Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Eu senti falta das cúpulas azuis. Das cúpulas cor de céu, magicamente se materializando no deserto, em meio aos arbustos rasteiros, espinhosos. Senti falta das cúpulas azuis que aparecem nestes oásis ao sul das estepes, em prédios ancestrais, monumentos à memória de Tamerlão, um grande conquistador que fez tremer a terra e matou milhões, mas poupou artistas para erguer... cúpulas azuis. Sentado em um monumento moderno e completamente abandonado, com seu concreto estragado por mato e pombas, passo uma hora hipnotizado observando o outro, o principal, que está a aproximadamente 500 metros à minha frente. Fico observando e sendo observado pelo mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi em Turkistan.
Passo uma hora em outro mundo sem sair deste planeta.
O sol é poente. Incide diretamente sobre a fachada de trás do quadrilátero de tijolos cor de barro, decorado por padrões geométricos que se alternam, dançam estáticos. Caligrafia árabe misteriosa e domos celestes.
O sol é branco, depois amarelo, depois laranja, depois vermelho, depois vermelho escuro e por fim púrpura, misturando-se com as sombras da noite. Mas o azul do domo é azul, eternamente azul, azul, azul.
Yassawi nasceu em Sayram e foi educado em Bukhara, onde travou contato com o sufismo. Contudo, ele passou a maior parte da vida em Turkistan, na antiguidade chamada de Yasi (daí o nome Yassawi). Dedicado a seus seguidores, morreu venerado em 1166. Antes mesmo de Tamerlão ordenar a construção do imenso complexo, no final do século XIV, sua tumba já era um local de peregrinação. Imagino que, sem levar em conta a admiração do próprio conquistador pelo mestre sufi, erguer tamanho prédio tenha sido acima de tudo uma manobra de populismo, para mostrar ao povo o quanto o seu monarca valorizava quem comandava a devoção de milhares. Um prédio para sugar um pouco dessa popularidade para si. Mas Tamerlão morreu em 1405 e não chegou a ver concluída a construção. Ninguém chegaria - a fachada principal ficou incompleta e assim permanece. Enquanto os outros lados aparecem gloriosos, cobertos de lindos azulejos como os tesouros em Bukhara e Samarkand, o grande pórtico ficou nu.
Este é um dos grandes tesouros da humanidade. O pórtico é de cair o queixo - calculo que tenha uns 30 metros de altura. Incompleto, ficou com troncos de madeira encravados em si, como espinhos, usados para dar apoio aos construtores que nunca mais voltaram. Buracos nas paredes, deixados pelas estacas que chegaram a ser retiradas, são hoje residência de pássaros. No anoitecer, o local é todo uma orgia de piados e gorjeios, amplificada pela própria forma do portal. O ruído é tão alto que, primeiramente, assusta. Mas isso passa e vira encanto. Ajuda na meditação do observador. Um mantra. Amanhã, veremos como é no amanhecer.
Pelo fato de ser inacabado e tão imenso, o mausoléu me lembrou a mesquita Bibi Khanoum de Samarkand: ambas monstruosidades belíssimas e até hoje esperando ser concluídas, perfeitos monumentos a um conquistador sanguinário que ousou se comparar a Genghis Khan, mas morreu em Otyrar sem terminar sua obra. Arquitetos enxergam no monumento em Turkistan o nascimento do estilo arquitetônico timurida, seus primeiros passos antes dos grandes monumentos em Samarkand. A cúpula central do mausoléu é ainda hoje a maior de tijolos na Ásia Central, com cerca de 18 metros de diâmetro. Sendo o berço do mundo das grandes cúpulas azuis, o mausoléu tem sua importância amplificada muito além do atual Uzbequistão. Chega ao Irã e às cúpulas indescritíveis em Isfahan. E à Índia da dinastia Mughal, dominante do século XVI até a chegada dos britânicos. O fundador da dinastia, Babur, era um descendente de Tamerlão. Assim, existe uma linha direta entre o mausoléu e o próprio Taj Majal, a maior joia da arquitetura mughal.
Há ainda a importância política do monumento. Juntamente com Yassawi, aqui repousam os restos de Ablai Khan (1711-1781), senhor de uma das confederações tribais cazaques e líder da resistência de seu povo contra a invasão dos jungars (os mesmos que destruíram de vez Otyrar). Turkistan foi a capital dos cazaques entre os séculos XVI e XVIII, representando a chama da independência frente não apenas aos jungars, mas aos próprios russos, então em suas primeiras incursões pela Ásia Central. Os russos, invasores então distantes e desconhecidos, cujo avanço depois se mostrou irresistível.
* * *
Cheguei a Turkistan no meio da tarde, com um Sol imenso, para variar. O calor é horroroso, mas só de dia - as noites são frias, beirando os dez graus, perfeito clima de deserto.
A cidade fica perto do Syr Darya, o rio que faz a fronteira natural entre as estepes secas, para o norte, e uma região de povos sedentários, onde era possível praticar a agricultura, que vai pelo sul até o rio Amu Darya. Nessa região fértil entre rios, chamada séculos atrás de Mawarranahr pelos antigos árabes e de Transoxiana pelos gregos ("além do Oxus", que era o nome grego do Amu Darya), se fixaram os uzbeques e tajiques, enquanto que os cazaques se mantiveram nômades, senhores das estepes. Acredita-se que os uzbeques são parentes dos cazaques, portanto, em sua origem, nômades. Na verdade, eram mais que parentes, eram irmãos. Até se separarem pelo Syr Darya.
Um evento crucial no desenvolvimento de novas identidades grupais veio com a conquista uzbeque da Transoxiana em 1501. Os uzbeques se originaram de uma confederação tribal nas regiões orientais da Horda Dourada, ao norte do Mar de Aral. Nos anos 1440 eles começaram a se organizar sob a liderança de um descendente de Genghis Khan, Abul Khayr Khan, e interferir nos assuntos dos descendentes de Tamerlão, a dinastia timurida em Transoxiana. A empreitada exigia um grau maior de centralização de poder e relações mais próximas com as populações sedentárias (de Transoxiana) do que alguns dos seguidores do Khan desejavam. Dois membros da linhagem de Genghis, Karay e Jani Beg, desertaram com seus seguidores e se mudaram para o nordeste (...) Os novos khans passaram a ser chamados "Qazaq" (cazaque), significando renegados ou foras-da-lei.
