O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
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Este post faz descrições da cidade de Samarkand em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)
Samarkand, 08/06/2003
O sol das sete e vinte da noite tem uma personalidade instável, mas empresta magia a tudo que ilumina. Incide sobre os mosaicos e os transforma. A cada minuto, a luz se enfraquecendo passa de branca a amarela, de laranja a vermelha, de roxa a azul escura, à cor da noite estrelada. O processo molda o Registan. É como se a cada segundo existisse um novo conjunto de prédios. Os olhos não fecham, e se isso se torna inevitável, qualquer piscada parece demorar demais.
O Registan. Para muitos, o mais perfeito conjunto arquitetônico muçulmano do planeta. O símbolo de Samarkand são essas três madrassas ao redor de uma praça de mais ou menos 100 metros quadrados. Duas das madrassas estão frente a frente, e a terceira está entre elas, fazendo um quadrado incompleto cujo centro é a praça. Cada madrassa tem um alto portal coberto por mosaicos coloridos. Quando é amanhecer, o sol incide diretamente sobre a primeira e mais antiga delas, a madrassa Ulugh Bek, construída em 1420. Quando é meio-dia, o sol fica de frente à madrassa do meio, a Tilla Kari, de 1660. Por fim, no anoitecer, o prisma da luz amarela, laranja, vermelha e roxa é a terceira, a Shar Dor, de 1636. Seus portais têm aproximadamente 30 metros de altura, o suficiente para te deixar com câimbra de olhar para cima.
Por ironia, o Registan não foi obra do sanguinário Tamerlão - que fez de Samarkand sua capital, sua joia mais preciosa, o seu maior legado, seu maior orgulho. Foi obra de seus sucessores, que fizeram valer a frase que Tamerlão ordenou que fosse escrita em um dos portões da cidade: "Se duvidais de nossa potência, contemplai nossa arquitetura".
O vento quente sopra.
Contemplo.
Havíamos chegado a Maracanda (como Alexandre, o Grande, chamava a cidade) por volta das 18h, ao final de quase um dia inteiro dedicado à jornada de ônibus a partir de Bukhara. Embarcamos às 11h da manhã em um veículo de fabricação húngara em estado novamente lastimável, com janelas quebradas, imundo. Acho que o estado do coletivo me chamou mais a atenção desta vez do que quando fizemos a viagem de Urgench a Bukhara, porque daquela vez era de noite e eu estava cansado. Com o dia claro e radiante, percebi como o nosso ônibus estava mal, mas, por incrível que pareça, encontramos outros no caminho ainda piores. Por isso mudei de ideia e comecei a ver a viagem diferentemente: imaginei nosso ônibus como um bólido, novíssimo e ágil, engolindo quilômetros entre duas das principais cidades da Ásia Central.
Estrada monótona, contudo: paisagens rurais, como as do interior do Brasil. Áreas de cultivo de algodão se estendendo por quilômetros, pessoas muito pobres trabalhando a terra, vacas curtidas pelo sol do deserto do Kyzylkum. A imensa quantidade de bloqueios policiais e outdoors com frases do presidente Islam Karimov também foi um lembrete constante de que o Uzbequistão é um país à beira de um ataque de nervos, à beira de uma explosão social. Karimov zela pela triste tradição que se mantém no país mesmo com o fim da URSS - a de que as pessoas não saibam o que não devem saber, e que saibam que está tudo ótimo. Seus cartazes carregam as cores nacionais do país, verde, azul e branco, e, às vezes, sua foto. Estão não apenas nas estradas, mas também em hospitais, mercados, madrassas, prédios históricos e escolas. Em ambientes com estudantes, ele é sempre o grande professor. Suas frases mostram que está preocupado com o fato de que a juventude tem a missão de manter o país no curso glorioso que ele estabeleceu. Curso glorioso: esmolando verbas americanas em troca do estabelecimento de bases militares em seu território. Deixando a tuberculose devastadora tomar a região do moribundo Mar de Aral. Mantendo taxas altíssimas de analfabetismo e domando descontentes com centenas de soldados nas estradas e ruas, com metralhadoras em punho. Prendendo oposicionistas, acusando-os de serem extremistas islâmicos. Os problemas do Uzbequistão não chegam perto dos problemas do Brasil. Mas, se há um ponto em comum, é a qualidade das estradas: esburacadas, sem iluminação, com placas caindo aos pedaços.
