenistão. Já fui citado até em um guia de turismo", afirmou com orgulho. Ele disse que o passeio mais difícil hoje é o para o Turcomenistão - cuja fronteira é a apenas alguns quilômetros de Khiva e Urgench, mas se tornou fora de alcance para todos, inclusive os uzbeques. "Muitas pessoas aqui têm parentes lá, mas não dá para ir. Além de você esperar por horas no posto de fronteira, com eles revistando tudo, eles cobram US$ 100 se você estiver indo de carro. É um absurdo! Aquela terra toda é nossa. Eu mesmo sou descendente de um dos khans, um dos reis desta terra. E não posso mostrar aos turistas a capital antiga da Corásmia, Konye Urgench, porque fica do lado de lá da fronteira." Mesmo com tanta ligação histórica entre os dois países, uzbeques precisam de visto para ir ao Turcomenistão.

Além de Ayaz-Qala, o passeio depois do almoço nos levou a mais duas ruínas das dezenas de fortalezas que existem a cerca de 50 km ao norte de Urgench. Hoje, elas parecem perdidas no meio do nada. Isak explicou que as construções eram abandonadas e reconstruídas em outro lugar seguindo as mudanças constantes do curso do Amu Darya. Na região há sítios arqueológicos antiquíssimos, de mais de 2 mil anos de idade - testemunhas da importância histórica da Corásmia, um dos berços da civilização.


* * *

Às 19h, de volta a Urgench após a visita às fortalezas, meus amigos e eu decidimos de vez, em vez de pernoitar por lá, encarar um táxi ou ônibus noturno rumo leste para Bukhara, que é alcançada por uma longa estrada que corta o Kyzylkum. Dessa forma, iríamos economizar uma noite de hotel. Ao chegarmos à estação de ônibus, porém, nos disseram que o último ônibus para Bukhara já havia partido. Cercados por taxistas loucos para faturar com nosso rico dinheirinho, conversamos com um deles e fechamos o que nos pareceu ser o melhor negócio - ele iria partir de Urgench conosco às 22h, o que significava que, de acordo com o motorista, estaríamos chegando a Bukhara por volta das 6h. Era tudo o que queríamos e, de quebra, o motorista nos convidou para esperar até a hora da partida na casa dele, desfrutando de um jantar e da maravilhosa hospitalidade.

No início, o arranjo me pareceu de fato excelente. Contudo, foi só eu iniciar meu serviço de tradutor à mesa de jantar, assistindo à TV transmitindo uma novela mexicana, que eu senti que aquele seria o início de uma longa, longa noite. A chuva, com suas idas e vindas, agora estava apertando. No nosso breve caminho pela estrada do centro de Urgench à casa do motorista, havia percebido que as rodovias uzbeques são cheias de buracos, não são iluminadas e têm poucas e semidestruídas placas. O carro era um Mercedes, aparentemente de um modelo da primeira metade dos anos 80, cujos cintos de segurança não funcionavam. O motorista, bastante simpático, parecia cansado à mesa de jantar e até tirou um cochilo, do qual eu tive a missão de resgatá-lo perto da hora da partida. Já no carro, percebi que meu russo não permitiria muito mais diálogo, e que iríamos passar 90% da viagem em silêncio. Estávamos nos lançando numa jornada noturna de 420 km. Oito horas de volante em uma via de péssima qualidade.

Não sei bem o motivo, mas eu estava um pouco nervoso.

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Um Brasileiro no Uzbequistão (IV)

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Khiva, 03/06/2003

O táxi atravessou parte da cidade - seca, árida, solar - e, de repente, nos deparamos com as muralhas de barro. São muralhas incomuns, as de Khiva. Como todas as demais edificações do seu centro histórico, são de cor areia, feitas com uma lama misturada com feno. Altas, sólidas, grossas, as muralhas delimitam uma máquina do tempo em uma cidade que seria, caso contrário, um nada na luz implacável do meio-dia. Em curvas, côncavas e convexas, elas são algo grandioso. Um monumento à vitória humana sobre os quilômetros infinitos de areia fervente e estepes rachadas entre os desertos do Kyzylkum e do Karakum, entre os russos e os persas, entre os mongóis e os turcos, entre ontem e amanhã.

Khiva, ou melhor, o seu centro histórico, chamado de Ichon-Qala, foi a capital de um reino que muito orgulha os locais. Mas o orgulho vem junto com a vergonha, com o medo, com sentimentos negativos que estão tão profundamente enraizados que já não é mais possível definir de que forma eles se fazem presentes no dia-a-dia. As muralhas são formidáveis, mas são cruéis. Era dentro delas que os nômades turcomanos, vindos do sul, negociavam os pobres coitados que, durante séculos, cometiam o erro de se aventurar por estas terras secas, tentando seguir os passos de Alexandre, o Grande. Era dentro delas que nômades cazaques faziam o mesmo. Era de dentro dessas muralhas que o rei, ou khan - sanguinário ou sábio na sua justiça diária, condenando seus réus-vítimas a mortes indizíveis - comandou uma terra cujos primeiros registros foram os do próprio pai da história, o grego Heródoto. Nos seus tempos, Khiva fazia parte de uma província do Império Persa - tão distante, tão obscura. Essa província era chamada de Corásmia, que é o mesmo nome desta província da atual república do Uzbequistão, o mesmo nome desde o século VI antes de Cristo.

O dia havia começado muito bem. Levantei às 5h40, acertei tudo no meu hotel em Tashkent e fui para o aeroporto apanhar meu voo para Urgench - uma cidade maior próxima a Khiva, conhecida como sua porta de entrada. Antes de embarcar, aguardando na fila para a pista do aeroporto, reconheci os dois franceses que havia encontrado no dia anterior perto do Khast Imom. Conversamos. Jean-Marie e Olivier trabalham em agências de turismo e, à medida que eu os ouvia falar, concluía mais e mais de que se tratavam de dois viajantes profissionais - aqueles que não temem ir a zonas de guerra ou terras em litígio, nem a países onde não se fale um idioma nem remotamente inteligível, se nesses locais houver um templo ou um ponto turístico de interesse. Olivier, o mais alto e moreno, me mostrou seu passaporte. "Estive no Turcomenistão no ano passado", disse, pouco antes de rir com minha cara de espanto (o Turcomenistão é uma espécie de Coreia do Norte da Ásia Central: um país fechadíssimo, imensamente misterioso, para o qual tentei arranjar visto três vezes sem ao menos receber uma carta do governo me explicando porque estava me ignorando). "E, nesta viagem, estamos indo para o Tajiquistão", disse Jean-Marie, o baixinho loiro, antes de rir da minha cara de espanto duplo (o Tajiquistão é considerado o país mais pobre e perigoso da Ásia Central, e ainda se recupera de uma longa guerra civil iniciada logo após sua independência, em 1991). Para minha sorte, descobri que em quase todo o trajeto que eles fariam no Uzbequistão eles estariam nas mesmas cidades que eu, e também o mesmo número de dias. Em Samarkand, nos separaríamos: eles embarcariam na aventura tajique e eu, em uma aventura de dois dias no Vale de Fergana, no extremo leste uzbeque. Que coisa. Se eu estava inseguro quanto a viajar numa terra tão logisticamente difícil, minhas preces por ajuda divina haviam sido atendidas. Só fiquei me perguntando (por pouco tempo) que vantagem eles teriam de me ter, como aceitaram, a tiracolo.


