Sunday, 26 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (X)

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Este post faz descrições da região do Vale de Fergana (leste do Uzbequistão) em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Vale de Fergana, 12/06/2003

Durante o dia me veio à cabeça que foi Dia dos Namorados no Brasil. Que estamos na época das Festas Juninas, e lembrei de como era gostoso tomar um quentão no frio, à beira de uma fogueira. Mas isso tudo é a oito horas de fuso horário, milhares e milhares de quilômetros daqui, do outro lado do planeta. Meu passado está a uma distância inalcançável deste mundo chamado Vale de Fergana.

Peguei um ônibus de Samarkand, passei a noite em Tashkent e hoje, às sete da manhã, estava degustando um saco de cerejas docinhas em um movimentado bazar em algum ponto da capital uzbeque. É o local, o único, de onde partem táxis compartilhados e lotações para o Vale, lar de um terço da população de todo o Uzbequistão. Como, em nome de Alá, não existe nenhuma linha de ônibus regular para as cidades do Vale? Cansado após dias digladiando com palavras russas espalhadas na cabeça, divaguei longamente em bom português de São Paulo, enquanto esperava que o motorista do táxi, usando seu dom de lábia, convencesse outros passageiros a embarcar no nosso carro para Margilan, cidadezinha a sete mil sums (cerca de US$ 7), e quatro horas de volante a leste de Tashkent. Táxi compartilhado é assim, tem que esperar até que tenha o suficiente de pessoas para que valha a pena para o motorista iniciar a jornada.

No caminho, as cerejas e as curvas infinitas de uma estrada que galgava sem parar uma das beiradas do Planalto de Pamir me fizeram muito, muito mal. Não sei quanto subimos, suponho que uns três mil metros, antes do carro começar a ziguezaguear em declive e eu, desesperadamente, me lançar à procurada da palavra "enjoado" e do pedido "pare o carro" no meu dicionário de bolso. Quando finalmente me fiz entender, uns 20 minutos depois, peguei um resto de água de uma garrafa que tinha e, encostado do lado de fora do carro, o joguei na cabeça. Após me recuperar da náusea, vi ao meu redor uma imensa planície fértil, plana, verdejante e fresca. Um lugar lindo. À minha frente, até perder de vista, apenas o céu azul e o pasto verde, meio pálido. À esquerda, montanhas distantes. À direita, parte do maciço que o carro havia acabado de transpor. À esquerda o norte, a fronteira com o Quirguistão. À direita, o sul, o distante Pamir e meus amigos franceses no Tajiquistão.

O Vale é tradicionalmente, há séculos e séculos, habitado pelos uzbeques, que desfrutam das águas do rio Syr Darya e transformaram a região em um centro de produção de verduras, legumes, o inevitável algodão soviético e frutas, muitas frutas. Também por ser o coração pulsante da nação uzbeque, ao contrário de em outras partes do país onde estive, o Vale não sofre de esquizofrenias: os locais (ao menos no lado uzbeque do Vale) não falam quase nada de tadjique ou quirguiz ou mesmo russo, apesar dos 70 anos de dominação soviética. As pessoas nas ruas falam uzbeque, o mais puro uzbeque. Também, diferentemente de em outras partes do país, o Islã é mais forte. E o governo secular não gosta disso. Eis, me dizem, o motivo do isolamento, de não existirem rotas de ônibus para as populosas cidades do Vale: tudo uma questão de segurança.

Ainda na estrada, melhorando do meu enjoo, nos deparamos com um grande bloqueio militar. O motorista desce do carro, leva um longo papo com um soldado. O militar pega depois meu passaporte brasileiro, olha, olha de novo e o leva para uma salinha escondida, depois volta em três minutos e diz que está tudo bem. Só depois disso, após essa agonia, somos liberados para prosseguir viagem. Depois, o motorista me diria que faz a viagem todo dia e todo dia é a mesma história, ele tem que descer para dar um "oi" a seu "amigo" militar. Não fala nada, mas subentendo que nesses encontros "presentinhos" são oferecidos aos sujeitos armados.

Em Margilan, sol forte. Desço do carro e me despeço do motorista para, ainda meio tonto da viagem, me sentar na calçada e olhar em volta, em busca de alguma placa que diga "Coca-Cola". Estou suando, tenho vontade de tirar a camisa. É quase meio-dia. Mulheres passam por mim rumo a um mercado, logo ao lado. Estão completamente cobertas, com exceção do rosto. Usam vestidos multicoloridos de seda brilhante, púrpuras, com detalhes em amarelo, vermelho, branco. Outros têm outras combinações de cores. O sol se reflete na seda e, por milissegundos, me ofusca. Um sujeito acha estranho um branquelo como eu estar sentado na calçada. Parece amistoso e me diz que sabe onde vendem Coca-Cola. "Vamos para o bazar", diz. Tem cheiro de quem bebeu e não para um segundo de falar. Eu não entendo o que ele fala, mas não preciso, é completamente irrelevante, papo de bêbado. Pelos minutos seguintes, ganho um guarda-costas bem incômodo.

Dos mercados do Uzbequistão, talvez o de Margilan, a capital nacional de produção de seda no país, seja um dos menos acostumado a ver forasteiros. Muitas pessoas, especialmente mulheres, passam me olhando com curiosidade. Todas com seus vestidos de seda. Umas, inclusive, cobrem o rosto também com suas sedas ou com a mão, deixando só à mostra os olhos. E são os olhos a parte do corpo que mais importa para elas. Quando me desvencilho de meu amigo bêbado, venço o receio e tento fotografar algumas.

No Ocidente, as mulheres delineiam as sobrancelhas com lápis, penteiam os cílios, aplicam batom, blush, e ficam lindas. No Vale de Fergana, obviamente, os padrões de beleza são um pouco diferentes. Não vejo quase mulher alguma com batom, nem com blush, nem com as unhas pintadas. Em compensação, elas gastam muito mais com seus lápis para as sobrancelhas. Parece que quanto mais grossas e escuras elas são, mais bonitas suas donas são consideradas. Muitas vão além, e literalmente pintam com lápis uma ponte entre as duas sobrancelhas, entre os olhos. Criam a "sobrancelha única" que é tão abominada pelas mulheres ocidentais. Quando percebi isso, finalmente entendi a forma como meu motorista me perguntou, me trazendo ao Vale, se eu tinha uma esposa. Ele me fez a pergunta ao mesmo tempo em que passava o dedo indicador pela sobrancelha. Ou seja: estava perguntando se eu tinha uma esposa bonita, com bonitas sobrancelhas.


* * *

Uma pilha de casulos brancos. Vapor. O casulo se desfaz. Os fios são tratados com corantes e recolhidos em uma máquina manual, de madeira, que tem uma manivela que enrola tudo. O novelo é enviado às artesãs. Elas gastam seis meses para fazer um tapete, ou duas semanas, aproximadamente, para fazer um pano de 1,5 metro de comprimento por 0,5 metro de largura. Ficam em salas quentes, desconfortáveis, mas parecem felizes. Fazem o que suas mães e avós faziam. Se encontram com suas amigas. Conversam e tomam chá.

Eu ainda digeria o grosso pão nan do almoço no mercado quando cheguei à fábrica, onde vi como a famosa seda de Margilan é produzida. Nos tempos soviéticos, os governantes trouxeram para o Uzbequistão suas técnicas perfeitas, cientificamente calculadas, para produzir o máximo de tudo - especialmente algodão. Em troca, o preço foi sacrificar o meio ambiente com produtos químicos, desviando rios e devastando a fauna e a flora. No Vale de Fergana, a produção de seda também foi modificada pelo progresso da grande pátria, mas a fábrica Yodgorlik ("suvenir", em uzbeque) permaneceu para contar a história sobre como era antigamente.

Fui recebido por um jovem que, quando eu disse que vinha do Brasil, abriu um imenso sorriso. Tinha os olhos meio puxados, como um chinês, mas com a pele mais escura. Profundamente enraizado em Margilan, ele falava um inglês melhor que o meu. Disse que recebia turistas frequentemente e os levava para conhecer a fábrica, onde trabalhava. Pouco mais de dez anos após o fim do comunismo, sua mentalidade era milimetricamente capitalista. "Precisamos conversar", disse ele. "Tenho pensado em formas de ampliar nossos negócios. Você sabe dizer se a seda é popular no Brasil? É bastante usada? Em que tipos de vestidos?", perguntou empolgado, enquanto me levava de sala em sala na fábrica. Lhe respondi que não tinha muito conhecimento do mercado de seda do Brasil, mas que sabia que muitas noivas usavam o tecido em seus vestidos. Ele me respondeu que estava recebendo "muitos pedidos da China, mas que estava difícil exportar para o Ocidente", porque ele não tinha "canais". Mas disse que estava otimista, que seu produto era o de melhor qualidade na região, e me levou para uma pequena sala, onde as sedas eram vendidas a peso de dólar. Uma em particular era hipnotizante: um pano longo trançado com fios de duas cores diferentes, verde e vermelha - os verdes no sentido vertical e os vermelhos, na horizontal. O resultado disso era que, dependendo da direção em que se olhava para o pano, ele parecia ser ou vermelho ou verde. Foram-se dólares e o coloquei na minha mochila. Fique pensando sobre a força dos empreendedores, os desafios do comércio internacional e, principalmente, a ironia de ter encontrado possivelmente o mais ambicioso capitalista de todas as ex-repúblicas soviéticas em uma cidadezinha no local mais distante dos Estados Unidos no Uzbequistão.