* * *
Uma metáfora. Para chegar a Samarkand, a cidade mais evocativa do Centro da Ásia, é preciso vencer, com um avião vindo da Europa e com um ônibus em frangalhos, os quilômetros que separam o Ocidente do Oriente. Que separam o mundo facilmente acessível do remoto, obscuro, aparentemente inalcançável. Quilômetros difíceis, quilômetros cansativos, quilômetros que intimidam - mas quilômetros dourados, cujo resplandecer atravessou séculos de mistério, que não diminuiu depois da morte de Tamerlão, com a decadência da Rota da Seda, com Stálin ou Karimov. Mistério cantado em 1913 pelo poeta britânico James Elroy Flecker, que, curiosamente, nunca esteve em Samarkand, mas foi um dos responsáveis por trazer o fascínio da cidade para o imaginário ocidental:
Não viajamos apenas por viajar,
Ventos quentes alimentam corações em chamas.
Pela luxúria de conhecer o que não deve ser conhecido,
Nós pegamos a estrada dourada para Samarkand.
- Elroy Flecker, The Golden Road to Samarkand, 1913
Décadas depois, assim celebraria a cidade o também britânico Colin Thubron, um dos maiores artífices dos diários de viagem:
Samarkand evoca nenhuma outra cidade da Terra. É um som que rouba o coração. Outras capitais do Islã - Cairo, Damasco, Istambul - brilham com um esplendor acessível, mediterrâneo. Mas Samarkand habita apenas os limiares da geografia. Expressa uma estranheza sem litoral, e foi o trono de um império tão remoto em sua estepe e deserto que apenas tocou a Europa para aterrorizá-la.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia, 1994
Khiva tem cor de barro seco, com sua muralha grandiosa protegendo a herança do império da Corásmia em Ichon-Qala. Bukhara tem a mesma cor, mas também o azul celeste da madrassa Mir-i-Arab ou os mosaicos dos prédios ao redor da Labi-Haus. Samarkand é o estagio final da transição: o azul nas cúpulas se transmuta no multicolorido dos mosaicos e no dourado dos interiores da madrassa Tilla Kari como se tudo fizesse parte do mesmo tecido em degradê. Se Khiva é a cidade dos mercadores de escravos e Bukhara, o "Pilar do Islã" dos persas samanidas, Samarkand é ainda hoje lembrada, incorretamente, como sendo obra apenas de Tamerlão. Samarkand surgiu muito antes dele torná-la sua capital, em 1370. Por volta do século V a.C., já era um centro desenvolvido, cercado por uma muralha. Assim era quando se encontrou com Alexandre, o Grande, em 329 a.C. Pouco sobrou da então Maracanda, ruínas escavadas por arqueólogos, e é difícil imaginar o que pode ter levado Alexandre a ter dito sua frase que, hoje, carrega igual peso histórico e mítico. O conquistador teria dito que "tudo o que ouvi sobre Maracanda é verdade, exceto pelo fato de que é ainda mais bonita do que eu jamais imaginei".
O domínio sucessivo de vários clãs e povos foi encerrado por Genghis Khan no século XIII, mas se o mongol transformou em pó tudo que existia de glorioso em Samarkand até então, foi apenas abrindo espaço para Tamerlão. Os dois foram inegavelmente generais geniais. Numa espetacular seqüência de batalhas que durou nove anos, Tamerlão chegou a controlar, em 1395, o território correspondente hoje ao de Irã, Iraque, Síria, Turquia oriental, a região do Cáucaso e o norte da Índia. Embora tenha seguido o estilo aterrorizante de Genghis Khan ao supervisionar pessoalmente as cidades que conquistava virarem ruínas e as cruéis execuções e pilhagens, duas coisas o diferenciaram bastante de Genghis. A primeira era a sua própria origem - Tamerlão era de uma tribo de origem turca, sedentária, e não mongol, povo essencialmente nômade. Isso pode ter colaborado para que surgisse seu interesse por arquitetura e artes em geral, a segunda diferença entre os dois conquistadores. Se Genghis era um assassino indiscriminado em suas conquistas, o mesmo não pode ser dito de Tamerlão, porque se sabe que ele ao menos poupava da morte os artesãos. Quando os encontrava, mandava-os para Samarkand, para usar os seus talentos na edificação de um tesouro, na forma de cidade, que acreditava que iria imortalizá-lo como o maior de todos os líderes. A duplicidade assassino/mecenas é paradoxal, mas é essa ambivalência a maior definição do que se tornou Samarkand.