* * *

Khiva, do ponto de vista humano, me deixou perplexo. Saindo de Tashkent, uma cidade russa/uzbeque, esperava ver o mesmo tipo de dicotomia espalhada pelo país. Mas logo essa expectativa se evaporou: Não só não vi russos na cidade como também a língua russa pareceu ter quase desaparecido. Não das velhas placas, mas do dia a dia. Nem mesmo os mais velhos parecem lembrar muito. Pior: Estamos perto da fronteira com o Turcomenistão, e há alguns que falam turcomano. Também estamos perto da fronteira com uma república autônoma dentro do Uzbequistão, a república de Caracalpaquistão, onde novamente se fala uma língua própria, o caracalpaque - que se parece mais com cazaque do que com uzbeque. Levando em conta que poucas pessoas sabem falar inglês, é realmente difícil entender como esse povo consegue conversar entre si e com os turistas.

Não obstante, a língua é a última coisa que me veio à cabeça ao chegar à cidade.

Khiva é um lugar estranho. Seu coração histórico, diferentemente do de outras cidades centro-asiáticas, está inteiramente preservado - tão bem preservado que a vida foi quase espremida para fora dele.
- Guia Lonely Planet, Central Asia, 2ª edição, 2000

Difícil definir este estranho local sem falar dos últimos séculos e relembrar alguns dos momentos mais importantes da história da humanidade. A milenar capital da Corásmia é Konye Urgench, ou Velha Urgench - uma cidade que, por ironia do mapa traçado pelos soviéticos, ficou do lado turcomano da fronteira e hoje, por causa do isolamento do Turcomenistão, nem sequer pode ser visitada por muitas pessoas com raízes na Corásmia. Mas Khiva, que assumiu o status de capital pela primeira vez em 1592, foi a última capital da Corásmia independente, o reino (ou khanato, como é chamado aqui, por ter tido como monarca um khan) que deixou de existir em 1920, quando passou a ser uma república. Ainda de jure independente, pequena e frágil, se manteve separada dos soviéticos até 1924, quando foi finalmente incorporada à URSS. Até antes da chegada dos russos no século XIX, o khanato de Khiva disputava poder com outros pequenos reinos de então, os khanatos de Bukhara e de Kokand, ambos no atual Uzbequistão.

Voltando no tempo até antes de Heródoto está a lenda. A cidade teria sido fundada pelo filho de Noé, Sem, que teria encontrado um poço com água fresca no local. O poço da lenda existe até hoje, no canto noroeste de Ichon-Qala. Depois do filho de Noé, o local foi ocupado pelos persas e, daí, por uma sucessão de povos e conquistadores. Veio Alexandre, o Grande, em cerca de 328 a.C.; Vieram chineses, novamente persas, os hunos, turcos azuis (ou Kök); vieram os árabes, no século VII, e depois turcos seljúcidas; Veio Genghis Khan, no século XIII, e depois Tamerlão, no século XIV; Os uzbeques, um povo originalmente nômade que vivia ao norte do Mar de Aral, viriam no século XVI e depois disso, mais idas e vindas conduziram a cidade aos domínios dos vermelhos moscovitas. Até antes da conquista russa, a cidade era bastante conhecida justamente por ser o maior centro de comércio de escravos na Ásia Central e, possivelmente, de todo o Oriente.

Ichon-Qala é uma cidade-museu. Seus prédios foram todos restaurados e abrigam palácios vazios, mausoléus visitados com periodicidade irregular pelos moradores de Khiva, mesquitas pequenas e madrassas desocupadas. Há pessoas que moram em Ichon-Qala, mas são poucas - o que se vê mais são os locais andando de lá para cá, usando o centro como um atalho para chegar ao outro lado da cidade. As ruas são limpíssimas. A sua principal via de acesso é ocupada por vendedores de lembranças, que pulam de felicidade quando aparecem os ônibus de excursão, que geralmente trazem europeus. Esses ônibus - vi apenas um, com franceses - trazem vida e agitação às ruas de Ichon-Qala que, do contrário, seriam perfeitas demais, irreais demais. Mortas demais. Como bem convém a uma cidade-fantasma mantida no formol do calor da Ásia Central.

Logo na entrada de Ichon-Qala fica a chamada Ark, o palácio do khan de Khiva. Não significa arca, como em inglês, significa fortaleza, e por isso não tem nenhuma relação com o pai do suposto fundador da cidade. Dentro dela, há um museu que, por meio de mapas, mostra o avanço confuso dos diferentes povos que conquistaram a região.

A sala do trono do khan é mais um local de lendas. Toda revestida de azulejos azuis com detalhes brancos, tem um teto alto sustentado por pilastras esculpidas de madeira e só três paredes, o que permite que o vento, captado lá no alto, circule melhor. Atrás de onde ficaria o trono, há três portas. Dizem que o khan, quando encarregado de julgar um criminoso, enviava o réu para a porta da esquerda se decidia que ele deveria ser libertado; para a porta do meio se decidia que ele deveria ser mantido preso; e para a porta da direita, se decidia que ele deveria ser executado. Pode-se subir tudo, até um terraço do palácio, bem em cima da muralha, de onde se tem uma linda visão de todo o complexo bege da cidade velha. O que se destaca mais na vista lá de cima são três grandes minaretes - magníficas estruturas que refletem como prismas o sol. Um deles, perto da Ark, é baixo, completamente coberto por linhas sucessivas de azulejos, criando mosaicos azuis que se mesclam com a cor intensa do céu sem nuvens. O minarete, chamado de Kalta Minor, parece nunca ter sido completado. Aparentemente, se tivesse sido, seria um dos mais altos do mundo. Outro minarete, o Islom Huja, é o contrário, magro e se estica no céu. É o mais alto da cidade (45 metros), um verdadeiro imã para os olhos e para os pés. Subi-lo pela espiral de degraus íngremes, no escuro calor, na companhia das piadas de meus dois novos amigos franceses, foi cansativo e não foi. O suor se misturou ao sorriso. Fiquei me perguntando - quantos brasileiros já estiveram aqui? Quantos um dia vão estar? "No ano passado, recebemos uns seis", disse um dos donos do hotel Arqonchi, que fica em Ichon-Qala, onde pernoitei. "Mas você é o primeiro, e único, neste ano." Quem são vocês, meus compatriotas, que cruzaram o planeta como eu para conhecer um local tão improvável?

Descobri depois que os azulejos azuis, que me chamaram tanto a atenção na Ark, são algo comum nas dezenas de madrassas, mesquitas e mausoléus. Os tetos são especiais, esculpidos com motivos geométricos e coloridos, parecendo tapetes persas. E as pilastras sustentando os tetos são sempre ricamente esculpidas. A técnica para dar forma a esses troncos parece ser uma tradição local, que está sendo passada a uma nova geração de entusiasmados artesãos em Ichon-Qala.

Perto do mausoléu de Pahlavon Makhmud, outro lindo prédio da cidade velha, o entoar de um suave cântico islâmico por um mulá afastou meus olhos da técnica de um jovem que esculpia um grande tronco numa oficina ao lado. O cântico, suave e hipnoticamente repetitivo, reverberava na brisa fervente, ecoava dentro dos meus ouvidos e na minha cabeça. Talvez o cântico estivesse no ar há um bom tempo, desde quando eu comecei a caminhar pela cidade. Talvez até nunca tivesse deixado de ser entoado desde os tempos dos khans.

