Wednesday, 8 May 2019

Um Brasileiro no Uzbequistão (VI)

O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
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Este post faz descrições da cidade de Bukhara em 2003. Para um relato mais recente, leia este capítulo do diário Nos Desertos, nas Montanhas (2012)

Bukhara, 05/06/2003

O sol nas cúpulas azuis da madrassa Mir-i-Arab. Fiquei sentado na praça em frente à colossal estrutura, desviando meu rosto dos raios de sol que, refletindo nos azulejos da cor do céu, cismavam em me perseguir. Tentava seguir com os olhos, a cada minuto, cada um dos detalhes do magnífico portal. As misteriosas inscrições em caligrafia árabe, como cobras; um tijolo; as cores de um mosaico. Os olhos buscam, desesperadamente, a simetria. Mas só depois de ver e rever os detalhes é que o todo começa a se desenhar numa harmonia perfeita. Um caleidoscópio de pedra, construído no século XVI.

Havíamos chegado a Bukhara às 6h da manhã, como previsto. Minha cabeça doía de tantas vezes que bateu na janela do carro e do ônibus. Não consegui, obviamente, dormir direito. A chuva fraca perseguiu nosso caminho em praticamente toda a extensão da viagem de Urgench a Bukhara. Ao longe, raios de tempestade violentíssimos iluminavam o deserto, árvore nenhuma bloqueava a visão branca azulada. Nos curtos momentos sem raios, a escuridão era interrompida pelos bloqueios policiais. Dezenas, não lembro quantos, em toda a extensão da estrada. Os policiais, até que bastante educados, pedindo o meu passaporte e o de meus amigos franceses, levando-os para uma cabine ao lado das cancelas, checando-os sob uma luz fraca que parecia emanar de um lampião, e trazendo-os de volta. Não imagino quem seria imprudente a ponto de viajar nesta terra sem os documentos em dia.

Entrar no proibido Turquestão sem documentos? Eu preferia fazer uma visita ao diabo e sua sogra no inferno.
- Gustav Krist, Alone in the Forbidden Land, 1937

Herança soviética? Provavelmente sim, mas não apenas. Parece que sempre foi e será difícil viajar por aqui. Se não são os papéis, é a língua. Se não é a língua, é a distância. Se não é a distância, é o medo.

Depois de vários bloqueios, percebi uma interjeição de claro descontentamento do motorista de nosso táxi, usando seu inseparável chapéu uzbeque. Devia ser umas três da manhã. Meus colegas franceses pareciam cochilar, mas não seria por muito mais tempo. A temperatura do motor do Mercedes-Benz começara a aumentar e continuou aumentando. Em breve, o motorista estaria parando no acostamento. Não estava chovendo naquele momento, mas os raios continuavam no horizonte. Iluminado pela eletricidade do céu e pelos faróis do seu carro, ele vasculhava o motor e tentava desesperadamente decifrar qual era a frescura que estava paralisando o veículo, que claramente não visitava um mecânico desde o milênio passado. Saí do veículo para tentar saber dele se estava tudo bem, mas minha habilidade linguística em russo só me permitiu perguntar: "bom?". Pergunta idiota. "Não bom!", respondeu, com uma súbita raiva voltada contra mim.

Sem chance de prosseguir viagem. O motorista então tentou arrancar de nós o preço total que havia sido combinado pela corrida até Bukhara, ainda que ele fosse nos deixar numa milagrosa tendinha que encontramos na estrada (no Uzbequistão não há Ranchos da Pamonha à beira das rodovias). Entendi seu ponto de vista, afinal, já devíamos ter viajado muito, e ele estava agora à mercê das intempéries, esperando que algum mecânico aparecesse, tudo por ter aceitado nossa oferta para nos levar. Mas só lhe pagamos a metade. E perguntamos como faríamos para chegar a Bukhara. "Um ônibus, logo", disse, com cara de poucos amigos. Nós rimos muito, um riso nervoso de completo desconsolo, quando praticamente em seguida o tal coletivo parou a nosso lado. Muita coincidência, não sorte: sorte teria sido se tivéssemos chegado a Bukhara com aquele taxista e seu carro.