- Historical Background, em Central Asia in Historical Perspective, Beatrice Manz
Já os tajiques, os sedentários da história, são descendentes longínquos de Alexandre, o Grande, e até hoje falam uma língua persa. São testemunhas de Sogdiana, como era chamada a satrapia (província do império persa, conquistado por Alexandre) entre o Amu Darya e o Syr Darya. Interessante que até mesmo antes da chegada dos uzbeques no século XVI, a relação dos tajiques (chamados ancestralmente de tats ou sarts) com os povos túrquicos nômades que passaram por Transoxiana sempre foi de simbiose - com eles fornecendo aos nômades produtos agrícolas, mercadorias refinadas (artesanato) e serviços que complementavam a vida sem destino pelas estepes e desertos, e os nômades, em troca, oferecendo a eles outros produtos, feitos com o material extraído dos animais de seus rebanhos, como leite, carne e lã. Isso só mostra como a (tentativa de) separação dos soviéticos, colocando os tajiques em seu país próprio, o Tajiquistão, é uma grande aberração histórica. Que permanece até hoje.
Esperava ver o Syr Darya passando pertinho do mausoléu de Yassawi, mas ele permanece invisível em algum canto, com o seu curso alterado com a passagem dos séculos. Entretanto, a simples existência deste prédio colossal nesta região seca e inóspita é prova inegável de que pelo menos algum dia houve a presença próxima de uma grande fonte de água. Nem é preciso ver o rio para notá-lo.
Para meu alívio, o hotel que encontrei aqui superou as minhas expectativas - é muito melhor do que aquele inferno de Shymkent e até, incrível, um pouco mais barato. Fica em uma avenida de trânsito movimentado, próxima ao mausoléu e também a curta distância de dois bons restaurantes. Me dei um laghman de jantar: massa estilo talharim feita sem frescuras, tiras grossas, fresca, com pimentões cozidos e cortados em quadradinhos, carne em cubinhos, cebola em cubinhos. Uma boa salada de tomate e pepinos para acompanhar.
Mais mausoléu amanhã. Agora, sonho com Tamerlão e promessas maravilhosas, incompletas, mas maravilhosas.
Evidentemente que todo planejamento de uma longa viagem tem seus erros - especialmente se você planeja sem nunca ter estado nos lugares que quer visitar. Percebi logo que quatro noites em Shymkent são demais - mas mudar os planos agora daria muito mais trabalho. As cidades cazaques mais próximas de possível interesse, além de Turkistan (que é minha próxima parada), são Kyzylorda, uma antiga capital da República Soviética do Cazaquistão, e Aralsk, às antigas margens do moribundo Mar de Aral. Ambas bem longe, em viagens que exigem continuar pelo deserto até a pele virar couro. Aralsk, por exemplo, está a 12h de viagem de ônibus. Refazendo meus planos, saindo hoje de Shymkent, ganharia dois dias, mas para ir a Aralsk e voltar (já que Shymkent é a saída lógica para a continuação de minha viagem rumo ao Uzbequistão) eu precisaria de três, no mínimo - um para ir, um para voltar e um para ver a cidade. Não compensa. Por outro lado, Kyzylorda, de acordo com tudo o que li e me falaram, igualmente não vale a pena. Seria mais perto, mas também é distante. Poderia fazer nesses dois dias um passeio no parque nacional pelo qual passei no caminho de Taraz até aqui; mas eu não me sinto muito atraído por passar a noite no mato e seria algo caro e difícil de arranjar.
Enfim, de todas essas reflexões surgiu o "dia de folga" em Shymkent e, depois, o outro em Turkistan, antes de cruzar a fronteira uzbeque. Na verdade, eu sou um sortudo - os turistas em geral passam com pressa pelas cidades que visitam. Eu vou ter tempo de degustá-las como deve ser feito, com calma, com apreciação.
Mas o que fazer nesta cidade? Meu livro-guia não diz muito. Shymkent me olhou nos olhos logo de manhã me desafiando a decifrá-la.
(Passar o dia assistindo TV no saguão do hotel? Até me agrada a ideia de descansar um pouco dessa forma, mas, claro, não o dia inteiro. Assistir TV é um mergulho na cultura local. Porém, entender os canais russos com a língua a mil por hora é quase impossível, sem falar nos canais em cazaque. Passar o dia dormindo para recuperar energia? Meio complicado. Eu me arrisco a um ataque cardíaco toda vez que acordo no que é possivelmente o quarto de hotel mais feio da história da humanidade. Ótimo! Tudo me empurra a bater perna por aí.)
Tomo meu café da manhã, queijo, pão com manteiga, presunto, ovo frito, frutas, tudo muito gostoso. E saio sem destino. Caminhar, observar, tirar fotos, aproveitar o tempo bom.
Visitar um museu. O museu regional de Shymkent se prova uma excelente surpresa. Há pouca coisa em inglês, mas esse pouco combinado com as informações do meu guia e meu próprio conhecimento de russo tornaram a hora e meia de visita bem proveitosa e agradável. O andar térreo tem uma parte dedicada à arqueologia muito interessante, com artefatos de vários locais. Claro que aqueles que mais me chamaram a atenção foram os de Otyrar. Vi muito mais tesouros do que naquele infeliz museu na cidadezinha ao lado do sítio arqueológico. No andar de cima, uma série de objetos conta a história de Shymkent desde a época em que era parte do khanato de Kokand (um pequeno reino que existiu nesta região entre os séculos XVIII e XIX) até a independência do Cazaquistão. O período pós-independência, em particular, é fartamente documentado com fotos - um número impressionante de fotos do presidente Nursultan Nazarbayev fazendo tudo: jogando tênis, andando a cavalo, saudando autoridades desconhecidas e conhecidas... como é galante e versátil o pai da pátria! E entre o khanato e Nazarbayev, é claro, muito Lênin e Congressos do PC Soviético.
Volto à ensolarada cidade. As sombras que tanto me atraem, das nogueiras, são perigosas. As nozes estão caindo, toda hora, são pequenos e dolorosos mísseis. Nozes-pecã. Tentei comer uma, não estava muito gostosa, meio verde, talvez, não sei. Também é preciso tomar cuidado com o chão. Há tantas no caminho que é fácil escorregar ou torcer o pé.
Fugindo um pouco do perigo, me escondo no colorido mercado, que ao meu ver não perde em nada em dimensão e variedade de produtos para o de Almaty: grande oferta de frutas e tecidos, lindos, brilhantes, coloridos. Na parte das frutas, sou freado ao passar por uma pilha de morangos em cima de um balcão, em um corredor meio escuro. Os morangos, pequenos, têm um cheiro tão, tão doce e intenso que parece que você está tomando pelo nariz um suco feito com as frutas. O gosto invade a boca, uma experiência de pura sinestesia. Um suco de morango batido no liquidificador, com muito açúcar, bem frio, quase um milk shake, para enfrentar a tarde abafada.