Cheguei até o mausoléu. Adentrei seu humilde portão de tijolos ocres. Tirei meus sapatos. Pisei no tapete de uma sala redonda, alta e fresca - com paredes completamente cobertas por azulejos azuis, alguns com misteriosas inscrições em árabe. Os azulejos seguiam até o teto, onde ficava a cúpula coberta por azul do lado de fora, facilmente identificável de qualquer ponto de Ichon-Qala. O mulá estava sentado do lado direito, no chão. Algumas pessoas estavam sentadas à frente dele, em um silêncio reverente, com as mãos abertas na altura do peito e voltadas para o teto, como se esperando algo lhe cair dos céus. Uma sensação de veneração tão grande.

Ao sair do mausoléu, cruzei com um grupo de mulheres uzbeques que sorriu para mim. Usavam vestidos longos, cor de rosa, vermelho, branco. Dentes de ouro, cabelos presos numa única trança, a sombrinha também colorida para proteger do sol, sem pressa a caminhar. Poucos turistas por aqui. Tanta beleza para ser vista.

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Um Brasileiro no Uzbequistão (III)

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Atenção: Este texto descreve a capital do Uzbequistão em 2003 e fala sobre o Corão de Uthman. Para uma visão mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, Nas Montanhas (2012)

Tashkent, 02/06/2003

A divisão geográfica da capital uzbeque é tão clara quanto a divisão humana entre russos e centro-asiáticos.

Levantei e peguei o luxuoso metrô. Quem nunca esteve em Moscou, Kiev, Minsk ou Tashkent dificilmente consegue visualizar o que é um metrô soviético. Os líderes do Kremlin tinham a ideia de criar uma espécie de museu em cada uma das estações, investindo pesadamente em pisos de granito impecáveis, candelabros imensos, mosaicos luxuosos nas paredes. Cada estação parece ter um tema diferente, e todas são iluminadas por uma luz difusa, amarela, que dá a impressão de que, na verdade, você está em uma espécie de salão de algum palácio, respirando ares de eternidade imutável na companhia de sofisticados detalhes decorativos. E os trens vêm e são pontualíssimos – um relógio marca quanto tempo se passou desde que o último parou na minha estação, e exatamente após sete minutos um outro se aproxima. Os sistemas gêmeos de transporte subterrâneo em várias importantes cidades soviéticas, mais de dez anos depois da queda do rubro lábaro com a foice e o martelo, mantêm o que de melhor os soviéticos deram ao mundo. Emocionante. Não é sem motivo que senti um grande contraste ao, depois da minha pequena jornada por esse universo, subir as escadas rolantes e botar meus pés no Chorsu, uma grande feira livre no noroeste da cidade.

É no Chorsu que os uzbeques de Tashkent gritam aos ventos a força de seu patrimônio cultural. Um patrimônio que tem muito de persa, muito de árabe, muito de nômades do deserto e nada de russo, nada de soviético, nada do luxo do metrô. Há dezenas de mercados (também chamados de bazares) como o Chorsu na cidade, mas ele é o melhor para se encontrar as senhoras vindas do Vale de Fergana, o reduto dos muçulmanos conservadores do país. Ou vindas de mais longe, da Corásmia ou do Caracalpaquistão, duas regiões administrativas uzbeques engolidas pelo Deserto do Kyzylkum e pelos restos mortais do Mar de Aral, a centenas de quilômetros de Tashkent. Os olhos puxados e os sorrisos não têm preço e são oferecidos de graça juntamente com as mercadoria à venda. O mesmo vale para os cheiros deliciosos na parte do mercado onde são vendidos as especiarias e os pães nan, um dos símbolos nacionais – em forma de disco, com bordas bem grossas e com desenhos feitos com a ponta de um garfo no centro, e ainda algumas sementes de papoula para dar um gosto especial.

Os aromas circundam vastos continentes de produtos industrializados, que por sua vez ocultam mais mercadores com metros e metros da mais pura e colorida seda de Margilan, um dos centros de produção do tecido do Uzbequistão, no Vale de Fergana. Vi vários grupos de mulheres com seus vestidos de seda deslumbrantes, com tons surreais de branco, vermelho, verde e azul. Sentadas, lado a lado, sorrindo e exibindo orgulhosas seus trinta dentes de ouro, preenchendo suas bocas e refletindo o sol do início de tarde. Há doces. Há algodão não-industrializado, vindo diretamente das plantações. Há restaurantes improvisados que vendem churrasco, e a fumaça das grelhas se espalha, criando nuvens baixas que as pessoas têm que atravessar. Algumas áreas do bazar são cobertas, mas grande parte dos vendedores tem que enfrentar o calor de 32 graus sem sombra alguma. A maioria deles não tem barracas – estendem suas toalhas no chão mesmo e lá expõem seus produtos. Não há placas com preços, e o vendedor berrando, coisa tão comum nas feiras brasileiras, é raro. Mesmo se você o encontrar, certamente ele vai estar exaltando a qualidade de sua mercadoria, não o preço dela.

A razão disso é que não existem preços. Como em todos os países do Oriente Médio, a pechincha é uma espécie de esporte milenar, venerado secretamente como uma verdadeira religião. Pena que não sei falar russo direito, e muito menos uzbeque. Só comprei no Chorsu um lindo pão nan, tão grande e fofo que ainda não consegui terminar de devorá-lo. 200 sums, ou cerca de US$ 0,20. Sei que poderia tê-lo conseguido pela metade do preço ou menos.

A hospitalidade é comovente. Na madrassa Kukeldash, ao lado do Chorsu, um estudante quase me abraçou quando disse que eu era turista e lhe pedi para ver o jardim do pátio interno, recheado de rosas. Depois, me mostrou uma pequena sala onde os estudantes colocam à venda peças de artesanato que eles mesmo produzem. Parece que o produto mais popular é um porta-corão de madeira, que pode assumir cinco posições diferentes. Você encaixa as peças móveis, e o porta-corão fica mais baixo, mais alto, maior ou menor. O estudante me mostrou como mexer as peças para colocar o objeto nas cinco posições. Depois me convidou a tentar fazer o mesmo. Respondi que, se eu conseguisse fazê-lo, comprava o porta-corão. Obviamente não consegui, mas cheguei à conclusão de que colocar o objeto nas cinco posições o transforma numa espécie de mandala. Ou seja: antes de ler o Corão, o estudante de lei islâmica pode refletir sobre o poder de Alá percebendo os sutis movimentos e angulações do porta-corão, e ser inspirado pelos seus mistérios. Sim. Uma técnica sufi de iluminação.

A madrassa e o bazar marcam o início de uma área onde não há prédios imensos soviéticos, não há estátuas soviéticas, e nem metrô soviético. O que há além do Chorsu são casinhas que aparentam ser muito, muito humildes. Elas são feitas muitas vezes de barro misturado com palha. Outras, de alvenaria simples, deixando transparecer tijolos. Algumas aparentam ser tão pobres que me fizeram pensar que, na verdade, eu estava numa favela. Essa impressão que tive em 2001 logo se evaporou quando meu tradutor de dois anos atrás, Muhammad Sharif, me explicou na ocasião que as pessoas que lá vivem são na verdade ricas, bem de vida. Um dos grandes segredos dos uzbeques é o que eles escondem atrás dos portões de suas casas, portões que um turista só cruza se for sortudo o suficiente para ser convidado para um chá ou um jantar. Por fora, as casas são nada, mas dentro sempre há um imenso pátio com árvores frutíferas e passarinhos, muita sombra e muito carinho. Comprovei espiando na fresta de um dos portões fechados: crianças brincavam lá dentro e uma mulher cozinhava ao lado, em uma sala coberta e com grandes janelas. A doce vida secreta uzbeque na cidade velha.