Vista a fábrica, não havia mais nada para fazer na pequena Margilan. Percebendo que ninguém falava russo, pedi a meu novo amigo capitalista que me ajudasse a encontrar transporte para Namangan. Uma hora depois, eu havia chegado a uma grande cidade do Vale de Fergana e, pela primeira vez na minha viagem, estava visitando um local por puro interesse jornalístico.


* * *

Em fevereiro de 1998, uma série de bombas explodiu na capital do Uzbequistão. O governo do país, que havia adotado em sua constituição a separação entre o Estado e a religião, culpou um grupo islâmico, o Hezb-i-Tahrir, pelos atentados. O governo já vinha desestimulando progressivamente, desde 1991, as pessoas de andar nas ruas com trajes muçulmanos, ou de falarem do Islã publicamente, fora das mesquitas. Mas os atentados foram a gota d'água para ampliar de vez a repressão, especialmente no local onde o grupo, e a maior parte dos extremistas islâmicos do Uzbequistão, teriam suas bases: o Vale de Fergana. A presença militar foi então reforçada, e muitas pessoas foram presas simplesmente porque eram suspeitas de ser ativistas islâmicos. Esse hábito do presidente Islam Karimov provocou grande revolta na população e manifestações de parentes dos presos, violentamente reprimidas. A Anistia Internacional, todos os anos, repete a ladainha de que as prisões do Uzbequistão são um paraíso para os torturadores. O país, em si, está calmo. Mas quanto tempo isso vai durar? O que vai acontecer quando o presidente Karimov morrer?

Namangan é (ou era) o lar de Juma Namangani, um ativista considerado pelo governo uzbeque um dos líderes do Hezb-i-Tahrir e que teria morrido em 2001, na cidade de Mazar-i-Sharif, no Afeganistão. Embora se tenha dito que Namangani morreu, ninguém sabe ao certo se isso é verdade, e provavelmente nunca saberá. E se o governo precisava de uma desculpa para manter a rédea curta para os ativistas em Namangan, aí está ela. Juma pode estar planejando, neste momento, seus novos atentados.

No centro da cidade, em uma grande área verde que abriga diversas faculdades, me sentei com uns estudantes de direito para perguntar a respeito de Namangan. Eu não tinha a mínima ideia do que fazer em Namangan, meu livro-guia não trazia referências, e eu não tinha nem sequer um mapa. Perguntei se eles sabiam onde podia comprar um mapa, e eles disseram que não sabiam. Puxei papo perguntando sobre obras arquitetônicas e mesquitas de Namangan. Me falaram de uma mesquita no centro, e perguntei a eles se iam lá com freqüência. Um deles respondeu que não, e eu perguntei por quê. Ele não soube responder. Perguntei se muitos jovens lá eram como ele: se vestiam com roupas ocidentais, não usavam o chapéu uzbeque e não iam à mesquita. Fez que sim com a cabeça. Era claríssimo que ele não queria falar sobre isso. Nem uma palavra mais. Senti desconfiança. Seria eu um agente do governo?

No caminho para a mesquita, ainda na área arborizada, vi dezenas, centenas de jovens na porta de duas ou três faculdades. Me senti visitando a Universidade de São Paulo. Alguns com livros e cadernos na mão, os homens olhando para as mulheres, as mulheres ajeitando a roupa. Todos vestidos como ocidentais. A uma quadra de lá, vi uns cartazes em uma janela do que aparentava ser um restaurante abandonado. Eram cartazes velhos, com o preto das letras e fotos desaparecendo. Tinham fotos de uns 20 cidadãos acusados de "atividades extremistas".

Sai andando, sem olhar para trás. Senti uma sensação estranha. Umas crianças que estavam na rua, brincando meio longe de mim, ficaram quietas e se aproximaram um pouco ao me ver. Olhei para elas e elas me fitavam, sérias. Certamente, ninguém por lá fazia o que eu estava fazendo, olhar ao redor.

A impressão de que, no centro de Namangan, ninguém quer ver que há problemas (e ser visto como um problema) ficou mais evidente ao me aproximar da mesquita. Os fiéis que vi chegarem entravam rapidamente no salão para suas orações. Fui entrando para ver um pátio perto da construção e, surpresa, ninguém quis conversar comigo. Ninguém teve curiosidade e, espontaneamente, foi me perguntar de onde eu vinha. Me olhavam de longe. Era diferente do que eu vivi em outras partes do Uzbequistão.

Senti uma certa tristeza, o que foi uma ironia. Por semanas, me cansei de ser abordado pelas pessoas e ter que explicar o que um brasileiro estava fazendo tão distante de seu país. Agora, estava sentindo falta do calor e do carinho daquele povo. Fui para um hotel.

Amanhã, volto a Tashkent e embarco de volta a Londres. Ao anoitecer, olhei pela janela do hotel e vi uma quadra poliesportiva. Jovens estavam jogando futebol. Desci e fui assisti-los mais de perto. Eles me ignoravam enquanto lutavam pela bola, se lançavam em carrinhos, cobravam seus escanteios e davam risadas. Jogavam muito mal todos aqueles jovens, alguns de shorts, outros sem camiseta. Era como meus amigos e eu jogávamos, no Brasil, na infância.

De repente, refleti. Os problemas mudam, os lugares mudam, mas meus olhos continuam os mesmos. E que o que eu vi foi totalmente parcial. Uma outra pessoa teria prestado atenção em outras coisas. Mas eu prestei atenção no futebol ruim, na falta ou no excesso de sorrisos e curiosidade, na arquitetura diferente, na herança do comunismo, nas sobrancelhas grossas e nos chapéus pretos. Coisas que, no meu país, não existem. Que só um brasileiro no Uzbequistão poderia ver e contar.

E o que eu contei não foi metade do que eu vi.











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Wednesday, 22 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (IX)

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Este post faz descrições da cidade de Samarkand em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Samarkand, 09/06/2003

Outro dia de muito, muito calor e ar seco. Segui as indicações do mapa, caminhando à beira de uma estrada que saia do mercado de Samarkand, circundando um cemitério ao meu lado esquerdo. O cemitério tinha uma colina e era possível ver de longe as tumbas refletindo o sol.

"- Ei, ei!", me disse, desde o outro lado da rua, todo agitado, um jovem de uns 16 anos vestido modestamente. Não estava muito no espírito de conversar e, para falar a verdade, fazia tanto calor que se eu parasse para tentar usar meu russo, cozinhava os miolos. Fingi não ouvir.

"- Shahr-i-Zinda! Eu sei onde é! Quer um guia? Eu sei!"

Depois de uns 500 ou 600 metros, ele desistiu de me perseguir, e me deparei com um portal. A entrada me autorizava a subir uma escada a céu aberto. No transcorrer do que calculei serem uns 80 degraus, as construções, vetustas e finamente trabalhadas, se faziam anunciar. Subi lentamente. A cada degrau, um suspiro: A Tumba do Rei Vivo se abria para mim. Um universo azul, em todos os tons, texturas e dimensões, flutuando livremente entre o céu sem nuvens e a terra seca.

O Shahr-i-Zinda, ou "Tumba do Rei Vivo" em tadjique, é o local onde Tamerlão e Ulugh Bek, seu neto, enterraram muitos de seus familiares e amigos mais queridos. Trata-se de uma rua de mausoléus. Uma rua estreita e com uns 100 metros de comprimento, em que cada uma das "casas" tem um portal esculpido com lindos azulejos azuis, moldados, remoldados e pintados com alegorias de plantas e flores. Também há as fachadas com composições abstratas, geométricas, matemáticas, cósmicas. Os mais belos trabalhos em azulejo que existem no mundo? Reflito enquanto fico paralisado logo no primeiro mausoléu.

Depois de seu portal, cada mausoléu apresenta uma câmara com um pequeno domo. No chão, repete-se nas casinhas a caixa de pedra retangular, deitada, indicando onde estão depositados os restos mortais do seu habitante. A sombra faz tudo ficar fresco e agradável, um oásis no clima sufocante. As cúpulas ecoam as minhas palavras de prazer: que lugar maravilhoso. Mas me assusto em seguida quando as sílabas despertam uma família de morcegos que, espertamente, fez seu lar em um dos tetos curvos.

A escolha deste lugar para abrigar os mausoléus tem um bom motivo: trata-se, certamente, da área mais sagrada para os muçulmanos de Samarkand. Caminhando pela rua de mausoléus, se chega à entrada de uma galeria que é guardada por um zelador. Sentado em um dos bancos ao redor da entrada, em uma área coberta, ele se reúne com outros visitantes para rezar. As palmas das mãos voltadas para cima, os olhos fechados. Sem incomodar, com receio de estar fazendo algo proibido, adentro a galeria. Lá no fundo, mais pessoas rezando, ao redor do que parece ser uma tumba. Aqui está enterrado um dos primos do profeta Maomé, Qusam Ibn-Abbas, aquele que se acredita que trouxe a crença em Alá para esta região do planeta. O santuário é uma das mais antigas edificações da cidade, mas o fluxo diário de visitantes exigiu que fosse reformado para continuar vencendo o teste dos tempos.