Há muitos vendedores de umas bolinhas feitas de iogurte drenado, bem salgadas, bem duras e secas, chamadas de kurut. Eu já havia comido algo assim e foi no próprio Brasil. Compro um pouquinho só para interagir com os vendedores, um casal de velhinhos, bem velhinhos, com sua mesinha ao lado de um ponto de ônibus, já na parte de fora do mercado. O homem com seu chapéu, a mulher, com seu véu, devem ser bons muçulmanos, enfrentando bravamente o Sol, ano após ano, com a pele curtida, rugas profundas, esperando sem entusiasmo o alívio-castigo do frio do inverno, daqui a alguns meses.
* * *
Para nos despedirmos, Rustem me leva a um bar-restaurante na Kunaev, avenida que concentra uma série de empreendimentos imobiliários de alto padrão em Shymkent, prédios que (me pergunto) devem ter sido projetados para resistir à frequente atividade sísmica daqui.
Pedimos shashliks e uma salada. Eu peço uma cerveja, Rustem, uma (muçulmana) coca-cola. Em poucos minutos de conversa, somos interrompidos pela chegada de um velho amigo de meu anfitrião. Ele nos saúda e se senta à mesa. Diferentemente de Rustem, é gordinho e fala inglês bem ruim. Para ele se comunicar comigo, só com a ajuda do amigo.
Falo de como são abundantes nas ruas os símbolos nacionais cazaques - a bandeira, as cores azul-celeste e amarela da bandeira, o mapa do país, fotos dos monumentos da capital, Astana, as estátuas de heróis e sábios. E como o presidente abraçou essa função de, ele próprio, ser um símbolo nacional, com suas frases estampando outdoors e monumentos, no seu evidente culto de personalidade. Evito o termo "culto de personalidade" na conversa com meus colegas. Me vejo, inconscientemente, poupando meus amigos de críticas a Nazarbayev. Talvez por ainda lembrar da difícil experiência de fazer a pesquisa para minha dissertação de mestrado em Almaty, ao encontrar tantos que não conseguiam expressar qualquer crítica ao líder, por sinceramente gostarem dele ou por medo de cometerem algum "pecado" e terem que pagar por isso. Quis manter a conversa leve com Rustem e seu amigo, sem a menor possibilidade de debate acalorado e de ofensa.
Falo a eles como, para mim, parece que esses símbolos estão ausentes no Brasil. Não que não existam monumentos com ícones nacionais. Não que as cores da bandeira estejam ausentes - durante as Copas do Mundo, muito pelo contrário. Mas, enquanto que no Cazaquistão esses símbolos são proeminentes e martelados constantemente, no Brasil eles parecem ser simplesmente "presumidos" a maior parte do tempo, ou seja, eles aparecem, mas mais espalhados, de forma mais tímida, uma bandeira aqui, outra ali, pessoas usando as camisas da seleção, um velho monumento ignorado acolá. Lanço minha teoria: isso que ocorre no Cazaquistão vem dos tempos soviéticos, quando a simbologia do vermelho, de Lênin e da foice e do martelo era igualmente repetida, como que para reforçar a ideia do domínio totalitário do Estado e para construir uma identidade soviética; e, claro, mais recentemente, a abundância dos símbolos se relaciona à independência cazaque, novamente tem a ver com a ambição de construir uma identidade, mas agora para uma nação após décadas apenas sendo uma das muitas faces do universo soviético.
Rustem concorda e vai além. "Para nós, é muito importante cultivar símbolos próprios. Durante toda a nossa história fomos alvos de impérios vizinhos: ao norte, a Rússia, a leste, a China, ao sul, a Índia, a sudoeste, a Pérsia. Agora podemos ter nossa própria identidade."
Me pergunto até que ponto essa identidade é realmente legítima ou é construída artificialmente. A importância do presidente é algo construído? Ou reflete uma tradição segundo a qual, em momentos da história cazaque, as confederações tribais nômades se unificaram atrás de um único líder? Será que essa tradição não é politicamente explorada por Nazarbayev para se colocar acima de tudo e de todos? Afinal, ele é um homem, sujeito a erros, não um deus.
Os símbolos nacionais, a bandeira, o hino. Para que exatamente eles servem? Dão uma sensação de unidade - de que todos são iguais na medida em que todos são cazaques, vestem as mesmas cores, jogam no mesmo time. No Brasil se vê isso na Copa, na Olimpíada, e é muito bonito. Mas em outros momentos, é pouco, ou quase nada. Quem sabe cantar inteiro, corretamente, o hino nacional? Minha geração ainda teve aulas obrigatórias de Educação Moral e Cívica como parte do ensino fundamental. Eu detestava a matéria. Mas veja: meus amigos cazaques me perguntam o significado da bandeira brasileira e eu, quiçá com um bobo orgulho, explico. Me pergunto se hoje ou no futuro os jovens do Brasil sabem e vão saber explicar o verde-amarelo-azul-e-branco. Talvez não cultivar os símbolos nacionais gere um país "genérico". Sinto isso, que o Brasil só existe na Copa e na Olimpíada. Fora disso, as pessoas convivem sem nem saber o que as fazem cidadãos do mesmo país. Basta a língua? Existe uma etnia "brasileira"?
Talvez os símbolos sejam até prejudiciais. Em um país "genérico", o perigo do nacionalismo, o fanatismo do nacionalismo, têm menos chance de vir à superfície. E já sabemos das guerras tolas travadas em nomes de cores e hinos e etnias.
Está claro que a conversa criou muito mais perguntas na minha cabeça do que respostas. E são perguntas que Rustem e o amigo dele não poderiam responder.
Me despeço de Rustem. Amanhã, volto ao trabalho, continuo minha expedição em busca de mais símbolos nacionais cazaques. Importantes ou não, artificiais ou não, são lindos demais.
Camelos. Camelos em grupos perambulam pelas regiões semidesérticas ao redor de Shymkent, do outro lado da janela da van que me leva à cidadezinha de Shauldir. Os camelos caminham lentamente, mas passam rápido pela minha visão. Também vejo vacas, bodes e cavalos, todos livres, sem cercas, pastando nessa secura imensa. Por aqui, o cenário mudou de novo: não há mais montanhas no horizonte. Poeira, vento, Sol e mais camelos. Assim vai, só isso se vê, no plano, com arbustos rasteiros, verde-beges, até o quase extinto Mar de Aral, no oeste.