Difícil navegar caminhando pelas ruas estreitas e empoeiradas. Procurando por uma antiga madrassa, finalmente me deparei com os primeiros turistas nesta parte de Tashkent. Eram dois franceses jovens, um mais baixinho e loiro e outro alto e moreno. Faziam uma dupla engraçada, e era impossível não perceber que eram visitantes de uma terra distante, como eu. Perguntei a eles se falavam inglês e responderam com empolgação que sim, brevemente interrompendo a seção de fotografias de um detalhe perdido da rua. Me indicaram o caminho de Khast Imom. Não imaginava que os veria de novo.

A indicação estava certa. O Khast Imom é um complexo que inclui uma madrassa, uma mesquita, um mausoléu e instituto de estudos islâmicos. A madrassa, chamada Barak Khan, abriga hoje o equivalente islâmico de uma arquidiocese de quatro países: Uzbequistão, Turcomenistão, Tajiquistão e Quirguistão. Imagine uma catedral no meio da favela da Rocinha – é mais ou menos a impressão que se tem. Não que o prédio da madrassa ou da mesquita sejam grandiosos. Pelo contrário: o Khast Imom é muito mais modesto do que se espera. Nada de mosaicos grandiosos. No pátio interno da Barak Khan, entrei sem fazer barulho e vi as rosas e abelhas refletindo o sol que passava pelas sombras das amoreiras. Muito bonito. Enquanto admirava o jardim, um funcionário do local mostrou que seu radar para turistas estava bem calibrado. Chegou rápido. “Fala uzbeque? Russo? Inglês? De onde você é?” perguntou o gordinho bronzeado, aparentando ter uns 25 anos.

Respondi a suas perguntas em inglês, e ele mostrou conhecer bem a língua. “Brasil? Futebol? Ronaldo!”, sorriu. O cartão de visitas do futebol é infalível. Ele disse que já havia encontrado brasileiros visitando o complexo, e eu fiz uma cara de espanto. “Foi há muito tempo, umas poucas pessoas vieram”, explicou. Depois me perguntou se eu tinha dólares para trocar no mercado negro, porque ele poderia me ajudar. A troca de dinheiro dessa forma é oficialmente ilegal, mas é como todos os turistas fazem por aqui. Agradeci, disse que não, e lhe perguntei sobre o Khast Imom. “Aqui na Barak Khan ficam escritórios. Você pode olhar. Lá do outro lado da rua fica a mesquita Telyashayakh.” Eu disse que já havia dado uma olhada na madrassa e lhe perguntei sobre a mesquita e sobre o seu grande tesouro, guardado na biblioteca ao lado. O tesouro que atrai pessoas de muito longe. “Sim, ele está lá”, disse o estudante. “O velho Corão. Mas você não pode ver, infelizmente. O bibliotecário está doente, e a biblioteca está fechada.”

O Corão em questão é considerado o mais velho que existe. Chama-se Corão de Uthman. Diz a lenda que o Tomo pertenceu ao califa que lhe deu o nome, Uthman, o terceiro sucessor de Maomé. No ano de 656, ele foi assassinado em Medina, e o seu sangue teria manchado as páginas do Livro. Depois, em 661, Ali, primo e genro de Maomé e sucessor do Uthman no Califado, foi também assassinado, abrindo caminho para que os sucessores de Uthman voltassem ao poder. Esses fatos estão na raiz da principal divisão na religião muçulmana. Os seguidores de Ali passariam a ser conhecidos como xiitas, e os seguidores da linha ligada a Uthman, membros da dinastia Omíada, de sunitas.

As lendas sobre o livro continuam: antes de morrer, Ali o teria levado para a cidade de Kufa, hoje no Iraque. Lá ele teria permanecido até o século XIV, quando Tamerlão conquistou a região e decidiu trazê-lo para sua capital, Samarkand. Em Samarkand ele teria permanecido mais alguns séculos, até que os russos chegaram. Em seguida, o livro teria sido vendido para os servos do czar, que o transportaram para um museu em São Petersburgo. Só muito tempo depois o Corão de Uthman seria devolvido e passaria a ser guardado no Khast Imom, apenas para que eu, que viajei de tão longe, não pudesse vê-lo. Que bom que outros viram.

E ali estava. Ele parecia com nenhum outro Corão que eu havia visto. Não tinha iluminuras, nada de primoroso, mas era forte e utilitário, com a beleza de algo primitivo. Ele jazia apoiado em si mesmo, com páginas abertas: folhas grossas, de pele de cervo. As letras fluíam longas e baixas sobre elas, como uma esquadra de galeões a caminho da batalha. As pinceladas eram amplas e fortes. Elas pertenciam à aspereza da história, não aos bordados da fé.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia, 1994

Com lendas e imagens que nunca testemunhei na cabeça, um tanto chateado, fui devagar tomando meu caminho de volta à Tashkent russa. Peguei o metrô novamente e, enfrentando um calor que me fez passar mal, fui ver o colossal Palácio da Amizade dos Povos – uma regalia arquitetônica, bastante evidente, dos tempos soviéticos. Vastas paredes de concreto cinza, com uns 10 metros ou mais de altura, projetadas para vencer a eternidade. Pensando bem, você não precisa de coisas tão gigantescas para vencer a eternidade. Você precisa de boas histórias.

Bebi uma Coca-cola. Adeus Tashkent, por ora, esta é minha despedida. Amanhã parto para o oeste. Para longe.

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Um Brasileiro no Uzbequistão (II)

O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
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Atenção: Este texto descreve a capital do Uzbequistão em 2003. Para uma visão mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, Nas Montanhas (2012)

Tashkent, 01/06/2003

Dormi das 3h30 ou mais até às 10h30, depois tomei café e voltei a tentar dormir até as 12h, com duas moscas muito chatas pousando toda hora na minha cara. Acordei de vez, tomei banho e me livrei da minha barba antes de matar os insetos.

Para minha alegria, Muhammad Sharif, meu tradutor da primeira vez em que estive em Tashkent, em 2001, me recebeu muito bem. Nem tive que ligar, ele me encontrou. "Não foi difícil, a maioria dos turistas fica nesse hotel", disse, rindo, pelo telefone. Eu lhe falei que havia trazido algumas suculentas cervejas Guinness para ele, e Sharif respondeu que estava perto do hotel e que poderíamos nos ver em 15 minutos. O sol estava forte lá fora.