A rua de mausoléus fica já a caminho da saída da cidade. Continuando pela beira da estrada depois do Shahr-i-Zinda, caminhei por mais 1,5 km além do cemitério, passando pelas escavações arqueológicas de Maracanda - a Samarkand conquistada por Alexandre, o Grande. Lá perto, fica, ou se acredita que fique, o curiosíssimo mausoléu do profeta Daniel, da Bíblia, do Talmude e do Corão. Evidentemente, é uma lenda (há outras cinco cidades no mundo que clamam abrigar a morada final do profeta). E ela diz que Daniel teve seus restos trazidos para Samarkand por Tamerlão e que, mesmo após sua morte, o corpo do profeta continuou crescendo. Por isso, seu caixão, que pode ser visto por todos que forem ao santuário, hoje tem nada menos que 18 metros de comprimento. Acredita-se que seja mais do que suficiente para acomodar o cadáver do profeta, pelo menos por ora.

Ainda na estrada, o passeio me levou ao lugar escolhido por Ulugh Bek para seu famoso observatório. Ulugh Bek, que sucedeu Tamerlão no controle do seu vasto império, pagou com a vida seu amor pelas ciências. Em 1420, ele abriu em Samarkand a primeira "universidade" da região, na madrassa que levou seu nome, no Registan. Mandou construir também um gigantesco astrolábio, com a ajuda do qual mapeou 200 estrelas. Também fez cálculos precisos sobre a duração do ano e hoje é reconhecido mais pelo seu legado como astrônomo do que como um dos principais herdeiros do seu temido avô. Contudo, no seu tempo, o hobby de Ulugh Bek começou a chamar a atenção de puritanos islâmicos, que perceberam que o líder preferia ficar suspirando para suas estrelas em vez de estudar o Corão. Foi o próprio filho de Ulugh Bek, Abdul Latif, que organizou um golpe contra ele e garantiu que fosse decapitado, em 1449. Em seguida, seu amado observatório foi apagado da face da Terra. O que sobrou - encontrado por arqueólogos apenas em 1908 - foi uma das peças do astrolábio, curva e inacreditavelmente imensa (uns 30 metros), que é exibida na colina do observatório, ao lado de uma estátua do astrônomo. No dia em que estive lá, talvez como uma poética ironia, a Lua era visível no céu azul, coroando a estátua, como uma auréola na cabeça de um santo mártir. Um mártir das estrelas.

Ulugh Bek foi enterrado com Tamerlão no mausoléu Guri Amir, no centro de Samarkand. Próxima parada.


* * *

Eu permaneci aqui um longo tempo, ao mesmo tempo comovido e perturbado. Um homem entrou e rezou um pouco, depois se foi. Os choros de crianças soavam enfraquecidos vindos de fora. Sob o rutilar decorativo da cúpula, a simplicidade dessas lápides era honrada e simples: um reconhecimento da pequenez até mesmo deste homem e da passagem do tempo. Ao lado dele jaz seu dócil filho Shah Rukh; acima, seu ministro; sob uma área parcialmente confinada, seu xeque. Seu neto Ulugh Bek está a seus pés.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia, 1994

A primeira coisa que vem à cabeça é que está faltando alguma coisa. Na fronteira da parte uzbeque com a parte russa e mais modernizada da cidade, o Guri Amir, com sua cebola-cúpula turquesa, se apresenta no fim de uma esplanada plana. Parece pequeno demais. Algumas ruínas cercam a edificação, mas, ainda que levando em conta o que o complexo pode ter sido um dia, ela parece ser muito menor do que as madrassas do Registan ou que a mesquita Bibi Khanoum. O lugar tem um quê de tranquilidade interiorana: as ruínas com uma roseira aqui e ali, algumas borboletas e abelhas, o sol da tarde refletindo nas pedras, um ventinho mais fresco. Sei que a noite virá logo, e que talvez a brisa já a esteja anunciando. Mas o mausoléu e sua moldura parecem delimitar uma área em que o tempo passa mais devagar. Como se hesitante em afastar Tamerlão mais e mais das glórias passadas.

O ouro é eterno e mantém essas glórias vivas.

Calculo que o ouro usado no salão principal onde estão as tumbas de Tamerlão e Ulugh Bek, recobrindo o interior de seu domo e detalhes das paredes, poderia ser usado para dar almoço à população da cidade inteira por meses. Nas paredes de mármore, formas geométricas hipnóticas novamente me detiveram por um bom tempo. No centro do salão ficam as caixas de pedra que indicam onde estariam descansando os dois heróis da história do Uzbequistão. As pedras, porém, não são o que parecem ser. Depois de negociar com a zeladora do mausoléu, ela me leva para o lado de fora, onde uma escada me conduz a uma sala imediatamente embaixo do rico salão. Lá estão as verdadeiras tumbas, em uma câmara bem simples, com tijolos nas paredes. O sarcófago de Tamerlão é de jade escuro e com uma rachadura na sua tampa. A cicatriz é do século XVIII, quando um líder persa tentou transportá-la para o atual Irã e, descuidado, a deixou se quebrar.

Tamerlão, durante sua vida, construiu um pequeno mausoléu onde pretendia ser enterrado na sua cidade natal, Shakhrisabz, a algumas horas de viagem ao sul de Samarkand. Mas, segundo dizem os relatos históricos, quando ele morreu - nas estepes do Cazaquistão, prestes a lançar uma campanha para conquistar a China - era inverno e as estradas de Samarkand para Shakhrisabz estavam bloqueadas pela neve. Era 1404. Sendo impossível transportar o corpo do conquistador para sua cidade, optou-se por enterrá-lo no mausoléu que ele estava construindo para alguns de seus netos, no Guri Amir.

"- Quer ver algo que você não vai acreditar?", perguntou a zeladora russa em inglês, com seu forte sotaque, quando estávamos saindo da cripta subterrânea. Dessa vez, não tive que pagar. Do lado de fora, ela apontou para um túnel que, com suas escadas, levava a uma sala simples - na verdade, um corredor com uns dois metros de altura e teto curvo, toda de tijolos. "Este é o início da rede de túneis. Esta parede é nova, não estava aqui originalmente. Do outro lado dela, estão os túneis, que ligam o mausoléu ao Registan e até ao Shahr-i-Zinda. Eles nunca foram abertos, porque há partes (da rede de túneis) que são perigosas, nunca foram restauradas, outras estão bloqueadas. Mas os túneis estão aí." Não sei se ela falou a verdade. Duvidei muito. Seriam túneis de quilômetros por baixo da terra. Ainda assim, a zeladora me tentou com a ideia de que Samarkand, e o Uzbequistão, têm coisas que eu, ou nenhum turista, vai nunca ver ou saber se são reais. Um mundo de sombras, de mistérios. E o que ficamos sabendo nas visitas não é metade do que há por saber.

O dia terminou com melancolia. Minha despedida dos meus dois amigos franceses foi em um restaurante na avenida em frente ao Registan. Degustamos um laghman - um macarrão estilo talharim típico uzbeque, que vem submerso em uma sopa bem quente. Para equilibrar a temperatura, pedimos cervejas russas bem geladas.

Noite de céu estrelado, amena. Na avenida, o trânsito das vans de lotação levando constantemente as pessoas para o centro da cidade. Amanhã, volto a ficar sozinho, para o fim da minha jornada. Jean-Marie e Olivier ainda estão no início, vão para as montanhas do Tajiquistão, para outro povo, outro universo. Eu, por outro lado, vou para a terra proibida do Uzbequistão, no extremo leste do país. O suposto lar dos extremistas islâmicos, da repressão política em grau mais elevado, do maior medo das autoridades. Estou empolgado. Quero comprovar se o que ouvi falar do Vale de Fergana tem a ver com a realidade.

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Wednesday, 15 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (VIII)

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Este post faz descrições da cidade de Samarkand em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Samarkand, 08/06/2003

O sol das sete e vinte da noite tem uma personalidade instável, mas empresta magia a tudo que ilumina. Incide sobre os mosaicos e os transforma. A cada minuto, a luz se enfraquecendo passa de branca a amarela, de laranja a vermelha, de roxa a azul escura, à cor da noite estrelada. O processo molda o Registan. É como se a cada segundo existisse um novo conjunto de prédios. Os olhos não fecham, e se isso se torna inevitável, qualquer piscada parece demorar demais.

O Registan. Para muitos, o mais perfeito conjunto arquitetônico muçulmano do planeta. O símbolo de Samarkand são essas três madrassas ao redor de uma praça de mais ou menos 100 metros quadrados. Duas das madrassas estão frente a frente, e a terceira está entre elas, fazendo um quadrado incompleto cujo centro é a praça. Cada madrassa tem um alto portal coberto por mosaicos coloridos. Quando é amanhecer, o sol incide diretamente sobre a primeira e mais antiga delas, a madrassa Ulugh Bek, construída em 1420. Quando é meio-dia, o sol fica de frente à madrassa do meio, a Tilla Kari, de 1660. Por fim, no anoitecer, o prisma da luz amarela, laranja, vermelha e roxa é a terceira, a Shar Dor, de 1636. Seus portais têm aproximadamente 30 metros de altura, o suficiente para te deixar com câimbra de olhar para cima.

Por ironia, o Registan não foi obra do sanguinário Tamerlão - que fez de Samarkand sua capital, sua joia mais preciosa, o seu maior legado, seu maior orgulho. Foi obra de seus sucessores, que fizeram valer a frase que Tamerlão ordenou que fosse escrita em um dos portões da cidade: "Se duvidais de nossa potência, contemplai nossa arquitetura".

O vento quente sopra.

Contemplo.