Depois de horas falando em inglês com Rustem, meu ouvido voltou a ficar preguiçoso para o russo. E como o russo em Shymkent e arredores é uma espécie em extinção, mesmo quando alguém fala comigo, esse alguém fala mal a língua dos colonizadores. Quem fala são os mais velhos, os educados pelo partido, que não cuidou de eliminar o sotaque. E tudo fica incompreensível. Nunca vivi isso com tanta força. E se eu falasse cazaque? Nem isso seria garantia de que eu entenderia os que viajam comigo na van. Falam em uzbeque. Parecido, mas diferente. Isto é a Ásia Central, mil línguas, mil povos, mas na verdade uma ou duas línguas e povos que nem deveriam ser identificados separadamente. Região difícil de decifrar, quase impenetrável para estrangeiros.
Peguei um táxi do hotel até o terminal de ônibus, onde embarcaria para Shauldir umas 9h30 da manhã. Negociei o preço com o taxista, aceitei, vamos embora. O sujeito fala algo em russo, entendo, depois retruca com algo mais longo que certamente eu não entendo. Peço desculpas, peço para repetir, não entendo. E o sujeito repete gritando, e falando mais rápido, como se estivesse com raiva. Tiro meu chapéu. Falo: sinto muito, muito mesmo, não entendo, realmente; é uma língua muito difícil, falo outras três línguas, mas não falo russo bem. Estou estudando, mas meu russo ainda não é bom. Por outro lado, digo a ele com calma, eu ouço muito bem, então, não adianta gritar. O sujeito entende a mensagem. Falando mais baixo, diz que fala quatro línguas, ressaltando que é mais do que eu. Sinto que ele está dizendo isso para destacar sua superioridade em relação a mim... o invasor. Ecos rancorosos de séculos e séculos de estrangeiros mal-intencionados que para cá vieram.
Talvez por causa da surra de berros, meus ouvidos voltaram ao normal depois de sair do táxi. Negociar o preço da van da rodoviária para Shauldir foi fácil. São uns 150 quilômetros.
Na estrada, a cidadezinha é uma mancha de verde mais escuro nesse vasto verde-bege, às vezes dourado, sempre empoeirado. Perto dela, há plantações de algo que não consigo identificar. Na cidade em si, árvores, aqui e ali, aliviando o Sol de rachar. Um outro táxi me leva do centro da vila, onde desembarquei com a van, para os limites urbanos. Fomos por uma outra estrada pelo mundo rural, pelos pastos e plantações, não a mesma estrada que me trouxe aqui.
De repente, à distância, um monte de terra surge à minha direita. Ele é como uma grande mesa cor cinza-clara, destoando do verde escuro das plantações, emoldurada por arbustos. Uma anomalia geológica? Arqueológica. Um monumento inevitável e praticamente ignorado a uma cidade que inegavelmente mudou todo o destino da humanidade, o motivo de eu estar aqui.
São as ruínas da cidade de Otyrar, uma localidade que, hoje, é apenas um borrão perdido nos livros de história, nos guias de turismo. Para entender o que ela significa, é preciso voltar no tempo até o século XIII. Então Otyrar fazia parte dos domínios de um tirano local, Mohammed, líder do império dos khoresmanshahs. Como incontáveis pequenas dinastias que se sucederam na Ásia Central, os khoresmanshahs eram conhecidos pela brutalidade, pelo orgulho, pela ambição de expansão territorial. Naquela época, quando apenas a Rota da Seda ligava as cidades e trazia notícias de longe, era difícil para um líder como Mohammed saber a ameaça real representada por algum monarca em terras vizinhas. O que chegava pelas caravanas muitas vezes eram fofocas exageradas. Não se sabia ao certo o que era verdade ou ficção quando vinham notícias sobre carnificinas, sobre cidades ricas que, de um dia para o outro, tinham sido aniquiladas por algum novo líder sanguinário. Em 1215, provavelmente já se escutava falar em Otyrar sobre esse império que vinha surgindo no leste, o dos mongóis, e o ataque deles à capital dos chineses. Provavelmente até se falava de Genghis Khan. Mas poucos ou quiçá ninguém naquelas terras distantes dos mongóis poderia imaginar que aquele líder representava tanto perigo aos khorezmanshahs. Especialmente Mohammed.
Em 1217, chegou a Otyrar uma caravana comercial enviada por Genghis Khan - entre 100 e 450 pessoas, de acordo com diferentes fontes. Eles vinham com aparentes boas intenções, sem ameaças. Pretendiam estabelecer os primeiros contatos formais entre os mongóis e os khorezmanshahs. Mas, por algum motivo ainda não inteiramente esclarecido - mas certamente para mandar um recado para os mongóis - o governador de Otyrar, Inalchuk, parente do monarca Mohammed, decidiu prender os enviados do Khan (uma decisão certamente determinada pelo próprio Mohammed). O ultraje levou Genghis a enviar depois, como resposta, mais três representantes à cidade, diplomatas que exigiram que a ordem do governador Inalchuk fosse revertida. A resposta: primeiro os membros da delegação diplomática foram executados. Depois, toda a caravana comercial, cujas riquezas foram devidamente embolsadas pelos seus algozes.
Em vista da injustiça e da frieza do monarca de Otyrar, Genghis ficou, compreensivelmente, furioso. Até então, o foco de seu expansionismo tinha sido a China, cujo território nunca chegou a conquistar por inteiro até a morte. Mas tamanha afronta exigia uma resposta à altura. Ele mobilizou seu exército e se lançou rumo ao oeste.
O que se seguiria, em 1219, seria um massacre quase inimaginável. Rios de sangue. Otyrar foi obliterada em tal escala que demoraria anos para se recuperar. Mohammed, após ver a demolição de suas cidades, fugiu para a Pérsia, onde semanas depois morreria não na glória da batalha, mas de doença. Sua ignorância, sua falta de sabedoria e sua ousadia imprudente provavelmente mudaram a história do mundo porque é bem possível que, caso ele não tivesse assassinado os emissários de Genghis Khan, o líder mongol tivesse continuado a concentrar seus esforços em dominar a poderosa e rica China. Em vez disso, seguindo para o oeste, encontrou uma sucessão de reinos fragmentados, líderes fracos e megalomaníacos, impérios em decadência. Encarando um exército altamente estruturado e com habilidade na arte da guerra, eles foram caindo um a um, à medida que as atrocidades dos mongóis, no seu avanço implacável, chegavam a seus ouvidos. Relatos cada vez mais apavorantes. Relatos que derrubavam mais e mais o moral das pobres tropas que ousavam se colocar no caminho dos cavalos dos invasores.
John Man, em sua biografia do grande Khan, define assim a importância de Otyrar:
Assim começou a nova fase na carreira de Genghis. Até este ponto, a tradição tinha prevalecido. Era parte da herança do líder mongol invadir a China (...), mas nenhum líder nômade, enquanto ainda ligado a seu lar-base, iria premeditadamente iniciar a tarefa de subjugar um império tão distante de casa, ainda mais um que era o poder dominante na Ásia interior. Mas, na visão de Genghis, ele não tinha escolha. Não apenas ele havia sido humilhado como diretamente desafiado; se a ameaça não fosse encarada, ele quase certamente se tornaria uma vítima de um ambicioso xá interessado em expandir sua autoridade às terras da China.