O tempo não havia mudado meu amigo e seu inglês perfeito. Fomos juntos à sua casa, a casa onde fiquei da primeira vez, onde junto com sua esposa e seus filhos acompanhamos, atônitos, os atentados contra as torres gêmeas em Nova York (por uma absurda coincidência, eu estava no Uzbequistão no 11 de Setembro). A esposa rapidamente nos trouxe chá e frutas secas, o acompanhamento perfeito para um bate-papo à sombra da árvore em seu quintal. Sharif me disse que, desde nosso último encontro, havia abandonado um emprego chato na agência de notícias estatal uzbeque, em que era constantemente vigiado para falar bem do governo. Depois, dedicou-se a alguns trabalhos autônomos (com um repórter da revista Time) e, no momento, estava trabalhando numa agência ambiental ligada à ONU, que monitora a castigada natureza no país. "Mas eu gostaria de ir para a Inglaterra", disse, com um sorriso hesitante e brilho nos olhos. "Da última vez em que eu vivi lá, trabalhava para a BBC, mas minha esposa me pediu para voltarmos, porque ela queria estar perto de sua família. Hoje, ela pensa diferente, porque percebeu como eu estou infeliz." Disse que esperava o resultado de um concurso para a vaga de produtor no serviço mundial da BBC. "É muito difícil que eu seja aprovado; a esposa de um produtor que eu conheço está concorrendo, e ele vai tentar convencer os chefes a contratá-la."

Voltamos ao carro e fomos nos encontrar com Hairula, um uzbeque de origem tajique com cara de russo, que trabalha em Londres no serviço de rádio em uzbeque da BBC, transmitindo notícias para seu país. Ele já era conhecido meu e ficou feliz ao me ver em seu país. Ele também havia acabado de chegar à cidade e foi passear conosco. Por incrível que pareça, pedi a Sharif que me levasse a um lugar que ele, que mora na cidade há décadas, não conhecia. Precisei mostrar-lhe o local em um mapa, e todos nós precisamos de faro aguçado para encontrá-lo, de tão escondido que era. O que eu queria ver eram três mausoléus antigos de estudiosos muçulmanos. Os mausoléus, hoje, ficam dentro do perímetro de uma universidade islâmica da cidade. Sharif teve que pedir ao guarda de plantão, em uzbeque, que nos deixasse entrar. Depois, Hairula me falou que, mesmo para os habitantes de Tashkent, o local que estávamos prestes a visitar era, para todos os efeitos, secreto.

Os mausoléus são bonitos. Eles datam do século XV, tendo sido restaurados no século XIX. O principal, o de Yunus Khan, tem uma linda cúpula azul, a cúpula azul que caracterizou a arquitetura dos tempos de Tamerlão e que, dias depois, certamente me deixariam hipnotizado em Bukhara e Samarkand. Yunus Khan em si não é muito conhecido, mas ele ganha peso por causa de seu ilustre neto: Babur, que um dia iria conquistar a Índia, dando início à dinastia Mughal - que dominou o subcontinente do século XVI até a chegada dos britânicos. Outro mausoléu, o Kandergach Bi, tem um teto de metal com formas geométricas, e lá no alto uma ponta em forma de meia lua, em que um pássaro sapeca foi pousar.

O interior dos mausoléus é fresco, mesmo com o sol intenso devorando a poeira lá fora. Em um deles, encontramos um estudante da universidade, quieto e devoto, num canto. Assim que chegamos, nos sentamos frente a ele em uns bancos ao lado da tumba de um dos sábios. Vestia calça bege e camisa social branca, muito formal. Com os olhos escuros e estáticos, ficou nos observando, como se fossemos não apenas estranhos, mas completos alienígenas. As pessoas têm medo do que é diferente. Mas, naquele lugar, não senti medo de nosso acompanhante desconfiado. Permaneci em silêncio e, pouco depois, percebi que ele já nos respeitava mais. Voltou seus olhos para o chão, reverenciando o invisível.

Lembrarei da minha visita aos mausoléus também o que encontramos depois, quando fomos pegar o carro para ir embora, em frente à entrada principal da universidade: um casal de adolescentes de mais ou menos 16 anos - ela vestida com calça de moleton rosa e camiseta branca, ele, com calça jeans e camisa polo. Trocavam carícias apaixonadas dentro de um Lada com as portas abertas. A sombra fresca apaziguava um pouco as chamas de seus hormônios, mas ainda assim a luxúria era bastante clara e inconcebível em frente a um centro de estudos islâmicos. Paradoxos de um país muçulmano.

Depois, fomos comer frango. Um frango sem nada de mais, que meus amigos me disseram que era à moda uzbeque. O repasto deixou minhas mãos pegajosas, e elas ainda estão, por mais que eu as tenha lavado. Para fazer a digestão, pagamos a conta e fomos caminhar pela Broadway.


* * *

"Eu observei Tashkent com estupefação (...) Me senti cercado pela amplidão e grandiosidade de uma verdadeira capital. Era uma cosmópole de mais de 2 milhões de pessoas, o gigante industrial da Ásia Central (...) Seus cidadãos havia perdido a aparência de camponeses intrometidos e pareciam quase urbanos. Quase 40% eram russos"
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia, 1994

O Uzbequistão, assim como o poder de Tashkent, são obra russa. O país, para início de conversa, foi criado como uma república autônoma depois que os russos conquistaram toda a região, já no século XX. Durante o século XIX, o território do país estava dividido em três pequenos reinos, governados cada um por um khan (uma espécie de rei): o khanato de Khiva, o khanato de Bukhara e o khanato de Kokand. Tashkent pertencia ao terceiro, mas a cidade foi tomada pelos russos em 1865, antes mesmo da queda do pequeno reino, em 1876. Rapidamente Tashkent foi atraindo imigrantes russos, especialmente depois da chegada à cidade da ferrovia transcaspiana, em 1889. Ainda durante o czarismo, Tashkent se tornou a principal base russa na região, de onde partiam as missões para conquistar o restante do território. Em 1918, depois da revolução russa, Tashkent se tornou a capital da República Socialista Soviética Autônoma do Turquestão. Depois, quando essa república foi dividida, o status de capital da nova República Socialista Soviética do Uzbequistão ficou com Samarkand. Só em 1930, Tashkent reconquistou sua posição de destaque.

Até hoje, em que pese uma forte campanha de estímulo à língua e cultura tradicionais uzbeques e um forte movimento de saída dos russos que vivam no país, a maioria dos habitantes de Tashkent ainda têm origem russa. Essa verdade é clara quando você caminha pelo centro da cidade. A Broadway é uma avenida curta, bem no centro, onde ficam dezenas de pequenas bancas de camelôs vendendo artesanato e bugigangas, lanchonetes com mesinhas vendendo churrasco em espetinhos, sorveterias, bares, lojas de CDs e fitas cassete pirateados, músicos de rua. Broadway, é claro, é um apelido irônico, que mostra a que país o Uzbequistão aspira se parecer hoje em dia. Adotou-se Broadway e não Arbat, o que seria de se esperar. A Arbat é uma rua em Moscou que é exatamente assim, o mesmo espírito. Talvez a maior diferença é que, lá na Arbat, há um McDonald's. A poderosa rede de restaurantes fast food, até o momento, não abriu nenhuma filial no Uzbequistão. Estranho estar num país sem McDonald's. Estranho mesmo.

Todavia, a maior diferença de Tashkent para Moscou ou Kiev é que, de fato, aqui está muito presente o elemento centro-asiático. Na praça Tamerlão, no centro da cidade, você vê muitas loirinhas falando russo, mas também charmosas balzaqueanas com olhos puxados e vestidos coloridos, com suas crianças correndo descontroladas ao redor delas. Outras mulheres surgem no nosso caminho com os vestidos e véus na cabeça, cobrindo completamente as orelhas e a nuca, com a pele bem curtida pelo sol. Encontramos uma e Hairula me disse que eram do Vale de Fergana - o reduto dos mais devotos muçulmanos no país. Depois, encontramos um casal de conhecidos de Hairula, ao qual ele se dirigiu falando em russo. Eram tártaros, me disse ele depois. Espero, viajando para o interior, ver mais dessa diversa beleza humana, legado dos tempos da URSS.