O ônibus foi uma experiência... interessante. Estava aos pedaços. Só havia exatamente três poltronas vagas, todas separadas, e nas três era meio difícil se sentar. A que eu escolhi, por exemplo, ficava atrás de uma que reclinava quase 180 graus, estava quebrada. Meus joelhos permaneceram longas horas sem ser irrigados por sangue, e quando eu me mexia, o pobre coitado da frente acordava e resmungava. Aí, o meu fluxo de sangue era cortado nas coxas. Depois, me mexendo de novo, na virilha. E, depois, de novo no joelho. Ao meu lado, um sujeito o tempo todo acabava com a cabeça no meu ombro, roncando. Olivier e Jean-Marie não estavam em situação melhor.

Tirando o desconforto, tivemos o privilégio de ser parte da massa. Aqueles rostos de grandes e vermelhas bochechas, olhos puxados, aquelas roupas sociais gastas e aqueles cabelos negros escuros não eram chineses, não eram árabes, não eram turcos, não eram persas. Eram tudo isso, eram únicos, eram diferentes de nós. Tão inequivocamente distantes de nós, europeus ou americanos. Quantos milênios de gerações teríamos que voltar atrás para encontrar um ancestral comum entre eu e o sujeito com a cabeça no meu ombro? O desconforto sugeria uma ironia. Diferentes como água e vinho, agora nos comportávamos como irmãos, dormindo colados por absoluta falta de espaço.

O sol nascente nos sorriu no céu azul, e dezenas de taxistas nos sorriram também. Fomos desembarcados na estrada, na entrada de Bukhara, ainda longe da cidade em si. Estávamos arrebentados e fomos impiedosamente cercados pelos taxistas ao descer do ônibus. Todos nos falavam ao mesmo tempo, como despertadores ruidosos. Queriam negociar conosco a tarifa para que nos levassem até o hotel onde iríamos ficar. Queriam dinheiro fácil. Eu não tinha cabeça para tentar falar com eles. Em acordo com meus colegas, decidimos abandonar as frustrantes negociações por mímica e nos entregar ao motorista mais velho - geralmente esses são os mais honestos - e, dependendo da distância percorrida pelo táxi, pagar o que achássemos justo. Pagamos mil sums, ele queria três mil, mas não reclamou demais. Finalmente, camas para nós. E, horas depois, o sol nas cúpulas azuis da madrassa Mir-i-Arab.


* * *

A importância de Bukhara para o mundo muçulmano não pode ser menosprezada. Em seu auge, nos séculos IX e X, a cidade chegou a ser chamada de "pilar do Islã" e tinha nada menos que 113 madrassas, ou seminários islâmicos. Os árabes chegaram à região no início do século VIII, transformando a cidade num dos centros mundiais de educação para o Islã. A dinastia samanida desenvolveu Bukhara e a fez sua capital no século IX, permanecendo aliada ao califado sunita com sede em Bagdá. Nessa época, se tornou um importantíssimo centro de erudição muçulmana.

A origem dos samanidas era persa e, como persas, tinham um apreço grande pela estética de seus prédios. Bukhara e a cor de areia de suas ruas e edificações, suas escolas, suas mesquitas e seus mercados serviram de palco para a vida de algumas das mais importantes figuras da civilização islâmica. Reza a lenda que Avicena, um dos pais da medicina, estudou em Bukhara. Longínqua e misteriosa, perdida no deserto além do Amu Darya, além de quilômetros proibidos para os ocidentais, durante séculos a cidade foi um mito. Como Eldorado ou Shangri-lá. Tão bela foi por obra dos samanidas, que o próprio Genghis Khan, ao arrasar a cidade em 1220, poupou algumas de suas edificações.