- Genghis Khan, Life, Death and Ressurrection, John Man
Mas não é apenas por ter sido um divisor de águas para Genghis que Otyrar marcou seu nome na história da humanidade. Aproximadamente dois séculos mais tarde, em 1405, morreu aqui um outro conquistador, um que ousou se comparar a Genghis Khan - indo além dele ao conquistar até mesmo partes da Índia. Tamerlão.
Quando duras nevascas urravam ao redor de Otyrar, o enfraquecido imperador foi repentinamente acometido de um resfriado (...) Os esforços do médico não tiveram o efeito desejado. O resfriado se tornou uma febre. O enrugado imperador se contorcia e dava voltas em sua cama, tremendo de frio em um minuto, banhado em suor no seguinte (...) Então os príncipes e as damas, os príncipes e os grandes senhores da corte, os médicos e os assistentes, todos se entregaram à dor e choraram profusamente. O imperador, centro do universo, estava morto.
- Tamerlane, Sword of Islam, Conqueror of the World, Justin Marozzi
Tamerlão estava então reunindo suas tropas com o objetivo de seguir os passos do grande Khan em um avanço sobre a China. Seria maldição o fato de ele ter morrido justamente nesta cidade que trouxe Genghis para o oeste, justamente a caminho da China, o território que o Khan sonhou em dominar por inteiro, mas não conseguiu ainda em vida?
Possivelmente Otyrar impediu que Tamerlão cravasse sua espada na história. É hoje lembrado como um conquistador menor e, o que talvez seja mais revoltante para sua memória, um "antigo monarca uzbeque". Nada comparado com o grande Khan. Mas a imaginação é irresistível. Vale a pergunta - o que teria acontecido, quantos teriam morrido, se Otyrar tivesse poupado Tamerlão?
Pulando no tempo séculos e séculos, hoje é bem difícil fazer algum sentido, juntar a história com o presente, olhando um monte de terra, as ruínas da Otyrar, as ruínas da cidade que mudou o mundo.
Em Shauldir, passei rapidamente por um pequeno e extremamente decepcionante museu, abandonado, sujo, triste, incapaz de explicar a importância dos poucos tesouros que guarda e que foram encontrados em Otyrar-Tobe ("Colina de Otyrar", como chamam por aqui o monte de terra). Na entrada do sítio arqueológico, uma placa mostra o local visto de cima. A área toda deve ser um pouco maior do que a de um campo de futebol. O que se vê é umas dez vezes menor do que a área de Otyrar em seu auge, nos séculos XIII, antes de Genghis, e XVII-XVIII, quando esta região foi dominada pelo último grande império nômade, o dos jungars (um povo originário do que hoje é território chinês e mongol), responsável pelo último suspiro de Otyrar.
Passo a placa. Há uma área coberta, uma área em que foi feita uma escavação (iniciada pelos soviéticos nos anos 60). Lá se vê os restos de uma casa de banhos, um palácio, uma mesquita. Em alguns pontos há tijolos novos - as autoridades provavelmente tentaram reconstruir essas partes, interpretando o que pode aqui ter existido tantos séculos atrás.
Mas em outros pontos da colina não há o mais remoto resquício de trabalho arqueológico. Nada. A terra toma a forma de muros, fundações, salas, antessalas, tudo como se fossem desenhos borrados, visões míopes. Lembrou-me muito as fortalezas perto de Khiva que visitei anos trás, fortalezas perdidas no meio do deserto, sem nenhum cuidado, ruindo. Tudo aqui também está se perdendo, desmoronando, já quase irreconhecível. A cada dia são mais e mais apenas saliências e reentrâncias de terra, bases para o mato crescer, imensos pontos de interrogação sumindo, sendo apagados pela borracha do tempo. Me pergunto - será que há aqui algo ainda para ser escavado? Algum tesouro?
Sujando os sapatos de argila cinza, olho para o chão, para um canto de terra no Sol forte. Cá e lá, pedaços de azul. Cacos de cerâmica. De azulejos pintados de céu. De onde eles vêm? Difícil acreditar que alguém tenha vindo aqui recentemente jogar entulho azul - todo o sítio é cercado, a entrada é controlada. É mais provável pensar que esses pedaços de cerâmica e azulejos estão aqui há muito, muito tempo. Quem sabe, quem sabe, essa cerâmica tenha sido estilhaçada pelos pés de Genghis Khan em pessoa. Ou pelos pés de Tamerlão em pessoa. Pego dois dos cacos. Na palma da minha mão, o esmalte ainda brilhante, refletido a luz solar diretamente sobre os meus olhos. Estou olhando para a história. A história moribunda, mas ainda tentando, quase sem forças, ser contada.
* * *
O taxista me espera. Volto para o carro e nos afastamos de Otyrar-Tobe. Vejo no pasto não muito longe uma linda mesquita ou mausoléu, nem sei direito o que é. Tem uma cúpula dourada. Nos chama. Quando chegamos lá, vejo que é um prédio moderno. Ao lado, porém, há um mausoléu mais antigo. É onde está Arystan Baba, um dos mentores de Khoja Akhmed Yassawi. Yassawi foi sábio muito conhecido e reverenciado, fundador da ordem sufi yassawiyya, homenageado por Tamerlão com um mausoléu gigante na cidade de Turkistan, minha próxima parada nesta viagem. Os sufis têm na Ásia Central alguns de seus monumentos mais notáveis. Em minha primeira visita a Bukhara em 2003 visitei o mausoléu do fundador da que talvez seja a ordem sufi mais influente, a Naqshbandi. Não estou muito longe de Bukhara, mas aqui Tamerlão enalteceu a ordem yassawiyya com tesouros da arquitetura.
Diz a lenda que Arystan Baba foi um companheiro de Maomé e que, certa vez, estava com o Profeta comendo caquis. Uma das frutas estava sempre caindo do prato, e Maomé teve uma revelação. Disse a Arystan: "Este caqui é para Ahmed, que viverá daqui a 400 anos". Arystan disse então que, se Maomé permitisse que ele vivesse por 400 anos, daria a fruta para Ahmed. O longevo Arystan então teve quatro séculos de vida, esperando pelo pupilo especial, a quem entregou o caqui que também atravessou os anos.