A cidade, em si, tem imensas avenidas, imensos prédios e imensas estátuas. Tudo com uma cara soviética. Na praça Tamerlão, o local onde ficava a estátua de Marx foi substituída por uma estátua do conquistador que, hoje, é o mais venerado herói do país. Tamerlão gigante, em pose gloriosa sobre um cavalo musculoso, igualmente intimidador. Estátua de metal sólido, frio, rijo. Não longe dali, uma outra estátua de igual gigantismo ituano conta a história de um mito soviético tatuado no inconsciente desta gente. O memorial mostra um ferreiro chamado Sham Akhmudov e sua esposa que, juntos, teriam adotado 15 órfãos durante a Segunda Guerra Mundial. Para lá a noroeste, além de um canal barrento, fica a parte mais uzbeque da cidade, separada, distante e próxima. O mercado Chorsu que vi em 2001 e a cidade velha. Sem estátuas. Amanhã vou lá.

Agora estou aqui no hotel assistindo TV. O canal 1TV é exatamente o que vi em 11 de setembro de 2001. Transmitiu, primeiro, um noticiário em uzbeque, e agora outro em russo. Como em 2001, o conteúdo inteiro do telejornal é o mesmo e se chama Islam Karimov. O todo-poderoso líder uzbeque teve um encontro com o presidente chinês Hu Jintao e presidentes de outras nações centro-asiáticas durante as comemorações de 300 anos de São Petersburgo. Não só a reportagem incluiu, na íntegra, o discurso que Karimov fez durante as festividades, mas também uma entrevista imensa que ele concedeu com exclusividade para a emissora. Pelo que eu pude entender, ele está falando de terrorismo. A tal reportagem começou bem antes de eu escrever e parece bem longe de acabar. Está no ar há uns 20 minutos, no mínimo.

O pobre coitado do editor de imagens já ficou sem fórmulas faz tempo para tornar a transmissão mais atraente. Parece um discurso em rede nacional transvestido de telejornalismo. E o que dizer dos jornalistas que aparecem na reportagem, acompanhando a entrevista? Parecem estudantes esforçados da quinta série, com seus óculos e caderninhos, ouvindo e aprendendo com o formidável professor, escrevendo tudo tintim por tintim.

Neste país, ninguém tem insônia.

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Um Brasileiro no Uzbequistão (I)

O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?

Tashkent, 31/05/2003

Estou muito, muito nervoso com esta viagem. Agora há pouco, chegando a Tashkent, olhei pela janela do avião e me veio de novo aquela sensação de insegurança por não saber falar a língua local, por estar sozinho. Mas, ao mesmo tempo, sinto que esse medo está fundido com o desafio, com a vontade de domar este lugar tão difícil de conhecer, mas sem a companhia de ninguém. Sabendo que, provavelmente, meus amigos nunca virão para cá.

"Você vai para o Uzbequistão, de férias? Por quê?", muitos deles me perguntaram. "Tem alguma coisa para fazer lá?", refraseou, no mesmo espírito, meu irmão. Para quase todos, é a mesma reação que vem à tona: se há tantos lugares para se visitar, por que ir para o centro da Ásia, para um país que faz fronteira com o Afeganistão, onde há suspeita de atividade de extremistas islâmicos, onde a natureza foi destruída pela ânsia industrial dos tempos soviéticos? A resposta vem desde os tempos de Marco Polo, o mercador italiano que, tendo sido o primeiro ocidental a realizar a jornada à China e voltar, escreveu em seu diário sobre as belezas secretas desta região do mundo. Enfrentar a rota da seda, antes do avanço das navegações no final do século 15, era a única forma de difundir nos ricos mercados europeus as especiarias e todo o exotismo daqueles mundos cheirosos, coloridos, que povoavam o imaginários de espanhóis, ingleses e vênetos. Um mundo distante, perdido em meio a desertos desconhecidos, em meio a mares sem mapas, em meio a povos e clãs que nunca ouviram falar de nosso universo.

A viagem foi sem problemas. Em Londres, fazia muito sol, mas foi só o avião entrar no leste da Europa para começar a só sobrevoar nuvens. Vim de Aeroflot, a temível empresa aérea russa que, numa incomum manifestação de anacronismo, mantém a foice e o martelo em seu logotipo. Contudo, tudo foi bem mais tranquilo do que pensei. Os atendentes de bordo foram simpáticos - algo realmente estranho, vindo de russos. Pena que a comida não me agradou muito. Tanto na viagem Londres/Moscou como no trecho Moscou/Tashkent, o prato principal foi peixe, sem nenhuma outra opção disponível. E peixe não é, exatamente, minha carne favorita.

No impronunciável aeroporto de Moscou, senti um pouco do gostinho do drama da língua. Tive um probleminha na transferência de um voo para outro, algo meio inevitável. Na hora de falar com alguém e pedir informações, até me senti confiante, mas foi só a pessoa responder para eu perceber que o grande problema nem é falar, é entender o que as pessoas dizem. Ninguém, obviamente, fala devagar. Principalmente se você deixa claro que sabe um pouquinho de russo. E conhecimento de inglês na Rússia, mesmo num aeroporto internacional, é ainda pior do que no Brasil: alguns falam sim, mas falam mal, muito mal.

Ao chegar a Tashkent, a coisa piorou. Uma daquelas heranças ridículas dos tempos soviéticos é a necessidade de preencher um formulário, ao chegar ao país, dizendo exatamente quanto dinheiro você tem. Mas, ao chegar ao aeroporto da capital uzbeque, não encontrei formulários em inglês - só em uzbeque, alemão e russo. Tentei encarar o russo, só para depois de dois minutos largar a toalha e pedir para um funcionário procurar, pelo amor de Deus, o tal do formulário em inglês no almoxarifado. O pedido, aliás, foi em russo. O russo que, mais do que nunca, percebi que só me ajudaria em caso de desespero.

Fui apresentado a Tashkent em 2001. Fiquei na cidade por três dias para fazer uma reportagem sobre os dez anos do final da União Soviética. Já naquela época, a grande motivação da minha visita foi literária. Eu havia proposto a reportagem, e a visita ao Uzbequistão, após ler o divino Imperium, um livro de memórias do polonês Ryszard Kapuscinsky, publicado no Brasil pela Companhia das Letras. No livro, Kapuscinsky, considerado por alguns o maior correspondente de guerra que já viveu, descreve uma viagem que fez por vários países soviéticos do centro da Ásia no auge da União Soviética, e depois narra uma viagem parecida que fez entre 1989 e 1991, quando a colossal estrutura do politburo moscovita ruiu, vítima do reformismo de Mikhail Gorbachov. Mesclei as breves reflexões sobre Bukhara e sobre a Samarkand "que até hoje estonteia pela beleza única" à visão de Marco Polo. E, na minha imaginação, todo o patrimônio persa, turco e grego da região se tornou assim ainda mais atraente.

E mais além. O Uzbequistão foi um dos locais mais distantes onde ecoou a revolução bolchevique. Até que ponto aquela cultura secular havia sido afetada pelo ideal comunista? Até que ponto o povo havia mudado? Isso o que fui investigar.

