O que é "Um Brasileiro no Uzbequistão"?
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Urgench, 04/06/2003
O deserto mudou. Nosso motorista atravessou parte do Kyzylkum sob chuva intensa. No vento que entrava por uma frestinha da janela, um cheiro de terra molhada, uma sensação de estar cortando uma área de cerrado, de estar no coração do Brasil. "Há uns dez anos, tudo isto aqui era deserto", disse o taxista, Isak, com seu inglês beirando o incompreensível. Ainda é deserto, na verdade. Mas Isak se refere ao inusitado da chuva intensa nesta região, dos matos ao redor. Não longe, há plantações de algodão.
Estamos em uma vasta planície, com arbustos e mais arbustos crescendo até perder de vista num solo bege arenoso, de grãos bens finos. De repente, numa reta, surgem no horizonte dois promontórios - um, a um quilômetro, mais alto, e outro, mais à frente e menos elevado. Neles, as ruínas de barro de uma fortaleza e de um palácio, o complexo de Ayaz-Qala. Começaram a ser construídos nos tempos do império kuchano, nos primeiros séculos depois de Cristo. O apogeu do complexo se daria entre os séculos VI e VII. Ruínas, fantasmas da Rota da Seda. Pode-se identificar as paredes do palácio, os corredores. Até que muito bem preservados, dada a antiguidade do conjunto.
Eram duas e meia da tarde. Antes de sair de Khiva, pela manhã, já havia percebido os efeitos dramáticos daquela que é considerada por muitos a maior tragédia ambiental já causada pelo homem. Nas paredes das madrassas de Khiva, nos paralelepípedos que cobrem as ruas e cobrindo a lama seca, uma fina camada de pó branco. É o sal, o sal do Mar de Aral, que ficava a cerca de 300 km a noroeste. O sal que brotou forçado de suas não mais existentes profundezas, que foi levado pelo vento até a Corásmia, contaminando solo, construções, pulmões. Os líderes soviéticos, na sua ânsia de provar a supremacia do mundo coletivizado, vislumbraram a estratégia de transformar boa parte da Ásia Central numa plantação de algodão. Com o fabuloso destino econômico do deserto do Kyzylkum decidido, bastava adaptar toda a região, toda a natureza e sociedade para criar condições perfeitas para a cultura algodoeira. Uma tarefa não muito difícil em um país que resolvia seus problemas com truculência. Veja seu desafio étnico, solucionado com a deportação de milhões de pessoas que pertenciam a minorias para longe de suas terras natais, para que fossem substituídas por russos. Pergunte a um estoniano.
No caso do Uzbequistão, a adaptação tornou necessária a construção dos canais, sugando com avidez a água do rio Amu Darya para as plantações. A arbitrariedade soviética de tornar o deserto do Uzbequistão no maior centro mundial de produção de algodão levou em conta o fato de que a cultura do algodão exige sol e céu azul, mas também exige muita, muita água. Assim ela floresceu no sul dos Estados Unidos, às margens do Mississippi. No Uzbequistão, precisou-se desviar as águas do Amu Darya. E os canais foram construídos em quase toda a sua extensão, desde seu nascimento nas montanhas do Tajiquistão até a foz. E sua foz é o Mar de Aral. Com as obras concluídas sem o menor controle, sem a menor preocupação com suas consequências, o Kyzylkum floresceu e rendeu rublos e glória propagandística ao Kremlin. A água-vida do Amu Darya levou vida para terrenos esquecidos por Deus como o que cerca Ayaz-Qala, mas reduziu o Mar de Aral a uma ferida salgada onde antes prosperavam pescadores e banhistas. Uma ferida salgada varrida por ventos fortíssimos, cercada por vilarejos onde as pessoas não têm o que fazer a não ser imigrar ou testemunhar sua própria extinção. Casas e plantações que estão sendo consumidas pelo sal que estava no fundo do Mar. Barcos com cascos enferrujados jazem semi-enterrados na terra estéril como monumentos à estupidez humana. O sol é violento, corrói a pele como ácido. Cidades pesqueiras como Moynaq, no Uzbequistão, ou Aralsk, no Cazaquistão, se tornaram centros de tuberculose, desidratação, desnutrição, analfabetismo, depressão, suicídio, abortos espontâneos, malformações congênitas. Há gente séria que busca soluções. Uma que foi proposta é criar um longuíssimo aqueduto vindo sul da Rússia, atravessando o Cazaquistão, descarregando no mar moribundo a água que hoje provoca enchentes na Sibéria. Outra é diminuir em um terço o uso da água do Amu Darya usada para irrigação e racionalizar o seu uso. Mas ambas as ideias parecem estar longe de ser implementadas. Entre 1966 e 1993, o Mar de Aral - que originalmente tinha 68 mil km2 - encolheu pela metade e se dividiu em dois. No mar de cima, que fica em território cazaque, foi construído um dique que está impedindo que ele diminua ainda mais. Do lado uzbeque, contudo, até agora nada significativo foi feito.