Outra lenda diz respeito à construção do próprio mausoléu. Tamerlão quis construir um grande mazar em homenagem a Ahmed Yassawi. Mas teve uma visão - que só deveria fazê-lo se, antes, construísse um para Arystan Baba. Eis como teria surgido o prédio que agora eu estava visitando. Ou não. O mazar, uma elegante construção, chama a atenção por ser bem diferente dos mausoléus simples que vi em Sayram, igualmente belos. Este lembra um pequeno palácio: sólido, compacto, inteiramente de tijolos, com o exterior liso, sem ornamentos. Um grande arco na entrada. No interior, à esquerda, uma porta leva às tumbas de vários "santos" - incluindo, atrás de uma grade metálica, a de Arystan Baba. A câmara da tumba data do século XII, e o restante da construção é bem mais recente, do século XIX, quando um terremoto destruiu a edificação que de fato se acredita que foi erguida por ordens do próprio Tamerlão. Mas mesmo após a construção do século XIX, o mazar foi reconstruído outras vezes, sendo que a mais recente foi em 1971. Ou seja, pouco da estrutura original é ainda visível.
É, claro, um centro de peregrinação. Me sento na pequena antessala, absorvo o silêncio, a escuridão, contrastando com a luz lá fora, a umidade, contrastando com a secura e a poeira ao ar livre. Ao meu redor, várias pessoas fazem o mesmo, parecem ser de diferentes famílias.
Minutos.
Após a reverente prece do zelador do mausoléu, as pessoas se levantam, uma a uma, e vão tocando as tumbas, fazendo pedidos ou entoando mais orações e agradecimentos por graças alcançadas. Em frente à tumba de Arystan Baba, param, acariciam a grade. E se afastam devagar. Avô e avó com o netinho, por exemplo. O avô segura a mãozinha do bebê e o faz tocar a grade.
Novamente, como em Aisha Bibi, sinto uma sensação agradável, santa, de coisas boas que irão acontecer.
* * *
De volta a Shymkent, percebo que não comi nada o dia inteiro. Decido então atacar o meu primeiro shashlik desde o começo desta viagem. Shashlik é como eles chamam por aqui o churrasco em espetinhos. Cubos de carne na brasa. Você pede escolhendo qual carne - frango, vaca ou, o mais comum por aqui, carneiro. Nunca porco, claro, afinal, estamos num país muçulmano. Os cubos de carne vêm no espeto alternados com cubos de gordura pura, torradinha, que viram óleo ao entrar na boca. Para acompanhar, duas canecas previamente congeladas trazendo a deliciosa cerveja local, marca Shimkentskoe Pivo ("cerveja de Shymkent"). Delícia, deslizando pela goela. A carne no espeto é servida em um prato, acompanhada de rodelas de cebola crua. Acabo exagerando na cebola. Vou ficar com um mau hálito insuportável.
Amanhã, dia de folga em Shymkent. Nenhuma viagem prevista. Só aproveitar esta cidade sobre a qual há pouca coisa no meu guia, mas tão agradável, com tantas árvores para proteger do Sol, para se refrescar e respirar. Vou a algum museu e me preparar para as próximas paradas, Turkistan e o Uzbequistão.
Várias batalhas estão sendo travadas no mundo islâmico no momento. Mas nos ex-países soviéticos de maioria muçulmana, tomados por um revivalismo religioso desde o final da URSS, essas batalhas ganham contornos diferentes, que vão muito além da religião. Elas estão marcando a alma dessas nações que estão ainda buscando estabelecer sua identidade, após anos de Homo sovieticus.
Uma das características do Islã no Cazaquistão é a força do sufismo, o lado mais místico dessa religião. O sufismo reúne ordens que buscam, de várias formas (podem ser rezas, cânticos ou mesmo dança), aproximar mais e mais os fiéis a Alá. Há um debate sobre o sufismo no país, uma discussão norteada pela aumento da influência de uma versão mais conservadora do Islã sunita, o wahhabismo - que se propaga mundialmente a partir da Arábia Saudita e que vê problemas no sufismo. Rustem me mostrou como ele e seus compatriotas estão encarando esse processo.
Meu amigo se prontificou a ir comigo a Sayram. Trata-se de um subúrbio de Shymkent, a cerca de 20 km do meu hotel. Sayram, cuja população é majoritariamente uzbeque, é um centro de peregrinação sufi, como fica logo claro pela quantidade de mazars, os mausoléus de "santos" (como o mausoléu de Aisha Bibi perto de Taraz). Esses locais, geralmente modestos, atraem pessoas que lá vão rezar e buscar alguma bênção, fazer pedidos e ficar em silêncio contemplativo. Os locais obviamente não são mesquitas - por aqui, eles são pequenos, às vezes simples cubos com uma arquitetura islâmica pouco refinada, de tijolos, luas crescentes e inscrições em alfabeto árabe, além de, é claro, a tumba do "santo". As pessoas acham que, nesses locais, ficam mais perto do Criador. A lógica é que, ao se aproximarem de uma pessoa iluminada por Alá quando viva, elas irão também receber graças.
Como ocorreu em Aisha Bibi, visitei alguns locais e não senti nada além de uma atmosfera boa de paz e serenidade, uma sensação de calor na alma, de beleza e de amor. Lá encontrei várias pessoas em silêncio, buscando algo invisível. Mas Rustem não vê futuro para esses locais.
Para ele, os inúmeros mausoléus em Sayram em breve vão estar às moscas porque, um dia, todas essas pessoas serão educadas para observar o "verdadeiro" Islã. O "verdadeiro" Islã, lembra ele, não prevê a veneração de "santos". De fato, "santos", no contexto católico do termo, não existem no Islã mais conservador, que prega uma relação muito pessoal e direta entre o fiel e Alá, sem sequer (no caso do sunismo, o ramo majoritário da fé) a existência de um clero. Rustem acredita que muitos dos que visitam os lindos mazars, alguns construídos no século X, rezam para os "santos", não para Alá. Ou seja, para essas pessoas, os "santos" seriam "deuses". "Mas o único Deus é Alá", diz, com uma ponta de desprezo.
Meu amigo continua. Explica o caso de seu próprio irmão, que tem uma visão mais ortodoxa. Enquanto Rustem acredita que os mazars simplesmente vão desaparecer naturalmente à medida que as pessoas conheçam melhor o "verdadeiro" Islã, o irmão, que acabou de voltar da peregrinação a Meca, tem raiva dos sufis porque os sufis, segundo ele, perpetuam uma visão errada do Islã. Seguindo a lógica, eles devem ser ativamente desestimulados e até mesmo combatidos. Os wahhabistas chegam a extremos nessa convicção, cometendo ataques contra seus próprios irmãos de religião e, claro, os "infiéis" que não seguem o Islã.