Tashkent, vindo para cá para o hotel, me passou a mesma impressão da primeira vez. Me sinto, de alguma forma que não sei explicar direito, em uma cidade do interior de São Paulo. As árvores e o mato nas calçadas, a cor da luz dos postes, o vazio das ruas à noite, até o cheiro da brisa... Parece que, a qualquer momento, vou cruzar com um ônibus da viação Mantiqueira, fazendo o trajeto de alguma cidade do Vale do Paraíba para a rodoviária do Tietê. Sou tomado por um ar interiorano, no meio da noite; mas, ao mesmo tempo, as avenidas imensas e os detalhes dos prédios, mosaicos e pinturas geométricas, me dão a certeza de que estou numa terra muito, muito distante.

Estou cansado. Cheguei às 2h30 e amanhã tenho que levantar antes das 10h30 para arrumar minhas coisas e pegar o café da manhã, que só é servido até as 11h. Faz calor. Espero que não tenha mosquito no quarto. Parece que tem.

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Monday, 22 April 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão - Prefácio



Clique aqui para ler a primeira parte do diário

Em 2018, eu realizei minha quarta viagem aos países da Ásia Central que pertenciam à União Soviética, uma eterna fonte de paixão. A jornada me levou a três países: pela primeira vez, visitei o Turcomenistão, realizando um sonho antigo. Visitei também o Tajiquistão pela segunda vez, depois da jornada de 2012 descrita no meu diário Nos Desertos, Nas Montanhas. E voltei ao Uzbequistão pela quarta vez. A viagem à terra dos uzbeques teve um significado especial por seguir, em boa parte, o trajeto que fiz na minha segunda viagem à região, em 2003 - a viagem que foi a primeira que fiz à Ásia Central como turista, a primeira em que vi as cidades mais lendárias da Rota da Seda, Samarkand e Bukhara, e a primeira onde, de verdade, se desenvolveu a fascinação e admiração profundas pela região que me motivaram, e motivam, a voltar.

De volta a minha casa em Londres, achei que, antes de colocar no papel o diário da viagem de 2018 (que espero publicar em algum momento em 2020), valeria a pena revisitar, pela primeira vez desde a publicação, o diário de 2003, que foi lido por muitos dos meus amigos e familiares com o título Um Brasileiro no Uzbequistão. Os dez textos foram publicados na época pelo site Digestivo Cultural, onde até hoje se encontram disponíveis.

Ao reler Um Brasileiro no Uzbequistão, fui tomado por uma imensa alegria de rever os locais que acabara de visitar em 2018 com os olhos de 15 anos antes. Foi um prazer rever um Uzbequistão que mudou tão imensamente - não apenas pela morte de seu primeiro presidente, Islam Karimov, em 2016, como também pela sua crescente abertura ao resto do mundo, deixando para trás o isolamento soviético e, claro, o que veio por séculos e séculos antes dos russos. Por outro lado, meus anos de estudo após a visita de 2003 me trouxeram muitos mais detalhes que, à época da publicação desse primeiro diário, não me haviam chegado. Percebo que havia muitas imprecisões ou erros ou trechos que precisavam ser retificados, re-explicados, reescritos. Disso, a ideia de revisitar os textos de 2003 logo se transformou em um plano um pouco mais ambicioso - republicar o diário, trazendo a sua melhor versão possível à luz, disponibilizando-a a quem desejasse, como eu, rever o Uzbequistão que vi em 2003.

O diário fala pouco, na verdade. Há muita coisa que vivi em 2003 que não incluí nos textos pois, à época, procurava respeitar um limite de cerca de 2000 palavras por artigo. Ele se manteve conciso, o que é bom no sentido de apresentar uma introdução geral e talvez mais acessível às maiores joias da coroa do roteiro da Rota da Seda na Ásia Central. Em 2003, é importante lembrar, esse roteiro era ainda um grande mistério, distante dos brasileiros. Me senti literalmente um peixe fora d'água sendo brasileiro e visitando a região (ainda que, é claro, não tenha sido de forma alguma o primeiro brasileiro a explorar o Uzbequistão). Esse estranhamento se traduziu no título do diário - que hoje até me causa graça ao comparar com o momento atual do turismo na região. Nas viagens subsequentes, em 2012 e 2018, vi muitos brasileiros se maravilhando com a cidade velha de Bukhara ou com o Registan de Samarkand. Me senti muito feliz. Como se tivesse sido um precursor.

O diário também não fala muito de minhas dificuldades na viagem. Embora alguns relatos dramáticos tenham sido incluídos (como a inesquecível viagem de carro pelo deserto entre Bukhara e Urgench), poupei os leitores de muitas das dificuldades linguísticas, da solidão e do medo natural de explorar um mundo tão diferente (o medo, em particular, teve seu ápice em Namangan). E, claro, houve o problema seriíssimo com minha câmera fotográfica - naquela era jurássica, ainda com filme de rolo. Ao chegar a Bukhara, o filme ficou preso dentro da câmera, não era possível rebobinar. Num esforço para resolver o problema, tive que abrir a máquina e isso fez com que a maior parte das fotos se perdesse. Até hoje me lamento por isso. Algumas fotos que se salvaram foram incluídas no diário e claramente têm qualidade inferior as dos meus diários posteriores. A foto acima, toda em azul (um efeito do problema que tive e que acabou virando "licença poética"), é justamente uma delas, mostrando a belíssima madrassa Mir-i-Arab de Bukhara. Entretanto, para esta versão revisada, decidi incluir, especialmente no trecho de Bukhara, algumas fotos que tirei em minhas viagens que vieram depois com o objetivo ilustrar melhor os textos.

Em um momento, porém, o diário original fala demais. Da sua primeira parte (I), durante o processo de revisão, decidi retirar um trecho. Achei que ele afetava um pouco a cronologia do diário. Isso porque ele foi escrito por mim após a conclusão da viagem, mas em Um Brasileiro no Uzbequistão eu o incluí como se eu já tivesse, naquela primeira entrada, conhecimento do universo com que iria me deparar. Mas não tinha. Era uma reflexão perfeita para um prefácio ou um posfácio, já que foi capaz de resumir com precisão as descobertas do viajante. Nada mais justo de incluí-lo aqui. Ei-lo, então. A síntese da viagem de 2003:

O que descobri foi uma sociedade dividida: cidades com partes claramente russas e partes claramente uzbeques; comunidades tajiques e originárias de outras partes da ex-União Soviética deslocadas de seu território pela infame política de miscigenação imposta por Stálin. Descobri um governo que lembrava muito o poder isolado do Kremlin, e também um povo simpático, às vezes inocente, às vezes maculado pela febre do capitalismo ainda fresco, vindo como um vento forte, encarnado nos turistas cada vez mais numerosos.

Espero que o diário revisado inspire ainda mais dos meus compatriotas a explorarem essa região fascinante do mundo. E que nunca mais seja apenas um brasileiro no Uzbequistão.

Londres, 8/4/2019

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Tuesday, 19 March 2019

Como Putin pode sofrer com a saída de cena de seu maior aliado na Ásia



Nursultan Nazarbayev, de 78 anos, o único presidente da história independente do Cazaquistão, anunciou nesta terça-feira sua renúncia após quase 30 anos na presidência de um dos maiores países da Ásia.

O anúncio, amplamente esperado, pode levar a uma mudança significativa da geopolítica da Ásia – em particular no tocante ao poder e influência da Rússia na região.