Esse não foi o caso da Mir-i-Arab, construída bem depois da saída de Genghis. Entretanto, a madrassa sobreviveu a um opressor igualmente fantasmagórico: Stálin. Depois de ter sido fechada nos anos que se seguiram à implantação do comunismo, foi reaberta pelo próprio líder soviético em 1944, quando ele percebeu que essa seria uma bela forma de obter o apoio dos muçulmanos do centro da Ásia ao seu esforço de guerra. Foi o único centro de formação de acadêmicos muçulmanos que permaneceu funcionando nos tempos soviéticos. Hoje, a Mir-i-Arab continua ativa, ensinando cerca de 250 jovens, e por isso não pode ser visitada por turistas.

Em frente à madrassa, cruzando um largo de pedra, outras duas construções belíssimas, interligadas: a mesquita e o minarete Kalon. O minarete, que reluz em tons beges, é coberto por sucessivas fileiras de padrões geométricos horizontais em terracota, intricados e incomuns. Um desses padrões me pareceu até inspirado em alguma simbologia asteca (curiosos os caminhos da imaginação). O minarete foi construído em 1127 e, nessa época, provavelmente era a estrutura mais alta no mundo islâmico, com seus 48 metros. Sólido, com profundas estruturas, resistiu sem problemas a fortes terremotos e foi um dos prédios poupados por Genghis Khan. Durante 850 anos não precisou de reformas. Mas a chegada dos russos, no final do século XIX, provou ser demais até para uma estrutura dura na queda como o minarete. Os simpáticos soldados russos decidiram usar a torre como alvo para seus canhões, criando inúmeros buracos que depois foram cobertos. As cicatrizes ainda são visíveis na construção.

Bukhara também tem uma forte tradição comercial, principalmente no tocante aos tapetes. Há um estilo de estampa associado à cidade que, aparentemente, é de fácil reconhecimento por especialistas. Trata-se de mais uma prova da profunda relação da cidade com os persas. Os tapetes são negociados nos bazares do centro velho da cidade. São barraquinhas em áreas cobertas, cada uma vendendo uma mercadoria diferente. Há tapetes, há facas, há bules, há chá, há chapéus, há roupas. Os bazares são o que há de mais característico em Bukhara. Em nenhum outro lugar no Uzbequistão a prática da barganha está tão enraizada, é tão venerada. Se barganhar é de fato uma religião para este povo, Bukhara é a Meca dessa religião. Ryszard Kapuscinski não ficou muito impressionado com a Mir-i-Arab, mas foi enfeitiçado pela veia mercantil desta terra quando passou por aqui em 1967, em pleno comunismo.

Em Bukhara, vi ainda uma multidão de coloridos e animados bazares. São bazares antigos, milenares, mas continuamente vivos. Erkin mostrou-me o bazar que Avicena costumava frequentar. Mostrou-me também o bazar onde Ibn Batuta comprava tâmaras. Pequenas lojinhas, barracas, cada qual com o seu número, porque foram nacionalizadas. Segundo Erkin, o uzbeque prefere comprar nos bazares, embora estes vendam mais caro que as lojas. O bazar é tradição, ponto de encontro e conversa, uma segunda casa.
- Ryszard Kapuscinski, Imperium, 1993

A diferença em relação aos tempos soviéticos é que rublos não são mais aceitos, não há mais os números nas barracas e o turista, antes raro, hoje é muito mais comum. Mais do que nunca, os vendedores competem numa corrida para passar a mercadoria mais vagabunda para o visitante mais trouxa. Com mais turistas, há muito mais bugiganga, escória industrializada, até mesmo coisas que não são do centro da Ásia, como aquelas bonecas russas de madeira, as matrioscas (um nacionalista uzbeque talvez ficasse revoltado com tal anacronismo). Todavia, há também coisas de muita qualidade esperando para ser namoradas. Comprei por um bom preço um saco de 100g de um delicioso chá, cujo aroma me deixou estonteado. Cinco ervas diferentes. O vendedor, sorrindo, disse que seu pai já trabalhava fazendo chá. E que suas ervas misturadas são uma tradição do mercado.

De tradição em tradição, há quem diga que esta cidade não mudou muito nos últimos séculos. Pode ter mudado, negociado parte de sua alma por alguns dólares. Mas sinto que há coisas que nem o século XXI poderá roubar da caleidoscópica Bukhara.

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