Muitos turistas vão para o oeste além de Khiva, visitam Moynaq. Eu preferi não ir.
* * *
Foi o primeiro dia cinzento que vi desde que cheguei ao Uzbequistão. Minha preocupação número um era me reabastecer com mantimentos para a longa jornada que eu e meus amigos franceses combinamos iniciar logo à tarde - pegar um ônibus de Urgench, que fica ao lado de Khiva, para a mística Bukhara. Minha preocupação número dois era simplesmente como ser capaz, com eles, de me comunicar. Como saber onde, exatamente, para o ônibus para Bukhara? Como saber quando parte? Quanto custa a passagem? A preocupação número dois, na verdade, era só minha. Afinal, antes de voltar ao albergue no dia anterior, Olivier e Jean-Marie me identificaram como o potencial tradutor deles, elevando a "perfeito" o meu parco russo. Poucos sabem falar russo em Khiva, mas, na ausência de conhecimento das línguas locais, saber russo ainda é melhor que o inglês, especialmente se você for a uma loja comprar uma garrafa de água mineral. Cometi o erro de experimentar meu conhecimento com um vendedor, um homem mais velho e que certamente tinha aprendido a língua nos tempos de Stálin, e ele me deu a garrafa geladinha e barata, como eu havia pedido. Os franceses abriram um grande sorriso. Eu também - nem imaginava a tensão que meu "trabalho" iria me reservar no restante da viagem. Eu, tradutor de russo. Que vontade de rir.
Cruzamos com Isak na saída de Ichon-Qala. Ele estava lá com seu carro esperando por clientes, e ficamos espantados quando ele nos abordou falando inglês e nos oferecendo um panfleto que ele usa para explicar seus serviços para os turistas. Nossa intenção era pedir a ele que nos levasse para a estação de ônibus de Urgench. No caminho para a estação, Isak puxou papo e falou sobre uma misteriosa região com ruínas históricas, na área da fronteira da Corásmia com a República Autônoma de Caracalpaquistão. A tentação era grande demais, para meus amigos e para mim, e concordamos em rachar os US$ 40 do passeio. Antes, porém, pedimos a Isak que nos levasse a algum mercado para comprar filmes para nossas câmeras e água. "Vocês não querem almoçar?" perguntou. "Conheço um bom lugar, acho que vocês vão gostar." Fomos conduzidos a uma bairro não muito longe do centro de Urgench.
Lá encontramos uma casa de chá absolutamente lotada. Fomos os ilustres convidados do aniversário de 83 anos do senhor Ali, um orgulhoso nativo da Corásmia e defensor das tradições locais. O local não tinha nome, nenhuma placa indicava que se tratava de uma casa de chá. Nada, lá, parecia ter sido pensado para turistas e, ao mesmo tempo, tudo correspondia aos mais profundos anseios de um visitante interessado na cultura local. À frente da casa, numa varanda espaçosa, foram colocadas mesas bem baixas tradicionais da Ásia Central, chamadas tapchans, ao redor das quais as pessoas se sentam no chão, ocupando espaços sobre os tapetes coloridos. Do lado de fora da casa, só havia os chamados aksakals - palavra cuja tradução literal é "barbas brancas", usadas para se referir aos homens mais velhos - usando o tradicional chapéu uzbeque, o dope (com quatro lados, preto e com detalhes bordados com linha branca). Quando chegamos, os aksakals estavam devorando juntos, sem garfo e com a mão direita, um pratão coletivo de plov - um dos pratos mais conhecidos do Uzbequistão, um arroz cozido com óleo de algodão e pedaços de carne - , o pão nan, frutas secas diversas e chá, preto e verde. As mulheres estavam separadas, dentro da casa, e também usavam um chapéu tradicional, com a forma do dope, mas branco e dourado, com uma franja de contas amarelas descendo por um dos lados da cabeça. Na frente do restaurante, entre as mesas dos idosos, dois músicos, com instrumentos típicos: uma espécie de pandeiro bem grande e um tipo de banjo.