Havíamos chegado a Maracanda (como Alexandre, o Grande, chamava a cidade) por volta das 18h, ao final de quase um dia inteiro dedicado à jornada de ônibus a partir de Bukhara. Embarcamos às 11h da manhã em um veículo de fabricação húngara em estado novamente lastimável, com janelas quebradas, imundo. Acho que o estado do coletivo me chamou mais a atenção desta vez do que quando fizemos a viagem de Urgench a Bukhara, porque daquela vez era de noite e eu estava cansado. Com o dia claro e radiante, percebi como o nosso ônibus estava mal, mas, por incrível que pareça, encontramos outros no caminho ainda piores. Por isso mudei de ideia e comecei a ver a viagem diferentemente: imaginei nosso ônibus como um bólido, novíssimo e ágil, engolindo quilômetros entre duas das principais cidades da Ásia Central.

Estrada monótona, contudo: paisagens rurais, como as do interior do Brasil. Áreas de cultivo de algodão se estendendo por quilômetros, pessoas muito pobres trabalhando a terra, vacas curtidas pelo sol do deserto do Kyzylkum. A imensa quantidade de bloqueios policiais e outdoors com frases do presidente Islam Karimov também foi um lembrete constante de que o Uzbequistão é um país à beira de um ataque de nervos, à beira de uma explosão social. Karimov zela pela triste tradição que se mantém no país mesmo com o fim da URSS - a de que as pessoas não saibam o que não devem saber, e que saibam que está tudo ótimo. Seus cartazes carregam as cores nacionais do país, verde, azul e branco, e, às vezes, sua foto. Estão não apenas nas estradas, mas também em hospitais, mercados, madrassas, prédios históricos e escolas. Em ambientes com estudantes, ele é sempre o grande professor. Suas frases mostram que está preocupado com o fato de que a juventude tem a missão de manter o país no curso glorioso que ele estabeleceu. Curso glorioso: esmolando verbas americanas em troca do estabelecimento de bases militares em seu território. Deixando a tuberculose devastadora tomar a região do moribundo Mar de Aral. Mantendo taxas altíssimas de analfabetismo e domando descontentes com centenas de soldados nas estradas e ruas, com metralhadoras em punho. Prendendo oposicionistas, acusando-os de serem extremistas islâmicos. Os problemas do Uzbequistão não chegam perto dos problemas do Brasil. Mas, se há um ponto em comum, é a qualidade das estradas: esburacadas, sem iluminação, com placas caindo aos pedaços.


* * *

Uma metáfora. Para chegar a Samarkand, a cidade mais evocativa do Centro da Ásia, é preciso vencer, com um avião vindo da Europa e com um ônibus em frangalhos, os quilômetros que separam o Ocidente do Oriente. Que separam o mundo facilmente acessível do remoto, obscuro, aparentemente inalcançável. Quilômetros difíceis, quilômetros cansativos, quilômetros que intimidam - mas quilômetros dourados, cujo resplandecer atravessou séculos de mistério, que não diminuiu depois da morte de Tamerlão, com a decadência da Rota da Seda, com Stálin ou Karimov. Mistério cantado em 1913 pelo poeta britânico James Elroy Flecker, que, curiosamente, nunca esteve em Samarkand, mas foi um dos responsáveis por trazer o fascínio da cidade para o imaginário ocidental:

Não viajamos apenas por viajar,
Ventos quentes alimentam corações em chamas.
Pela luxúria de conhecer o que não deve ser conhecido,
Nós pegamos a estrada dourada para Samarkand.
- Elroy Flecker, The Golden Road to Samarkand, 1913

Décadas depois, assim celebraria a cidade o também britânico Colin Thubron, um dos maiores artífices dos diários de viagem:

Samarkand evoca nenhuma outra cidade da Terra. É um som que rouba o coração. Outras capitais do Islã - Cairo, Damasco, Istambul - brilham com um esplendor acessível, mediterrâneo. Mas Samarkand habita apenas os limiares da geografia. Expressa uma estranheza sem litoral, e foi o trono de um império tão remoto em sua estepe e deserto que apenas tocou a Europa para aterrorizá-la.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia, 1994

Khiva tem cor de barro seco, com sua muralha grandiosa protegendo a herança do império da Corásmia em Ichon-Qala. Bukhara tem a mesma cor, mas também o azul celeste da madrassa Mir-i-Arab ou os mosaicos dos prédios ao redor da Labi-Haus. Samarkand é o estagio final da transição: o azul nas cúpulas se transmuta no multicolorido dos mosaicos e no dourado dos interiores da madrassa Tilla Kari como se tudo fizesse parte do mesmo tecido em degradê. Se Khiva é a cidade dos mercadores de escravos e Bukhara, o "Pilar do Islã" dos persas samanidas, Samarkand é ainda hoje lembrada, incorretamente, como sendo obra apenas de Tamerlão. Samarkand surgiu muito antes dele torná-la sua capital, em 1370. Por volta do século V a.C., já era um centro desenvolvido, cercado por uma muralha. Assim era quando se encontrou com Alexandre, o Grande, em 329 a.C. Pouco sobrou da então Maracanda, ruínas escavadas por arqueólogos, e é difícil imaginar o que pode ter levado Alexandre a ter dito sua frase que, hoje, carrega igual peso histórico e mítico. O conquistador teria dito que "tudo o que ouvi sobre Maracanda é verdade, exceto pelo fato de que é ainda mais bonita do que eu jamais imaginei".

O domínio sucessivo de vários clãs e povos foi encerrado por Genghis Khan no século XIII, mas se o mongol transformou em pó tudo que existia de glorioso em Samarkand até então, foi apenas abrindo espaço para Tamerlão. Os dois foram inegavelmente generais geniais. Numa espetacular seqüência de batalhas que durou nove anos, Tamerlão chegou a controlar, em 1395, o território correspondente hoje ao de Irã, Iraque, Síria, Turquia oriental, a região do Cáucaso e o norte da Índia. Embora tenha seguido o estilo aterrorizante de Genghis Khan ao supervisionar pessoalmente as cidades que conquistava virarem ruínas e as cruéis execuções e pilhagens, duas coisas o diferenciaram bastante de Genghis. A primeira era a sua própria origem - Tamerlão era de uma tribo de origem turca, sedentária, e não mongol, povo essencialmente nômade. Isso pode ter colaborado para que surgisse seu interesse por arquitetura e artes em geral, a segunda diferença entre os dois conquistadores. Se Genghis era um assassino indiscriminado em suas conquistas, o mesmo não pode ser dito de Tamerlão, porque se sabe que ele ao menos poupava da morte os artesãos. Quando os encontrava, mandava-os para Samarkand, para usar os seus talentos na edificação de um tesouro, na forma de cidade, que acreditava que iria imortalizá-lo como o maior de todos os líderes. A duplicidade assassino/mecenas é paradoxal, mas é essa ambivalência a maior definição do que se tornou Samarkand.

Ainda hoje Samarcanda estonteia por sua beleza única e perfeição das formas criadas pelos gênios das artes plásticas. Cada construção era supervisionada por Tamerlão, dotado de um gosto magnífico. Pesava as variações de diferentes ornamentos, atentava para a delicadeza do desenho e limpeza do traço. Em seguida, lançava-se outra vez no sorvedouro de novas expedições, em carnificinas: sangue, fogo, gritos.
- Ryszard Kapuscinski, Imperium, 1993

Muito do que era Samarkand nos tempos de Tamerlão não existe mais. Foi destruído em séculos de guerras posteriores. Além disso, alguns dos prédios mais imponentes da cidade de hoje, como os do Registan, só foram erguidos após sua morte (o mais velho deles, a madrassa Ulugh Bek, por seu neto). Contudo, ao lado do bazar de Samarkand, sobrevive um monumento em ruínas que poderia ter sido o maior orgulho de Tamerlão - ou melhor, de uma de suas esposas, Bibi Khanoum. Trata-se de uma mesquita do século XIV que tem todos os elementos da arquitetura do conquistador - as cúpulas azuis, os mosaicos. A diferença, nesse caso, é que tudo parece ter sido projetado muito maior do que o normal. A cúpula principal, por exemplo, tem 40 metros de altura. Reformado com a ajuda da Unesco, o portal da mesquita, de cerca de 35 metros de altura, é tão colossal que e difícil acreditar que existisse tecnologia e conhecimento suficientes para fazer uma obra dessas há quase 700 anos.

A lenda por trás da mesquita Bibi Khanoum explica a atmosfera de melancolia que se sente ao ver tantos recursos desperdiçados e destruídos numa edificação que teria sido tão grandiosa. A Bibi Khanoum nunca foi terminada. Há paredes que guardam espaços vazios para mosaicos grandiosos, inscrições árabes estilizadas, e o azul celeste de Tamerlão. Mas não há nada - só o vácuo, paredes nuas, cúpulas ocas e etéreas que ecoam o vento e o barulho distante do bazar. Acredita-se que Bibi Khanoum tenha encomendado a construção da gigantesca mesquita, certamente a maior de todo o Uzbequistão e uma das maiores do mundo, como uma surpresa para seu marido, enquanto ele estava viajando, conquistando novas terras. Ela encarregou um arquiteto de projetar a mesquita e lhe explicou o que queria. Durante o processo, quando Bibi ia pessoalmente supervisionar as obras, o arquiteto teria se apaixonado por ela. E quando as obras estavam entrando na reta final, quando só faltavam os detalhes artísticos nas paredes e nos tetos, ele se recusou a continuar. Disse a Bibi que só completaria a obra se ela lhe desse um beijo. E foi atendido. Porém, Tamerlão, ao retornar, descobriu o que havia ocorrido. Não se sabe exatamente que tipo de doloroso castigo o conquistador usou para punir o pobre infeliz, mas certamente o arquiteto não teve muita chance de se explicar. A obra foi então paralisada.

