Wednesday 6 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XX): Tashkent

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Este texto faz referência a Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

14/9/2012

De acordo com a tradição conhecida pelos muçulmanos, o Profeta Maomé recebeu as revelações que formariam o livro sagrado do Islã entre 609 e 632, o ano em que morreu. Mas o caminho que levou esses ensinamentos até o livro grosso que hoje inspira os fiéis é ainda cercado de mistérios.

A chave para desvendá-los seria identificar qual é o Corão mais antigo do mundo. Há trechos de dizeres incluídos no livro que são muito antigos, anteriores ao que se acredita que tenha sido esse primeiro tomo. Se ignorarmos esses trechos e só levarmos em conta esse livro consolidado, o volume que seria a "versão definitiva" do Corão, chegamos ao provável ano de 651. Foi quando ele foi encomendado por Uthman, o terceiro dos quatro Califas, ou líderes, que se seguiram a Maomé e são venerados pelos muçulmanos sunitas. Uthman teria pedido a escribas seis cópias do Livro. Cinco foram enviadas a grandes centros urbanos islâmicos da época e uma, mantida por ele, para seu uso pessoal.

O tempo se mostraria inclemente com os seguidores do Profeta, levando-os a sucessivas divisões, começando pela que gerou os sunitas e xiitas. Novamente segundo a tradição, Uthman teria sido assassinado em 656 no exato momento em que lia seu Corão. Seu sucessor, Ali, teria levado o precioso Livro para Kufa, no Iraque. Vieram os séculos. O Califado ruiu, guerras, brigas, confrontos, conquistadores e impérios se seguiram. E o livro de Uthman, manchado pelo que acredita-se ser o sangue do próprio Califa, foi passando de mãos. Hoje, esse tesouro está não em Meca, ou no Cairo, mas na Ásia Central, em Tashkent, em um pequeno museu em um complexo com prédios estilo timurida, inaugurado não muito tempo atrás.

Lembro-me de minha visita a Tashkent, em 2003. Este novo complexo não existia; em seu lugar havia ruelas estreitas e casas antigas, a cidade velha da capital uzbeque. Naquela ocasião cheguei a procurar o local que guardava o tomo; me perdi nos labirínticos becos e caminhos. Encontrei, enfim, um conjunto de prédios islâmicos perdidos entre aquelas casas, chamado de Khast Imom, onde estava o livro, mas escondido, sem que eu pudesse vê-lo. Khast Imom é justamente o nome deste complexo novo onde estou. Mas é algo completamente diferente. O que restou daquele bairro ainda é visível, logo aqui ao lado.

Acredita-se que o fato de o livro ter parado aqui seja obra, novamente, de Tamerlão. Ele o teria trazido após uma de suas conquistas no oeste. Posteriormente, com a fome do Império Russo, o Corão foi transportado de Samarkand para uma biblioteca em São Petersburgo por decisão de outro general, Konstantin von Kaufmann, responsável por reclamar boa parte da Ásia Central para o czar, tornando-se o primeiro governador russo do Turquestão. Após a Revolução de Outubro, Lênin decidiu que era hora de devolvê-lo aos muçulmanos, como um sinal de que iria cumprir sua promessa de respeitar a autodeterminação dos povos soviéticos. O que viria em Stálin seria menos tolerância. A prática religiosa seria severamente reprimida, centenas de mesquitas seriam convertidas em depósitos ou usadas para outros fins. De volta a Tashkent em 1924, o manuscrito sobreviveu na capital uzbeque, milagrosamente, até os dias de hoje.

O tomo é uma visão realmente impressionante. Com cerca de um metro de comprimento quando aberto, tem as páginas ainda brilhantes, frescas, e essa caligrafia intrigante, evocativa de algo sobrenatural, além do humano, que é a caligrafia cúfica - o mais antigo estilo de caligrafia da língua árabe. As letras estão perfeitamente visíveis, em preto, nenhum sinal de estarem gastas ou desaparecendo por efeito dos anos. As páginas são de pele de veado e mostram a passagem do tempo principalmente em suas bordas.

A aglomeração de turistas europeus, japoneses, chineses, dos Estados Unidos e da Austrália ao redor lembra a agitação em torno da Mona Lisa no Museu do Louvre, em Paris. Em meio a tanta gente, fico me perguntando quantos realmente entendem a real importância deste tomo para a história da humanidade. A real importância das manchas escurecidas do que seria o sangue de Uthman. Fico me perguntando para quantos este é apenas um livro velho que, precisamente e exclusivamente pela sua antiguidade, se tornou valioso e merece ser visto, tão somente um objeto curioso que entedia o observador em três minutos. Olho ao redor: seria capaz de apostar alto que, tirando os seguranças e os guias das excursões, não há nenhum muçulmano aqui. Nenhum sinal de veneração. Nenhum sinal de honra, de afeto. Puro turismo massivo.