Mal nos viram, muitos velhos se levantaram e fizeram sinais levando a mão direita à boca, convidando-nos para comer. Com a falta de espaço, improvisaram uma mesa na calçada, do lado de fora do restaurante. Experimentei sem pudor o plov, sem garfo ou colher, e logo Isak me mostrou um pouco da técnica: o certo é amassar um monte de arroz contra uma das paredes do prato de plov, criando um bolinho mais ou menos como uma pequena salsicha, e depois empurrar tudo de uma vez para dentro da boca. Pensei: de repente, não sou mais um brasileiro no Uzbequistão, e sim uma pessoa no Uzbequistão. Não havia espaço para ser tímido, recusar a refeição - a hospitalidade é tão grande que intimida. É como se os uzbeques precisassem mostrar que vivem bem, que sua comida é excelente, que seu povo é alegre, e que eles não precisam de nada do que vem do exterior.
"Gosto de mostrar a minha terra", disse Isak, com seus cerca de 60 anos e olhos brilhantes, amarelecidos, lacrimejantes. "Guio passeios para as ruínas, passeios em Khiva, passeios para o Turcomenistão. Já fui citado até em um guia de turismo", afirmou com orgulho. Ele disse que o passeio mais difícil hoje é o para o Turcomenistão - cuja fronteira é a apenas alguns quilômetros de Khiva e Urgench, mas se tornou fora de alcance para todos, inclusive os uzbeques. "Muitas pessoas aqui têm parentes lá, mas não dá para ir. Além de você esperar por horas no posto de fronteira, com eles revistando tudo, eles cobram US$ 100 se você estiver indo de carro. É um absurdo! Aquela terra toda é nossa. Eu mesmo sou descendente de um dos khans, um dos reis desta terra. E não posso mostrar aos turistas a capital antiga da Corásmia, Konye Urgench, porque fica do lado de lá da fronteira." Mesmo com tanta ligação histórica entre os dois países, uzbeques precisam de visto para ir ao Turcomenistão.
Além de Ayaz-Qala, o passeio depois do almoço nos levou a mais duas ruínas das dezenas de fortalezas que existem a cerca de 50 km ao norte de Urgench. Hoje, elas parecem perdidas no meio do nada. Isak explicou que as construções eram abandonadas e reconstruídas em outro lugar seguindo as mudanças constantes do curso do Amu Darya. Na região há sítios arqueológicos antiquíssimos, de mais de 2 mil anos de idade - testemunhas da importância histórica da Corásmia, um dos berços da civilização.
* * *
Às 19h, de volta a Urgench após a visita às fortalezas, meus amigos e eu decidimos de vez, em vez de pernoitar por lá, encarar um táxi ou ônibus noturno rumo leste para Bukhara, que é alcançada por uma longa estrada que corta o Kyzylkum. Dessa forma, iríamos economizar uma noite de hotel. Ao chegarmos à estação de ônibus, porém, nos disseram que o último ônibus para Bukhara já havia partido. Cercados por taxistas loucos para faturar com nosso rico dinheirinho, conversamos com um deles e fechamos o que nos pareceu ser o melhor negócio - ele iria partir de Urgench conosco às 22h, o que significava que, de acordo com o motorista, estaríamos chegando a Bukhara por volta das 6h. Era tudo o que queríamos e, de quebra, o motorista nos convidou para esperar até a hora da partida na casa dele, desfrutando de um jantar e da maravilhosa hospitalidade.
No início, o arranjo me pareceu de fato excelente. Contudo, foi só eu iniciar meu serviço de tradutor à mesa de jantar, assistindo à TV transmitindo uma novela mexicana, que eu senti que aquele seria o início de uma longa, longa noite. A chuva, com suas idas e vindas, agora estava apertando. No nosso breve caminho pela estrada do centro de Urgench à casa do motorista, havia percebido que as rodovias uzbeques são cheias de buracos, não são iluminadas e têm poucas e semidestruídas placas. O carro era um Mercedes, aparentemente de um modelo da primeira metade dos anos 80, cujos cintos de segurança não funcionavam. O motorista, bastante simpático, parecia cansado à mesa de jantar e até tirou um cochilo, do qual eu tive a missão de resgatá-lo perto da hora da partida. Já no carro, percebi que meu russo não permitiria muito mais diálogo, e que iríamos passar 90% da viagem em silêncio. Estávamos nos lançando numa jornada noturna de 420 km. Oito horas de volante em uma via de péssima qualidade.
Não sei bem o motivo, mas eu estava um pouco nervoso.
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