E Bibi, a amada rainha que só queria fazer uma surpresa a seu marido, foi forçada a usar véus pelo resto da vida. Foi enterrada num monumento em frente à mesquita incompleta - e bem longe de Tamerlão, o conquistador que, se for verdade a lenda, foi traído pela arte que tanto protegeu.

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Sunday, 12 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (VII)

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Este post faz descrições da cidade de Bukhara em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Bukhara, 06/06/2003

Não há luz elétrica aqui dentro. Lá fora, cai uma chuva leve, o céu está todo nublado. Pouco consigo enxergar do rosto de meus vizinhos no salão escuro. Eles estão ajoelhados nos tapetes colocados lado a lado. O cântico tende a te deixar quieto, anestesiado. O imã, rezando lá na frente, invisível de onde estou, tem uma voz bem grave e forte. Ele a faz ecoar com facilidade pelo teto de abóbadas, reverberando nas paredes e nas janelas. Nos breves intervalos entre uma estrofe e outra de seu poema sagrado, dá para ouvir uma pomba, provavelmente em seu ninho no teto, fazendo seu arrulho igualmente ecoante. Protegendo sua ninhada dos pingos de água fria. O cheiro é o da poeira acumulada nos tapetes. Com meus olhos se acostumando à escuridão, descubro que os tapetes são vermelhos, com intrincados motivos. De repente, o canto para. Meus vizinhos abrem as palmas das mãos, apoiando-as, viradas para cima, nos joelhos. Uns demoram mais, outros menos, uns movimentam a boca como se falando palavras secretas, outros não, mas todos acabam levando a mão ao rosto e o acariciam, como se o estivessem lavando.

A mesquita Kalon, ao lado do minarete do mesmo nome, tem um imenso pátio e pode receber até dez mil fiéis para as preces de sexta-feira. Uma sexta-feira como esta em que Olivier nos convenceu a adentrar seus portões e, com o prévio consentimento dos sacerdotes e funcionários, assistir à cerimônia. Não me causou estranhamento ver amplos espaços vazios no salão. São áreas reservadas às pessoas que ainda não se recuperaram dos efeitos da União Soviética sobre a sua fé. O Islã, a despeito dos gloriosos monumentos em nome de Alá no Uzbequistão, ainda tem que ser absorvido melhor pela população após anos enfrentando a aberta antipatia das autoridades. Isso não significa também que a religião não tem a sua força. Com chuva ou sem chuva, a sexta-feira sempre é um feriado em Bukhara, me dizem moradores.

Os anos de comunismo moldaram a alma desse povo e por isso hoje é difícil acreditar que exista espaço para radicais islâmicos por aqui. É espantoso lembrar que o Talebã floresceu logo ao lado, no Afeganistão, impondo a mais estrita obediência ao Corão.

No pátio, há uma linda árvore, sozinha e alta, emoldurada pelas paredes coloridas dos mosaicos e inscrições estilizadas em árabe. Difícil é o ofício do observador da arquitetura da mística Bukhara: horas se passam, e se tem a impressão de que ainda não se viu o suficiente. Os fiéis, ainda ajoelhados, levam a cabeça ao chão à frente deles três vezes, e depois se levantam. Muitos, jovens e velhos, se reúnem em grupos para uma conversa em voz bem alta lá mesmo. Outros, como eu e meus amigos, seguem para a saída, onde saudamos o imã, antes de mergulhar em um chá vespertino.

Chá e conversa fiada, o esporte nacional. Em rodinhas de pessoas agachadas. Já havia percebido o hábito dos uzbeques em Tashkent, quando descobri, para meu espanto, um casal de jovens - a menina linda, com um vestido rosa deslumbrante e uma flor na mão, e o jovem de blazer e cabelo bem alinhado - namorando num parque, os dois de cócoras. Eles ficam horas assim. Alguns almoçam também nessa posição: compram um churrasco desses à venda nas ruas e, com ele num pratinho, caminham para baixo de uma árvore. Lá, agachados, o devoram. Fiz um experimento, e depois de ficar dois minutos agachado, minhas pernas passaram a doer horrivelmente. Quando me levantei em seguida, tive tonturas. Este povo parece ter um gene a mais que os protege de tais efeitos colaterais. Talvez seja o mesmo gene que permite que eles bebam tanto chá. Como observou em Bukhara Ryszard Kapucinsky, em 1967:

A essa hora as casas de chá estão cheias de uzbeques de cócoras com seus turbantes coloridos na cabeça. Bebem um chá verde. Bebem por horas a fio, muitas vezes ali permanecem o dia todo. Muito agradável esse tipo de vida passada num tapetinho à sombra de árvores entre os companheiros mais chegados. Sentei na grama e pedi um bule.
- Ryzard Kapucinsky, Imperium, 1993

Meu chá foi na Labi-Haus, um dos pontos mais inevitáveis do centro antigo: uma pracinha de altas amoreiras ao redor de uma piscina pública. À beira da água, restaurantes para turistas, e, cercando os restaurantes e a piscina, lindas madrassas desativadas. A piscina de pedra foi construída em 1620, e a água é marrom, mas limpa o suficiente para atrair dezenas de crianças em dias de calor. Antigamente, cerca de 200 piscinas como a da Labi-Haus adornavam o coração da cidade velha. Mas o governo soviético acreditava que elas eram focos de doenças e as drenaram, deixando poucas, sendo a da Labi-Haus a principal. A medida afastou pássaros, exterminou rãs e mosquitos e mudou o clima na cidade, tornando o ar mais seco. Apesar das mudanças, a Labi-Haus permanece agradavelmente igual. Mesmo os restaurantes para turistas não afastaram os locais, especialmente os mais velhos. Há os que se reúnem para jogar dominó, como nas praças de cidadezinhas do interior do Brasil. Uma atmosfera imutável de tranqüilidade. Chove e é sexta-feira, assim, a paz é ainda mais acentuada. À beira da piscinas estamos só nós e mais um grupo de turistas.

Hoje, muitos usam Labi-Haus para designar tanto a praça quanto a própria piscina. O nome significa "ao redor da piscina" em tadjique, uma língua semelhante ao persa falado em Bukhara desde os tempos em que a cidade era a gloriosa capital da dinastia persa samanida, no século X. Na verdade, os tadjiques reivindicam o controle sobre a cidade, e correspondem a uma minoria significativa da população de Bukhara até hoje. Muitos até mesmo relutam em se identificar como tadjiques. Seus bisavós provavelmente não viam nenhum problema nisso, mas nos tempos das URSS os tadjiques do Uzbequistão foram descobrindo que era melhor para eles se identificarem como uzbeques para ter mais chances no mercado de trabalho local e não serem marginalizados. Muitos falam tadjique em casa, não na rua. Por outro lado, há aqueles que não temiam, nem temem, o preconceito por não se identificarem como uzbeques no país dos uzbeques, arquitetado artificialmente pelos soviéticos.

À tarde, depois que a chuva passou, eu e Jean-Marie fomos conhecer o bairro judeu de Bukhara. A ancestral capital dos samanidas tem uma área identificada há séculos com a comunidade, com ruas estreitas e estrelas de Davi, em que o comércio sempre foi a principal atividade econômica. Trata-se de uma das comunidades de judeus mais isoladas, mais antigas e mais teimosas do planeta. Sua fé sobreviveu não só a União Soviética e a então perseguição à prática religiosa, como também a "febre de religião" pós-queda do comunismo, na qual o Islã foi "redescoberto" pelos cidadãos de Bukhara, reconquistando o coração de quase todos os que buscavam uma religião.

O labirinto de ruelas começa bem ao lado da Labi-Haus e logo descobrimos que estávamos perdidos em uma vizinhança pobre - e sem nenhum tipo de lojinha ou mercearia. Passamos em frente a uma porta em que uma jovem de aparentemente 24 anos nos abordou, sorridente, falando uma ou outra palavra de inglês misturada com russo. Tinha pele morena e cabelo longo, castanho, e usava um vestido branco, azul e rosa, mas muito sujo. Sua pele também estava suja - seu rosto estava coberto de um pó negro que parecia com o que se acumula no rosto de mineiros de carvão. Perguntei se ela sabia onde ficava a sinagoga. Ela disse, para nosso espanto, que era judia e quis nos mostrar uma coisa em sua casa.

Entramos. O lugar estava abarrotado de restos de brinquedos de plástico verdes e vermelhos, espalhados pelo chão. Quatro crianças se espremiam numa salinha num canto, vendo uma TV velha, em branco e preto, mal-sintonizada. Não só a mulher e as crianças pareciam cobertas de sujeira: as paredes também, tudo tinha a mesma cor enegrecida, de fuligem. Não havia móveis, nem sequer uma mesa. A garota se ausentou brevemente e nos trouxe dois livros caindo aos pedaços que guardava em algum cômodo escondido: eram cartilhas para o aprendizado de hebraico. "Você sabe ler? Falar?", perguntei. "Sei ler um pouco. Há uma escola aqui perto, na sinagoga. Havia muita gente aqui que falava, mas eles foram indo embora. Eu levo vocês à escola", disse ela.