Com o Sol leve da manhã batendo nas cúpulas de tijolos dos mausoléus, a paz reinando nos floridos jardins, falo a Rustem sobre minha preocupação com o fato de que o sufismo é parte da história e tradição dos cazaques, dos centro-asiáticos em geral, e opino que, por isso, deveria ser preservado. É parte do islã tradicional daqui. Antropólogos identificam nos rituais sufis traços de cerimônias e crenças que antecedem a chegada dos primeiros muçulmanos à região. Além disso, embora rezar para "santos" seja algo errado segundo o Islã mais conservador, questiono se essas pessoas nos mausoléus realmente estão rezando para eles como rezam para Alá. Questiono se não estão fazendo o que se faz por aqui há centenas de anos - buscar, nesses mausoléus, simplesmente inspiração para serem bons muçulmanos, o gostoso calor no coração ou consolo que vem da sensação de estar um pouquinho mais próximos de Alá. Como muitos cristãos, que encontram uma paz meio inexplicável ao visitar uma igreja. Nesse caso, seria errado que os moradores de Sayram visitem os mazars?
Digo: o Islã é lindo em sua diversidade. Do Marrocos às Filipinas, todos buscam Alá, mas com suas variações regionais. A religião islâmica sempre foi flexível, e foi isso justamente que permitiu que ela se expandisse tanto. Mas os conservadores wahhabistas, com o poder do petróleo saudita, espalham uma visão estrita, de leis definitivas e sem discussão. Como se o Corão, assim como a Bíblia, não fosse dado a interpretações. Por serem muitas vezes literais, por desprezarem sábios que dedicaram séculos estudando as sutilezas do Texto, os wahhabistas criaram um dilema existencial em todos os muçulmanos, fomentaram um conflito que agora se traduz em extremismo. Quem está certo, perguntam. Sendo que não há resposta. A pergunta está errada.
Rustem ouve minha argumentação e não parece convencido. Mas, por ora, visita os mazars comigo e observamos, juntos e com respeito, os fiéis. A maioria aparenta ter mais de 50 anos. Alguns levam seus netinhos. Será que esses netinhos levarão seus próprios filhos para visitar estes santuários?
* * *
De volta a Shymkent, Rustem me fala de sua família. A tradição por aqui, vinda do passado em que os cazaques eram todos nômades, é os pais do marido morarem com ele, todos juntos com a esposa e os filhos. A mulher abandona sua primeira família após o casamento. Também é comum os irmãos do marido dividirem o mesmo teto com o casal. Como resultado, as casas geralmente têm muitos moradores - no caso da de Rustem, moram com ele seu pai e sua mãe, sua esposa, o filho do casal, o irmão de Rustem e a cunhada de Rustem. Sete pessoas.
Outra tradição aqui, que mostra novamente a força das famílias em comparação com o que vemos nas sociedades ocidentais, é a regra das sete gerações, o jeti ata, que eu já havia conhecido no meu curto período vivendo em Almaty. Se espera que todas as pessoas no Cazaquistão saibam recitar de cor o nome de seus antepassados da linha paterna até pelo menos a sétima geração anterior - pai, avô paterno, bisavô, daí em diante até a sétima geração. A ideia, nos séculos passados, era permitir aos cazaques saber quem era parente de quem, evitando, assim, casamentos entre membros de sua família estendida. A genealogia também permitia uma clara associação entre a pessoa e os diferentes níveis de organização da sociedade cazaque - nível de família, o nível de clã mais acima e, por fim, o nível de confederação ou horda tribal (jus), unindo uma nação nas vastas estepes vazias. Com a colonização do Império Russo no século XIX, a sovietização no século XX, a ocidentalização após a independência e a urbanização durante todo esses anos, cada vez mais estas tradições vão se erodindo. Já não é tão raro encontrar um cazaque que não saiba direito seu jeti ata.
Por aqui em Shymkent, as tradições cazaques falam bem mais alto do que na grande Almaty. Meu colega confirma. Além de as pessoas não poderem se casar se coincidir algum de seus sete ancestrais da linha paterna, se noiva e noivo forem de religiões diferentes, é ainda mais improvável que as famílias aprovem o casamento. A mesma coisa se forem de etnias diferentes: um uzbeque e uma cazaque, por exemplo. A etnia tem sido um empecilho especialmente entre as elites. Mas, diz Rustem, a religião é uma barreira muito maior. E não é à toa que, com tantos poréns, existam no Cazaquistão tantas histórias de amores trágicos, como a de Aisha Bibi, com fugas, desonras e mortes. E, entre as famílias pobres do interior, pipocam histórias em que o noivo sequestra a mulher para tomá-la como esposa. Casos assim, também no Quirguistão, já ganharam manchetes no Ocidente. Causaram escândalo entre os defensores de direitos humanos.
Rustem se despede de mim. Vai trabalhar e, eu, vou passear pela cidade. Nos restaurantes e bares das ruas sombreadas do centro, a língua cazaque é onipresente. Vinte anos após o fim da URSS, o russo está em extinção: canso de ver cartazes apenas em cazaque, sem tradução para o russo, ainda muito visível em Almaty. Nos bares, frequentemente, o aviso: "vende-se cerveja sem álcool". Mais um sinal da forte influência do Islã.
Uma cidade com uma cara cazaque mais pura, pouca mistura com os russos que aqui tiveram poder tanto tempo, e em que o Islã, com suas cores centro-asiáticas, tão características, ainda sobrevive, ainda que ameaçado.
Com os primeiros raios de sol, seis da manhã, o fiscal do trem bateu na porta do compartimento para avisar sobre a próxima parada. Eu já tinha acordado devido ao aviso do companheiro da cama ao lado. Arrumei tudo rápido e me coloquei à espera que a cidade chegasse, parado em frente a uma porta entre dois vagões. A janela da porta mostrava passando com velocidade, novamente, uma paisagem seca, vazia. As casas de Taraz foram aparecendo, aos poucos, à medida que o lusco-fusco ia dando lugar à nitidez. Mais nitidez, casas surgindo bem perto do trilho, e o trem para.
A tensão da minha saída "na marra" de Almaty ficou para trás, e abraço o otimismo. Penso: nada pode estragar meu humor. Meu guia, guardado num grande bolso na bermuda, diz claramente - em frente à estação de trem há uma parada de ônibus. O ônibus me deixaria exatamente na esquina que é um lugar perfeito para começar um passeio a pé e minha sessão de fotos matinal. Não vejo nuvens no céu. Tudo perfeito. Apesar do frio estranho na barriga.