Ao sair do museu, finalmente encontro uma senhora claramente muçulmana e uzbeque, com seu vestido colorido e seu véu, adentrando o recinto. Penso - para esta senhora, para os locais e para os muçulmanos em geral, deveria ser prioritário ver tamanho tesouro. Eles deveriam passar na frente e receber tempo para observar com calma, refletir, rezar. Se a história que contam é realmente verdade, e há historiadores que a contestam, este é o livro que ainda existe que esteve mais próximo do Profeta, o que esteve mais próximo de seu tempo. Imagine o que significa isso para um muçulmano praticante.

Vou para o hotel pensando que o sistema em vigor em 2003, quando procurei pelo livro e não achei, talvez fosse melhor: o livro estava lá, acessível a todos que o conseguissem achar. O difícil era mesmo encontrá-lo, chegar na hora em que a visitação era possível, convencer os religiosos a deixar você a vê-lo. Era preciso insistir e se esforçar, e essa penitência tornava vê-lo um privilégio. Eu não consegui em 2003, mas encontrá-lo então, no fundo, não era uma prioridade. Se fosse, eu teria movido o céu e a terra para vê-lo. Outra solução seria mantê-lo mais acessível, mas em uma mesquita ou uma madrassa, onde pudesse ser honrado como são as relíquias dos santos católicos em igrejas ou catedrais. Onde imãs pudessem falar sobre sua história com orgulho para os fiéis. Era assim até os russos o levarem para São Petersburgo.

Hoje, ver o Corão de Uthman parece ser apenas algo que existe para ser incluído nas excursões dos visitantes, que precisam ter algo interessante para ver e fazer em Tashkent.


* * *

A grande visão de Islam Karimov, esse "embelezamento" de seu país, essa "higienização" de toda a confusão, desorganização, sujeira e algazarra, criando ambientes "europeus", me deprimiu bastante na capital uzbeque, como ocorrera em Samarkand. O complexo onde Karimov plantou o museu com o Corão de Uthman, o novo Khast Imom, é de fato muito bonito. Há uma imensa mesquita, uma "madrassa" (um prédio que copia o de uma madrassa, ocupado por lojas de suvenires), um mausoléu e alguns escritórios ligados ao governo. A análise inevitável é que Karimov tentou criar seu Registan.

Se é lindo, por outro lado, o novo Khast Imom não combina em nada com o resto da cidade velha que sobrou por perto. A proximidade das casas antigas reforça o quanto é artificial, sugere como ele foi imposto de cima a baixo, forçado. As crianças já tomaram o espaço - com suas bicicletas e bolas, jogando futebol, repetindo "hello" a todos os visitantes -, mas mesmo a apropriação infantil parece incômoda, pouco natural. É como se este complexo não devesse estar aqui.

Mais no centro da cidade é ainda pior. Ainda mais para quem, como eu, viu como a cidade era antes. Quando estive aqui em 2001 e 2003, vi a praça Tamerlão, com a estátua do conquistador. Ela era um oásis, tomada por lindas árvores de poderosas sombras, um deleite nas tardes de terrível calor no verão. Quando volto agora ao local, o que encontro é devastação - todas as árvores foram cortadas. O objetivo evidente foi permitir ao pedestre ter uma visão clara de um grandioso prédio construído por Karimov do outro lado da praça. E, claro, ver a estátua de Tamerlão, no centro da mesma.

A "Broadway", como é apelidada uma rua de pedestres que dá acesso à praça - e que estava fervilhante de barraquinhas, gente rindo e pequenos restaurantes em 2001 e 2003 -, nesta tarde ensolarada estava quase deserta, nem sombra do que vi no passado. Tudo foi ajeitado, ajeitado demais. Sobraram alguns artistas vendendo seus quadros e outros que fazem retratos dos transeuntes (um deles me pegou pelo braço e quase me sentou em um banquinho à força).