No caminho, um vento forte soprou trazendo muita areia, vinda não sei de onde, e nós praticamente tivemos que andar com os olhos fechados. Perguntei à garota se era de Bukhara mesmo, ou se havia vindo de outro lugar. "Sou tadjique", disse, com um sorriso. "Sou judia, tadjique e moro aqui." Um ser único, pensei. Ela me explicou que a vida estava muito difícil para os judeus na cidade, e que a maioria havia optado por imigrar para Israel. Resignada, ela mesmo deu a entender que gostaria de fazer isso, mas não faz por um motivo bem evidente, a falta de dinheiro. "Vocês não se importam de me dar uns trocados por levar vocês à sinagoga? Não tenho como alimentar meus sobrinhos", disse, falando das crianças que encontramos na casa.

Pouco depois, chegamos à sinagora e sua escola: um complexo de salas ao redor de um pátio aberto, não muito grande, no qual entramos por uma porta que trazia algo escrito em hebraico. O lugar parecia abandonado. A garota nos conduziu por um corredor até a sala de aula principal, coberta. Entre livros velhos em prateleiras, uma foto emoldurada e pendurada na parede mostrando o mais ilustre visitante do local: a ex-primeira-dama americana Hillary Clinton. Com uma máscara de batom e pó de arroz, rugas de expressão bem marcadas ao redor dos olhos e da boca, eis na foto a mulher do então homem mais poderoso do mundo, o que podia mudar tudo, o onipresente. Em seguida, apareceu o rabino - materializou-se do nada, do ar, e só me cumprimentou depois que a garota explicou quem éramos. Muito diferente do rabino que sempre se imagina. Sem barba, óculos grossos. Não o vi sorrir e, depois que balbuciou três palavras para me saudar, sentou-se num canto para não mais abrir a boca. Manteve a mesma expressão facial permanentemente. Eu não conseguia ver para onde ele olhava por trás daqueles seus óculos de lentes sujas. Estava lá e lá deve estar até agora. Vendo o tempo passar. Sem nada para dizer. Sem nada para viver.

Com a chuva voltando e acabando com o que restava do ânimo de Jean-Marie, deixei-o com Olivier perto da Labi-Haus e fui passear longe dali, na cidade nova, para longe dos sonhos samanidas, para perto dos sonhos camaradas. Como Tashkent, a cidade tem uma clara divisão entre o que é antigo, persa, tadjique, uzbeque, e o que é russo, erguido nos tempos do czar ou nos tempos da URSS.

Fui caminhando, saí da cidade velha, e logo o lado soviético mostrou sua face mais agressiva, na forma de usinas e fábricas desativadas, enferrujadas e desmoronantes, imensas, com suas chaminés-torres. Segui uma grande avenida moscovita de quatro pistas e encontrei, no caminho, em meio de um conjunto habitacional, os restos de uma mesquita antiga. Fiquei curioso com o prédio deslocado, num local improvável. Quis ver seu interior, e o simpático zelador me deixou entrar.

Nada de muito interessante dentro, tudo desfigurado, horrivelmente remodelado, coberto por tinta e gesso. O local bem poderia ter sido um depósito de armas nos tempos soviéticos. Contudo, se por um lado o interior me frustrou, por outro o papo valeu a pena. Mesmo sem eu entender metade do que o zelador me disse, nem ele metade do que eu lhe disse, senti um carinho dele por este brasileiro, vindo de tão longe, que quis conhecer uma mesquita que ninguém quer conhecer. Sem querer, nem pedir, por causa da minha pura curiosidade, me tornei seu velho amigo. E ficamos lado a lado, por agradáveis minutos, vendo pontinhas do sol se pondo entre as nuvens no horizonte. Iluminando o minarete da mesquita perdida e deformada, tesouro improvável, longe e perto de mim.

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Wednesday, 8 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (VI)

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Este post faz descrições da cidade de Bukhara em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Bukhara, 05/06/2003

O sol nas cúpulas azuis da madrassa Mir-i-Arab. Fiquei sentado na praça em frente à colossal estrutura, desviando meu rosto dos raios de sol que, refletindo nos azulejos da cor do céu, cismavam em me perseguir. Tentava seguir com os olhos, a cada minuto, cada um dos detalhes do magnífico portal. As misteriosas inscrições em caligrafia árabe, como cobras; um tijolo; as cores de um mosaico. Os olhos buscam, desesperadamente, a simetria. Mas só depois de ver e rever os detalhes é que o todo começa a se desenhar numa harmonia perfeita. Um caleidoscópio de pedra, construído no século XVI.

Havíamos chegado a Bukhara às 6h da manhã, como previsto. Minha cabeça doía de tantas vezes que bateu na janela do carro e do ônibus. Não consegui, obviamente, dormir direito. A chuva fraca perseguiu nosso caminho em praticamente toda a extensão da viagem de Urgench a Bukhara. Ao longe, raios de tempestade violentíssimos iluminavam o deserto, árvore nenhuma bloqueava a visão branca azulada. Nos curtos momentos sem raios, a escuridão era interrompida pelos bloqueios policiais. Dezenas, não lembro quantos, em toda a extensão da estrada. Os policiais, até que bastante educados, pedindo o meu passaporte e o de meus amigos franceses, levando-os para uma cabine ao lado das cancelas, checando-os sob uma luz fraca que parecia emanar de um lampião, e trazendo-os de volta. Não imagino quem seria imprudente a ponto de viajar nesta terra sem os documentos em dia.

Entrar no proibido Turquestão sem documentos? Eu preferia fazer uma visita ao diabo e sua sogra no inferno.
- Gustav Krist, Alone in the Forbidden Land, 1937

Herança soviética? Provavelmente sim, mas não apenas. Parece que sempre foi e será difícil viajar por aqui. Se não são os papéis, é a língua. Se não é a língua, é a distância. Se não é a distância, é o medo.

Depois de vários bloqueios, percebi uma interjeição de claro descontentamento do motorista de nosso táxi, usando seu inseparável chapéu uzbeque. Devia ser umas três da manhã. Meus colegas franceses pareciam cochilar, mas não seria por muito mais tempo. A temperatura do motor do Mercedes-Benz começara a aumentar e continuou aumentando. Em breve, o motorista estaria parando no acostamento. Não estava chovendo naquele momento, mas os raios continuavam no horizonte. Iluminado pela eletricidade do céu e pelos faróis do seu carro, ele vasculhava o motor e tentava desesperadamente decifrar qual era a frescura que estava paralisando o veículo, que claramente não visitava um mecânico desde o milênio passado. Saí do veículo para tentar saber dele se estava tudo bem, mas minha habilidade linguística em russo só me permitiu perguntar: "bom?". Pergunta idiota. "Não bom!", respondeu, com uma súbita raiva voltada contra mim.

Sem chance de prosseguir viagem. O motorista então tentou arrancar de nós o preço total que havia sido combinado pela corrida até Bukhara, ainda que ele fosse nos deixar numa milagrosa tendinha que encontramos na estrada (no Uzbequistão não há Ranchos da Pamonha à beira das rodovias). Entendi seu ponto de vista, afinal, já devíamos ter viajado muito, e ele estava agora à mercê das intempéries, esperando que algum mecânico aparecesse, tudo por ter aceitado nossa oferta para nos levar. Mas só lhe pagamos a metade. E perguntamos como faríamos para chegar a Bukhara. "Um ônibus, logo", disse, com cara de poucos amigos. Nós rimos muito, um riso nervoso de completo desconsolo, quando praticamente em seguida o tal coletivo parou a nosso lado. Muita coincidência, não sorte: sorte teria sido se tivéssemos chegado a Bukhara com aquele taxista e seu carro.

O ônibus foi uma experiência... interessante. Estava aos pedaços. Só havia exatamente três poltronas vagas, todas separadas, e nas três era meio difícil se sentar. A que eu escolhi, por exemplo, ficava atrás de uma que reclinava quase 180 graus, estava quebrada. Meus joelhos permaneceram longas horas sem ser irrigados por sangue, e quando eu me mexia, o pobre coitado da frente acordava e resmungava. Aí, o meu fluxo de sangue era cortado nas coxas. Depois, me mexendo de novo, na virilha. E, depois, de novo no joelho. Ao meu lado, um sujeito o tempo todo acabava com a cabeça no meu ombro, roncando. Olivier e Jean-Marie não estavam em situação melhor.

Tirando o desconforto, tivemos o privilégio de ser parte da massa. Aqueles rostos de grandes e vermelhas bochechas, olhos puxados, aquelas roupas sociais gastas e aqueles cabelos negros escuros não eram chineses, não eram árabes, não eram turcos, não eram persas. Eram tudo isso, eram únicos, eram diferentes de nós. Tão inequivocamente distantes de nós, europeus ou americanos. Quantos milênios de gerações teríamos que voltar atrás para encontrar um ancestral comum entre eu e o sujeito com a cabeça no meu ombro? O desconforto sugeria uma ironia. Diferentes como água e vinho, agora nos comportávamos como irmãos, dormindo colados por absoluta falta de espaço.

O sol nascente nos sorriu no céu azul, e dezenas de taxistas nos sorriram também. Fomos desembarcados na estrada, na entrada de Bukhara, ainda longe da cidade em si. Estávamos arrebentados e fomos impiedosamente cercados pelos taxistas ao descer do ônibus. Todos nos falavam ao mesmo tempo, como despertadores ruidosos. Queriam negociar conosco a tarifa para que nos levassem até o hotel onde iríamos ficar. Queriam dinheiro fácil. Eu não tinha cabeça para tentar falar com eles. Em acordo com meus colegas, decidimos abandonar as frustrantes negociações por mímica e nos entregar ao motorista mais velho - geralmente esses são os mais honestos - e, dependendo da distância percorrida pelo táxi, pagar o que achássemos justo. Pagamos mil sums, ele queria três mil, mas não reclamou demais. Finalmente, camas para nós. E, horas depois, o sol nas cúpulas azuis da madrassa Mir-i-Arab.