Ainda hoje Samarcanda estonteia por sua beleza única e perfeição das formas criadas pelos gênios das artes plásticas. Cada construção era supervisionada por Tamerlão, dotado de um gosto magnífico. Pesava as variações de diferentes ornamentos, atentava para a delicadeza do desenho e limpeza do traço. Em seguida, lançava-se outra vez no sorvedouro de novas expedições, em carnificinas: sangue, fogo, gritos.
- Ryszard Kapuscinski, Imperium, 1993
Muito do que era Samarkand nos tempos de Tamerlão não existe mais. Foi destruído em séculos de guerras posteriores. Além disso, alguns dos prédios mais imponentes da cidade de hoje, como os do Registan, só foram erguidos após sua morte (o mais velho deles, a madrassa Ulugh Bek, por seu neto). Contudo, ao lado do bazar de Samarkand, sobrevive um monumento em ruínas que poderia ter sido o maior orgulho de Tamerlão - ou melhor, de uma de suas esposas, Bibi Khanoum. Trata-se de uma mesquita do século XIV que tem todos os elementos da arquitetura do conquistador - as cúpulas azuis, os mosaicos. A diferença, nesse caso, é que tudo parece ter sido projetado muito maior do que o normal. A cúpula principal, por exemplo, tem 40 metros de altura. Reformado com a ajuda da Unesco, o portal da mesquita, de cerca de 35 metros de altura, é tão colossal que e difícil acreditar que existisse tecnologia e conhecimento suficientes para fazer uma obra dessas há quase 700 anos.
A lenda por trás da mesquita Bibi Khanoum explica a atmosfera de melancolia que se sente ao ver tantos recursos desperdiçados e destruídos numa edificação que teria sido tão grandiosa. A Bibi Khanoum nunca foi terminada. Há paredes que guardam espaços vazios para mosaicos grandiosos, inscrições árabes estilizadas, e o azul celeste de Tamerlão. Mas não há nada - só o vácuo, paredes nuas, cúpulas ocas e etéreas que ecoam o vento e o barulho distante do bazar. Acredita-se que Bibi Khanoum tenha encomendado a construção da gigantesca mesquita, certamente a maior de todo o Uzbequistão e uma das maiores do mundo, como uma surpresa para seu marido, enquanto ele estava viajando, conquistando novas terras. Ela encarregou um arquiteto de projetar a mesquita e lhe explicou o que queria. Durante o processo, quando Bibi ia pessoalmente supervisionar as obras, o arquiteto teria se apaixonado por ela. E quando as obras estavam entrando na reta final, quando só faltavam os detalhes artísticos nas paredes e nos tetos, ele se recusou a continuar. Disse a Bibi que só completaria a obra se ela lhe desse um beijo. E foi atendido. Porém, Tamerlão, ao retornar, descobriu o que havia ocorrido. Não se sabe exatamente que tipo de doloroso castigo o conquistador usou para punir o pobre infeliz, mas certamente o arquiteto não teve muita chance de se explicar. A obra foi então paralisada.
E Bibi, a amada rainha que só queria fazer uma surpresa a seu marido, foi forçada a usar véus pelo resto da vida. Foi enterrada num monumento em frente à mesquita incompleta - e bem longe de Tamerlão, o conquistador que, se for verdade a lenda, foi traído pela arte que tanto protegeu.
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