Considerado um dos mais importantes aliados do presidente russo Vladimir Putin, durante seus longos anos no poder Nazarbayev forjou com o russo e o com o líder de Belarus, Aleksandr Lukshenko, a União Econômica Euroasiática, um bloco regional que ambiciona ser uma alternativa à União Europeia.

Em Nazarbayev, Putin sempre encontrou um líder ponderado que tinha consciência e aceitava a imensa influência russa sobre seu território, particularmente no norte, na região de fronteira com a Federação Russa. Raros foram os momentos de tensão entre os dois.

E embora tudo indique que Nazarbayev tenha feito o possível para garantir que não existam riscos na mudança, tanto na esfera doméstica quando externa, uma sucessão é uma sucessão.

Os exemplos de risco vêm de países vizinhos, ex-repúblicas soviéticas igualmente consideradas integrantes da esfera de influência russa.

Trocas de poder nos vizinhos Uzbequistão, em 2016, e no Quirguistão, em 2017, trouxeram ao poder políticos que adotaram caminhos bastante diferentes de seus antecessores, embora analistas à época especulassem que nada iria mudar.

Democracia (e sucessão) gerenciada

O presidente sai, mas o regime, continua.

No poder desde 1990 e reeleito pela quarta vez consecutiva em 2015, com 97,7% dos votos, Nazarbayev seguirá mantendo um controle total do país por meio de uma hábil administração patrimonial das elites e um implacável cerco a potenciais rivais políticos.

À frente de um regime de “democracia gerenciada”, ele cultivou uma série de partidos de oposição de fachada e durante todos os anos no poder realizou eleições regulares que apenas mantiveram a aura de legitimação institucional – enquanto seu real poder, como o de Putin, está de fato nas sombras.

Apesar disso, embora seja muito difícil estabelecer com certeza o seu nível de apoio popular, não há dúvida de que ele é de fato muito querido por uma parcela significativa da população, especialmente nas grandes cidades.

Mas isso não significa que ele não enfrentasse fortes críticos, particularmente no extremo oeste do país, onde, em 2011, um confronto entre operários da indústria do petróleo e a polícia deixou pelo menos 15 mortos na cidade de Zhanaozen. Recentemente, mais protestos foram registrados na mesma região.

Em julho do ano passado, o presidente já havia fortalecido um órgão interno chamado Conselho de Segurança, passando a ser seu chefe vitalício.

O órgão deixou de ter um papel consultivo e passou a ter uma importante função constitucional, de “preservar a estabilidade política interna, proteger a ordem constitucional, a independência estatal, a integridade territorial e os interesses nacional do Cazaquistão”.

Na época, a manobra foi tida como um sinal claro de que Nazarbayev preparava sua saída e que pretendia permanecer “dando as cartas” quando isso acontecesse.

Outro sinal foram as mudanças no gabinete. De forma obsessiva, Nazarbayev mudou várias vezes os principais nomes de seu ministério de função nos últimos anos, como se procurando testar a lealdade dos mesmos, ao mesmo tempo que media suas competências.

Mais recentemente, mês passado, após uma onda de protestos provocada pela morte de cinco crianças em um incêndio na capital Astana, Nazarbayev decidiu mudar de uma vez todo o seu gabinete de governo. Uma jogada de mestre de populismo, indicando a todos que o “pai dos cazaques” ouvia os lamentos das ruas.

A mudança fez surgir o momento ideal para a transição de poder, na medida que representa um novo começo para o governo cazaque.

Interinamente, o presidente será o presidente do Senado, Kassym-Jomart Tokayev, que permanece até o final do que seria o mandato de Nazarbayev, em 2020. Então, novas eleições devem encaminhar ao poder o nome que venha a ter o apoio do ex-presidente.

Gigante centro-asiático

Apesar da população pequena em relação aos seus 2,7 milhões de quilômetros quadrados, espalhados pela Ásia e Europa, a economia do Cazaquistão se beneficia de sua riqueza em recursos minerais, particularmente petróleo e gás, concentrados na região do Mar Cáspio, no oeste (justamente onde fica o foco de maior insatisfação com Nazarbayev), e cobre.

A Rússia é o segundo maior destino das exportações do Cazaquistão, atrás da China. Para a Rússia, o país também representa um parceiro considerável, sendo o terceiro principal destino se suas exportações (cerca de US$ 12 bilhões em 2017), com uma balança francamente favorável aos russos.

Para Nazarbayev, a proximidade com a Rússia sempre permitiu, de certa forma, equilibrar um pouco a influência dos chineses, que já têm em terras cazaques grandes interesses como parte de sua estratégia de criar uma nova Rota da Seda para escoar sua produção industrial para o Ocidente.

Mas o que pode acontecer se um novo líder decidir revisar a relação com a Rússia?

A questão mais importante, neste momento, talvez seja medir o quanto isso seria possível. A ligação entre os dois países é íntima não apenas pela presença do Cazaquistão na União Euroasiática, mas também pela parceria em inúmeros outros órgãos internacionais, como a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (um órgão de defesa que lembra a Otan, liderado pelos russos) e a Organização para a Cooperação de Xangai.

Há também uma minoria significativa de russos que ainda mora no norte do Cazaquistão e uma parcela significativa de cazaques que, como outros centro-asiáticos, se beneficia dos laços históricos com Moscou e busca ganhar a vida no vizinho do norte.

Uma revisão das relações entre os dois países poderia, então, resultar em uma conta alta demais para ser paga por Astana, em termos econômicos e em termos domésticos, gerando grande insatisfação.

Mas o risco de instabilidade existe. Se houver a percepção de que a saída de Nazarbayev representa uma abertura política, com a possibilidade de grupos até então amordaçados se expressarem, isso pode gerar uma genuína reviravolta nas elites, colocando em risco o futuro do regime.

Tudo leva a crer que Nazarbayev vai manter as regras de divisão do poder, desta vez dos bastidores. E, publicamente, o discurso permanecerá o mesmo: acima de tudo, o mais importante é a estabilidade, a paz, a ordem.

Desconforto

Por seu lado, é inegável que a transição irá causar desconforto a Putin. E o quanto ele irá se envolver nos bastidores da política cazaque para garantir seus interesses depende muito do que venha a seguir.

Intervenções vindas da Rússia não têm um retrospecto bom no Cazaquistão, talvez por ressaltarem as cicatrizes profundas do imperialismo russo e soviético.

Em 2014, o líder do partido Liberal Democrata Russo, Vladimir Zhirinovsky, defendeu publicamente a criação de uma “Região Federal Centro-Asiática” da Rússia, cuja capital seria Verny (o nome dado nos tempos dos czares a Almaty, a maior cidade do Cazaquistão).

Após os protestos contundentes da chancelaria cazaque, o governo russo prometeu punir o político. Independentemente da imprudência de Zhirinovsky, porém, o que ele indicou com sua frase é mais importante do que as próprias palavras.

O que veio a seguir foi um esforço mais concentrado de Nazarbayev em mostrar que o Cazaquistão nunca mais será russo, com o anúncio, em 2015, de que o país abandonaria o alfabeto cirílico e passaria a usar o latino a partir de 2025.

Esse esforço para reforçar a “independência” cazaque deve continuar, mas mudanças profundas, ao menos enquanto Nazarbayev se mantiver nas sombras, devem ser descartadas.

De qualquer forma, seu afastamento tem um imenso significado simbólico para a Eurásia e, se não é um divisor de águas, sem dúvida pode ser o primeiro passo para mudanças mais profundas.