* * *

A importância de Bukhara para o mundo muçulmano não pode ser menosprezada. Em seu auge, nos séculos IX e X, a cidade chegou a ser chamada de "pilar do Islã" e tinha nada menos que 113 madrassas, ou seminários islâmicos. Os árabes chegaram à região no início do século VIII, transformando a cidade num dos centros mundiais de educação para o Islã. A dinastia samanida desenvolveu Bukhara e a fez sua capital no século IX, permanecendo aliada ao califado sunita com sede em Bagdá. Nessa época, se tornou um importantíssimo centro de erudição muçulmana.

A origem dos samanidas era persa e, como persas, tinham um apreço grande pela estética de seus prédios. Bukhara e a cor de areia de suas ruas e edificações, suas escolas, suas mesquitas e seus mercados serviram de palco para a vida de algumas das mais importantes figuras da civilização islâmica. Reza a lenda que Avicena, um dos pais da medicina, estudou em Bukhara. Longínqua e misteriosa, perdida no deserto além do Amu Darya, além de quilômetros proibidos para os ocidentais, durante séculos a cidade foi um mito. Como Eldorado ou Shangri-lá. Tão bela foi por obra dos samanidas, que o próprio Genghis Khan, ao arrasar a cidade em 1220, poupou algumas de suas edificações.

Esse não foi o caso da Mir-i-Arab, construída bem depois da saída de Genghis. Entretanto, a madrassa sobreviveu a um opressor igualmente fantasmagórico: Stálin. Depois de ter sido fechada nos anos que se seguiram à implantação do comunismo, foi reaberta pelo próprio líder soviético em 1944, quando ele percebeu que essa seria uma bela forma de obter o apoio dos muçulmanos do centro da Ásia ao seu esforço de guerra. Foi o único centro de formação de acadêmicos muçulmanos que permaneceu funcionando nos tempos soviéticos. Hoje, a Mir-i-Arab continua ativa, ensinando cerca de 250 jovens, e por isso não pode ser visitada por turistas.

Em frente à madrassa, cruzando um largo de pedra, outras duas construções belíssimas, interligadas: a mesquita e o minarete Kalon. O minarete, que reluz em tons beges, é coberto por sucessivas fileiras de padrões geométricos horizontais em terracota, intricados e incomuns. Um desses padrões me pareceu até inspirado em alguma simbologia asteca (curiosos os caminhos da imaginação). O minarete foi construído em 1127 e, nessa época, provavelmente era a estrutura mais alta no mundo islâmico, com seus 48 metros. Sólido, com profundas estruturas, resistiu sem problemas a fortes terremotos e foi um dos prédios poupados por Genghis Khan. Durante 850 anos não precisou de reformas. Mas a chegada dos russos, no final do século XIX, provou ser demais até para uma estrutura dura na queda como o minarete. Os simpáticos soldados russos decidiram usar a torre como alvo para seus canhões, criando inúmeros buracos que depois foram cobertos. As cicatrizes ainda são visíveis na construção.

Bukhara também tem uma forte tradição comercial, principalmente no tocante aos tapetes. Há um estilo de estampa associado à cidade que, aparentemente, é de fácil reconhecimento por especialistas. Trata-se de mais uma prova da profunda relação da cidade com os persas. Os tapetes são negociados nos bazares do centro velho da cidade. São barraquinhas em áreas cobertas, cada uma vendendo uma mercadoria diferente. Há tapetes, há facas, há bules, há chá, há chapéus, há roupas. Os bazares são o que há de mais característico em Bukhara. Em nenhum outro lugar no Uzbequistão a prática da barganha está tão enraizada, é tão venerada. Se barganhar é de fato uma religião para este povo, Bukhara é a Meca dessa religião. Ryszard Kapuscinski não ficou muito impressionado com a Mir-i-Arab, mas foi enfeitiçado pela veia mercantil desta terra quando passou por aqui em 1967, em pleno comunismo.

Em Bukhara, vi ainda uma multidão de coloridos e animados bazares. São bazares antigos, milenares, mas continuamente vivos. Erkin mostrou-me o bazar que Avicena costumava frequentar. Mostrou-me também o bazar onde Ibn Batuta comprava tâmaras. Pequenas lojinhas, barracas, cada qual com o seu número, porque foram nacionalizadas. Segundo Erkin, o uzbeque prefere comprar nos bazares, embora estes vendam mais caro que as lojas. O bazar é tradição, ponto de encontro e conversa, uma segunda casa.
- Ryszard Kapuscinski, Imperium, 1993

A diferença em relação aos tempos soviéticos é que rublos não são mais aceitos, não há mais os números nas barracas e o turista, antes raro, hoje é muito mais comum. Mais do que nunca, os vendedores competem numa corrida para passar a mercadoria mais vagabunda para o visitante mais trouxa. Com mais turistas, há muito mais bugiganga, escória industrializada, até mesmo coisas que não são do centro da Ásia, como aquelas bonecas russas de madeira, as matrioscas (um nacionalista uzbeque talvez ficasse revoltado com tal anacronismo). Todavia, há também coisas de muita qualidade esperando para ser namoradas. Comprei por um bom preço um saco de 100g de um delicioso chá, cujo aroma me deixou estonteado. Cinco ervas diferentes. O vendedor, sorrindo, disse que seu pai já trabalhava fazendo chá. E que suas ervas misturadas são uma tradição do mercado.

De tradição em tradição, há quem diga que esta cidade não mudou muito nos últimos séculos. Pode ter mudado, negociado parte de sua alma por alguns dólares. Mas sinto que há coisas que nem o século XXI poderá roubar da caleidoscópica Bukhara.

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Sunday, 5 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (V)

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Urgench, 04/06/2003

O deserto mudou. Nosso motorista atravessou parte do Kyzylkum sob chuva intensa. No vento que entrava por uma frestinha da janela, um cheiro de terra molhada, uma sensação de estar cortando uma área de cerrado, de estar no coração do Brasil. "Há uns dez anos, tudo isto aqui era deserto", disse o taxista, Isak, com seu inglês beirando o incompreensível. Ainda é deserto, na verdade. Mas Isak se refere ao inusitado da chuva intensa nesta região, dos matos ao redor. Não longe, há plantações de algodão.

Estamos em uma vasta planície, com arbustos e mais arbustos crescendo até perder de vista num solo bege arenoso, de grãos bens finos. De repente, numa reta, surgem no horizonte dois promontórios - um, a um quilômetro, mais alto, e outro, mais à frente e menos elevado. Neles, as ruínas de barro de uma fortaleza e de um palácio, o complexo de Ayaz-Qala. Começaram a ser construídos nos tempos do império kuchano, nos primeiros séculos depois de Cristo. O apogeu do complexo se daria entre os séculos VI e VII. Ruínas, fantasmas da Rota da Seda. Pode-se identificar as paredes do palácio, os corredores. Até que muito bem preservados, dada a antiguidade do conjunto.

Eram duas e meia da tarde. Antes de sair de Khiva, pela manhã, já havia percebido os efeitos dramáticos daquela que é considerada por muitos a maior tragédia ambiental já causada pelo homem. Nas paredes das madrassas de Khiva, nos paralelepípedos que cobrem as ruas e cobrindo a lama seca, uma fina camada de pó branco. É o sal, o sal do Mar de Aral, que ficava a cerca de 300 km a noroeste. O sal que brotou forçado de suas não mais existentes profundezas, que foi levado pelo vento até a Corásmia, contaminando solo, construções, pulmões. Os líderes soviéticos, na sua ânsia de provar a supremacia do mundo coletivizado, vislumbraram a estratégia de transformar boa parte da Ásia Central numa plantação de algodão. Com o fabuloso destino econômico do deserto do Kyzylkum decidido, bastava adaptar toda a região, toda a natureza e sociedade para criar condições perfeitas para a cultura algodoeira. Uma tarefa não muito difícil em um país que resolvia seus problemas com truculência. Veja seu desafio étnico, solucionado com a deportação de milhões de pessoas que pertenciam a minorias para longe de suas terras natais, para que fossem substituídas por russos. Pergunte a um estoniano.

No caso do Uzbequistão, a adaptação tornou necessária a construção dos canais, sugando com avidez a água do rio Amu Darya para as plantações. A arbitrariedade soviética de tornar o deserto do Uzbequistão no maior centro mundial de produção de algodão levou em conta o fato de que a cultura do algodão exige sol e céu azul, mas também exige muita, muita água. Assim ela floresceu no sul dos Estados Unidos, às margens do Mississippi. No Uzbequistão, precisou-se desviar as águas do Amu Darya. E os canais foram construídos em quase toda a sua extensão, desde seu nascimento nas montanhas do Tajiquistão até a foz. E sua foz é o Mar de Aral. Com as obras concluídas sem o menor controle, sem a menor preocupação com suas consequências, o Kyzylkum floresceu e rendeu rublos e glória propagandística ao Kremlin. A água-vida do Amu Darya levou vida para terrenos esquecidos por Deus como o que cerca Ayaz-Qala, mas reduziu o Mar de Aral a uma ferida salgada onde antes prosperavam pescadores e banhistas. Uma ferida salgada varrida por ventos fortíssimos, cercada por vilarejos onde as pessoas não têm o que fazer a não ser imigrar ou testemunhar sua própria extinção. Casas e plantações que estão sendo consumidas pelo sal que estava no fundo do Mar. Barcos com cascos enferrujados jazem semi-enterrados na terra estéril como monumentos à estupidez humana. O sol é violento, corrói a pele como ácido. Cidades pesqueiras como Moynaq, no Uzbequistão, ou Aralsk, no Cazaquistão, se tornaram centros de tuberculose, desidratação, desnutrição, analfabetismo, depressão, suicídio, abortos espontâneos, malformações congênitas. Há gente séria que busca soluções. Uma que foi proposta é criar um longuíssimo aqueduto vindo sul da Rússia, atravessando o Cazaquistão, descarregando no mar moribundo a água que hoje provoca enchentes na Sibéria. Outra é diminuir em um terço o uso da água do Amu Darya usada para irrigação e racionalizar o seu uso. Mas ambas as ideias parecem estar longe de ser implementadas. Entre 1966 e 1993, o Mar de Aral - que originalmente tinha 68 mil km2 - encolheu pela metade e se dividiu em dois. No mar de cima, que fica em território cazaque, foi construído um dique que está impedindo que ele diminua ainda mais. Do lado uzbeque, contudo, até agora nada significativo foi feito.