Talvez eu tenha tido azar, talvez tenha visitado a Broadway na tarde errada, numa tarde de muito pouco movimento. Talvez seja minha idade, acho que todos temos uma tendência de achar que o passado é melhor que o presente (ah, nostalgia). Talvez não. Mas o que é certo é que Karimov tirou um pouco da alma deste local, transplantou em seu lugar algo que julga ideal e deixou para os moradores da cidade se adaptarem à nova realidade.


* * *

Perto da Broadway e da Praça da Independência - notável pela sua sequência de jatos d'água formando uma grande cachoeira em frente ao prédio do Senado - fica o Museu de História do Uzbequistão. Fascinante. Ele oferece uma fartura de informações e muitas delas em inglês. E, é claro, mostra claramente a manipulação da história, sustentando a criação do Uzbequistão de Karimov.

A parte do museu sobre história antiga apresenta artefatos ancestrais incrivelmente preservados. Muitos deles foram trazidos de Termez, uma cidade na fronteira com o Afeganistão, na estrada que segue além de Shakhrisabz. Um Buda retirado do sítio arqueológico de Fayaztepa, de entre os séculos I e III, parece tão completo em seus detalhes que se me dissessem que era mil anos mais novo, eu acreditaria. Outro artefato, a cabeça de uma divindade hindu, de entre os séculos VI e VII, causa calafrios com seus caveiras, constituindo o que parece ser uma coroa. Queria saber uzbeque para ler como o museu narra o complicado período da história do país entre Alexandre, O Grande, em 329 a.C., e o início das invasões árabes, entre os séculos VII e VIII d.C. Os textos parecem curtos, com tanta complicação para explicar.

Na ala sobre a história mais recente do país, a partir do século XIX, começa a manipulação descarada da história. O museu destaca com fotos e documentos as revoltas na região em 1898, na cidade de Andijan, e em 1916. Em ambos os casos, as revoltas são apresentadas como movimentos contra o colonialismo russo, sem citar em nenhum momento a importância do Islã na mobilização dos locais. Em grande parte, essas revoltas foram de natureza religiosa. Certamente não em busca da "libertação nacional" - "nacional", aliás, é um termo só adotado na Ásia Central por Stálin e que tanta importância tem para Karimov. Ao falar do período soviético, ainda que destacando a evolução da indústria na época, o tom do museu é claramente negativo: o impacto ambiental, o fato de Moscou castrar o desenvolvimento da identidade nacional uzbeque, levando a uma sede por independência. Mas em nenhum lugar se vê que o Uzbequistão, até o fim, hesitou em se declarar fora da URSS, assim como o resto das nações da Ásia Central. A maioria não queria o fim do grande país. A independência se tornou a única opção com o desmoronar da velha ordem, e Karimov soube identificar isso melhor do que ninguém, tomando para si, juntamente com a elite ligada a ele, o domínio sobre esta terra. De forma até agora indestrutível.

Na parte ligada ao Uzbequistão hoje, há bem menos fotos de Karimov do que qualquer museu cazaque que visitei tem de Nazarbayev. Não vi fotografias do líder uzbeque jogando tênis, andando a cavalo... Mas há sim a galeria de imagens dele com chefes de Estado de vários países. E, a cereja no bolo, uma linda foto de Karimov com um simpático Henry Kissinger, o controvertido (acusado de crimes de guerra) secretário de Estado de Richard Nixon. Na foto, Karimov aparece abraçando Kissinger após ter recebido uma comenda por ser um "excepcional líder internacional", concedida "pelo público americano e ONGs", em virtude de sua "excepcional contribuição no esforço contra o terrorismo internacional". Evidentemente, no entender dos EUA, o mundo precisa de mais líderes como Karimov. Espanta-me que não tenha sido indicado ao Nobel da Paz.

Outro destaque curiosíssimo do museu é uma exibição de cartões de crédito do "Banco Nacional para Atividade Econômica Estrangeira" do Uzbequistão. Fiquei pensando se algum outro museu o mundo apresentaria cartões de crédito Visa nacionais como parte de seu acervo. Deve ser um grande orgulho para Karimov ter esses cartões por aqui...

Saio do Museu, ainda tenho tempo de me espantar mais um pouco com as avenidas e as árvores, tudo parece estar em fluxo, mudando, ficando mais europeu ou americano. O Uzbequistão está sendo transformado em outro país.

É minha última noite em Tashkent. No hotel, hora de checar emails e cuidar do meu joelho esquerdo. Tropecei e machuquei ele de novo, pela segunda vez nesta viagem. Sangue, anticéptico, band-aid. Nada pode me afastar da estrada.

Tashkent, 15/9, 8h31

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