Muitos turistas vão para o oeste além de Khiva, visitam Moynaq. Eu preferi não ir.


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Foi o primeiro dia cinzento que vi desde que cheguei ao Uzbequistão. Minha preocupação número um era me reabastecer com mantimentos para a longa jornada que eu e meus amigos franceses combinamos iniciar logo à tarde - pegar um ônibus de Urgench, que fica ao lado de Khiva, para a mística Bukhara. Minha preocupação número dois era simplesmente como ser capaz, com eles, de me comunicar. Como saber onde, exatamente, para o ônibus para Bukhara? Como saber quando parte? Quanto custa a passagem? A preocupação número dois, na verdade, era só minha. Afinal, antes de voltar ao albergue no dia anterior, Olivier e Jean-Marie me identificaram como o potencial tradutor deles, elevando a "perfeito" o meu parco russo. Poucos sabem falar russo em Khiva, mas, na ausência de conhecimento das línguas locais, saber russo ainda é melhor que o inglês, especialmente se você for a uma loja comprar uma garrafa de água mineral. Cometi o erro de experimentar meu conhecimento com um vendedor, um homem mais velho e que certamente tinha aprendido a língua nos tempos de Stálin, e ele me deu a garrafa geladinha e barata, como eu havia pedido. Os franceses abriram um grande sorriso. Eu também - nem imaginava a tensão que meu "trabalho" iria me reservar no restante da viagem. Eu, tradutor de russo. Que vontade de rir.

Cruzamos com Isak na saída de Ichon-Qala. Ele estava lá com seu carro esperando por clientes, e ficamos espantados quando ele nos abordou falando inglês e nos oferecendo um panfleto que ele usa para explicar seus serviços para os turistas. Nossa intenção era pedir a ele que nos levasse para a estação de ônibus de Urgench. No caminho para a estação, Isak puxou papo e falou sobre uma misteriosa região com ruínas históricas, na área da fronteira da Corásmia com a República Autônoma de Caracalpaquistão. A tentação era grande demais, para meus amigos e para mim, e concordamos em rachar os US$ 40 do passeio. Antes, porém, pedimos a Isak que nos levasse a algum mercado para comprar filmes para nossas câmeras e água. "Vocês não querem almoçar?" perguntou. "Conheço um bom lugar, acho que vocês vão gostar." Fomos conduzidos a uma bairro não muito longe do centro de Urgench.

Lá encontramos uma casa de chá absolutamente lotada. Fomos os ilustres convidados do aniversário de 83 anos do senhor Ali, um orgulhoso nativo da Corásmia e defensor das tradições locais. O local não tinha nome, nenhuma placa indicava que se tratava de uma casa de chá. Nada, lá, parecia ter sido pensado para turistas e, ao mesmo tempo, tudo correspondia aos mais profundos anseios de um visitante interessado na cultura local. À frente da casa, numa varanda espaçosa, foram colocadas mesas bem baixas tradicionais da Ásia Central, chamadas tapchans, ao redor das quais as pessoas se sentam no chão, ocupando espaços sobre os tapetes coloridos. Do lado de fora da casa, só havia os chamados aksakals - palavra cuja tradução literal é "barbas brancas", usadas para se referir aos homens mais velhos - usando o tradicional chapéu uzbeque, o dope (com quatro lados, preto e com detalhes bordados com linha branca). Quando chegamos, os aksakals estavam devorando juntos, sem garfo e com a mão direita, um pratão coletivo de plov - um dos pratos mais conhecidos do Uzbequistão, um arroz cozido com óleo de algodão e pedaços de carne - , o pão nan, frutas secas diversas e chá, preto e verde. As mulheres estavam separadas, dentro da casa, e também usavam um chapéu tradicional, com a forma do dope, mas branco e dourado, com uma franja de contas amarelas descendo por um dos lados da cabeça. Na frente do restaurante, entre as mesas dos idosos, dois músicos, com instrumentos típicos: uma espécie de pandeiro bem grande e um tipo de banjo.

Mal nos viram, muitos velhos se levantaram e fizeram sinais levando a mão direita à boca, convidando-nos para comer. Com a falta de espaço, improvisaram uma mesa na calçada, do lado de fora do restaurante. Experimentei sem pudor o plov, sem garfo ou colher, e logo Isak me mostrou um pouco da técnica: o certo é amassar um monte de arroz contra uma das paredes do prato de plov, criando um bolinho mais ou menos como uma pequena salsicha, e depois empurrar tudo de uma vez para dentro da boca. Pensei: de repente, não sou mais um brasileiro no Uzbequistão, e sim uma pessoa no Uzbequistão. Não havia espaço para ser tímido, recusar a refeição - a hospitalidade é tão grande que intimida. É como se os uzbeques precisassem mostrar que vivem bem, que sua comida é excelente, que seu povo é alegre, e que eles não precisam de nada do que vem do exterior.

"Gosto de mostrar a minha terra", disse Isak, com seus cerca de 60 anos e olhos brilhantes, amarelecidos, lacrimejantes. "Guio passeios para as ruínas, passeios em Khiva, passeios para o Turcomenistão. Já fui citado até em um guia de turismo", afirmou com orgulho. Ele disse que o passeio mais difícil hoje é o para o Turcomenistão - cuja fronteira é a apenas alguns quilômetros de Khiva e Urgench, mas se tornou fora de alcance para todos, inclusive os uzbeques. "Muitas pessoas aqui têm parentes lá, mas não dá para ir. Além de você esperar por horas no posto de fronteira, com eles revistando tudo, eles cobram US$ 100 se você estiver indo de carro. É um absurdo! Aquela terra toda é nossa. Eu mesmo sou descendente de um dos khans, um dos reis desta terra. E não posso mostrar aos turistas a capital antiga da Corásmia, Konye Urgench, porque fica do lado de lá da fronteira." Mesmo com tanta ligação histórica entre os dois países, uzbeques precisam de visto para ir ao Turcomenistão.

Além de Ayaz-Qala, o passeio depois do almoço nos levou a mais duas ruínas das dezenas de fortalezas que existem a cerca de 50 km ao norte de Urgench. Hoje, elas parecem perdidas no meio do nada. Isak explicou que as construções eram abandonadas e reconstruídas em outro lugar seguindo as mudanças constantes do curso do Amu Darya. Na região há sítios arqueológicos antiquíssimos, de mais de 2 mil anos de idade - testemunhas da importância histórica da Corásmia, um dos berços da civilização.


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Às 19h, de volta a Urgench após a visita às fortalezas, meus amigos e eu decidimos de vez, em vez de pernoitar por lá, encarar um táxi ou ônibus noturno rumo leste para Bukhara, que é alcançada por uma longa estrada que corta o Kyzylkum. Dessa forma, iríamos economizar uma noite de hotel. Ao chegarmos à estação de ônibus, porém, nos disseram que o último ônibus para Bukhara já havia partido. Cercados por taxistas loucos para faturar com nosso rico dinheirinho, conversamos com um deles e fechamos o que nos pareceu ser o melhor negócio - ele iria partir de Urgench conosco às 22h, o que significava que, de acordo com o motorista, estaríamos chegando a Bukhara por volta das 6h. Era tudo o que queríamos e, de quebra, o motorista nos convidou para esperar até a hora da partida na casa dele, desfrutando de um jantar e da maravilhosa hospitalidade.

No início, o arranjo me pareceu de fato excelente. Contudo, foi só eu iniciar meu serviço de tradutor à mesa de jantar, assistindo à TV transmitindo uma novela mexicana, que eu senti que aquele seria o início de uma longa, longa noite. A chuva, com suas idas e vindas, agora estava apertando. No nosso breve caminho pela estrada do centro de Urgench à casa do motorista, havia percebido que as rodovias uzbeques são cheias de buracos, não são iluminadas e têm poucas e semidestruídas placas. O carro era um Mercedes, aparentemente de um modelo da primeira metade dos anos 80, cujos cintos de segurança não funcionavam. O motorista, bastante simpático, parecia cansado à mesa de jantar e até tirou um cochilo, do qual eu tive a missão de resgatá-lo perto da hora da partida. Já no carro, percebi que meu russo não permitiria muito mais diálogo, e que iríamos passar 90% da viagem em silêncio. Estávamos nos lançando numa jornada noturna de 420 km. Oito horas de volante em uma via de péssima qualidade.

Não sei bem o motivo, mas eu estava um pouco nervoso.

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