O ônibus chega logo, o único que para no ponto, e o senhor cobrador não entendeu direito em qual rua eu queria descer. E eu não percebo que ele não entendeu. Ele começa a dirigir, mas me diz para descer logo, não dá uns cinco minutos de jornada. Penso: bom, é uma cidade pequena, se não for aqui, eu me encontro, deve haver alguma indicação, alguma referência. Desço. A esquina de uma avenida com outra. Totalmente vazia. 6h30 da manhã de um domingo.
Não demoro muito para perceber que estou perdido. Não vi nenhum prédio dos que esperava ver, não encontrei placas com os nomes das ruas, a direção das avenidas não batia com o que eu esperava ver na minha bússola. Isso já me acontecera antes, e a minha estratégia já pensada para esses casos, muito previsível, é sair perguntando, para quem eu encontrar, como chegar onde quero. Essa costuma ser uma boa ideia também para fazer um contato bem-humorado com os simpáticos moradores dos locais que visito. Neste caso, imaginei, bastava parar em algum lugar para tomar um café da manhã, comer algo - eu estava morrendo de fome, nada melhor mesmo.
Entretanto, na pacata Taraz, às 6h30 da manhã, ainda mais no que não parecia ser o centro da cidade, não havia uma alma viva. Ao meu redor, só poeira, árvores, casas e nenhum lugar para tomar café.
Andei sem rumo por uma meia hora. Continuei procurando o nome das ruas - e nada, nada, nada. Nenhuma placa indicando o centro ou algum lugar com um nome. Por fim, achei um taxista e mais um grupo de pessoas. O taxista estava em seu ponto, as pessoas, ali ao lado, em um restaurante (que ainda estava fechado; os garçons estavam fazendo limpeza). O taxista me deu uma explicação num russo muito rápido e difícil de compreender. Julguei ter entendido que o centro era bem perto e fácil de chegar, nada que justificasse pegar um táxi. Agradeci e segui meu caminho com as orientações que julguei ter entendido na cabeça. Mas, na saída, um jovem do grupo no restaurante, claramente não um dos garçons, me perguntou em inglês de onde eu era. Respondi, pensando que o sujeito de fato falava um pouco de inglês e poderia me ajudar, confirmando, pelo menos, o que eu havia entendido que o taxista havia dito.
Um grave, grave erro.
O sujeito - um jovem de uns 18 anos - estava ou bêbado ou drogado, ou os dois, e apenas achava que falava inglês. Não falava coisa com coisa. Sobre o lugar para onde eu ia (a rua que eu estava procurando), ele insistiu em saber exatamente o que eu queria ver lá. Eu estava indo para uns mausoléus, mas rapidamente percebi que, se eu falasse, ele ia querer ir comigo, e eu não queria companhia - especialmente não queria a companhia dele, bêbado. Não falei o que ele queria ouvir. Depois, o sujeito me disse que eu deveria ir para esquerda - o que me levaria de volta à estação ferroviária. Depois, o pior, ainda insistindo que queria "me ajudar", exigiu (exigiu) que eu fosse comprar roupas em uma loja que nem tinha aberto (de algum parente, talvez?). Depois disse que ia me chamar um táxi. Tentei explicar que não estava atrás da ajuda dele e só queria seguir as instruções do taxista e ir para o meu destino, a rua que eu buscava, e que eu preferia andar e procurar sozinho. Nada disso - eu ia ser ajudado por ele, sem discussão.
Decidi ignorar e sair andando na direção que o taxista me falou. Ele começou a me seguir. Continuei ignorando. Ele começou a ficar mais ameaçador, falando alto. Em dado momento, ele me alcançou e ficou na minha frente, berrando palavras sem significado nenhum para mim, bem alto.
Fiquei genuinamente com medo. Eu estava sozinho na rua com ele. Eu levava comigo todo meu dinheiro. Estava numa cidade desconhecida, ainda sem saber como chegar em algum lugar. Pensei em voltar, pedir para o taxista me levar, ou pedir ajuda no restaurante. Mas o taxista e o restaurante já tinham ficado bem para trás. Eu precisava de ajuda, e rápido, antes que aquele maluco pulasse no meu pescoço, o que ele parecia prestes a fazer.
Olhos nos olhos, ele gritando a dois metros de mim. Punhos fechados. Espumando pelos cantos da boca.
Olhei rapidamente ao redor. Eu estava em outra esquina. Lá perto, um senhor de meia idade estava varrendo a frente de sua loja fechada. Corri para ele e implorei - nessa altura com o russo ainda mais limitado do que o normal, por causa do nervosismo - para ele me ajudar. Disse que estava sendo perseguido por um bandido. Por um milagre, o senhor entendeu e disse para eu entrar na loja e trancou a porta.
Eu via o bêbado através da vitrine, gritando, cuspindo. Batendo com força no vidro. Dizendo, agora claramente, que o Cazaquistão é dos cazaques.
Passaram-se uns 20 minutos, e o maluco cansou de me esperar e desapareceu de vista. Ainda assim, temi que ele estivesse escondido em algum lugar e que pudesse me ver sair da loja. Pedi ao senhor que me indicasse onde eu poderia tomar café da manhã - de preferência um lugar entre quatro paredes. Mas não havia nenhum. A única coisa que havia era um hotel, do outro lado da rua, para o qual o senhor apontou pela janela. Não pensei duas vezes. Corri até lá. Entrei ofegante.
Mil e quinhentos tenge (cerca de US$ 13). Por essa quantia, entrei em um outro mundo em que eu (desesperadamente) precisava entrar. Era o buffet do hotel. Nada cinco estrelas: apenas garçonetes falando um russo compreensível e bem prestativas, mesas com talheres, pães, frutas, sucos, tudo à vontade, incluído no preço. Apesar de não ser um templo do luxo, era provavelmente era o melhor hotel da cidade. Que paraíso, que paraíso. Fiquei lá uma hora e meia, vendo os hóspedes se deliciarem, escrevendo meu diário, tomando litros de chá e, principalmente, ouvindo os principais sucessos de Julio Iglesias, tocados todos em sequência, repetidamente, baixinho, nos alto-falantes.
* * *
Recuperado do episódio de terror, mergulho na história.
Taraz tem orgulho de séculos. Como muitas cidades da ex-URSS, teve nomes e nomes. Taraz ou Talas (hoje nome de uma cidade vizinha, no Quirguistão) são os mais antigos. No século XIX se chamou Aulie-Ata. Depois, sob os soviéticos, recebeu o nome de um oficial soviético armênio, Mirzoyan, mas esse nome foi trocado quando Stálin, como fez com tantos, o executou durante os expurgos dos anos 30. Passou a se chamar Jambil e o nome persistiu até 1997, quando o presidente Nazarbayev, na sanha de restabelecer a identidade cazaque que antecedera a dominação russo-soviética, reverteu a cidade a seu nome ancestral. É tida como uma das mais velhas cidades do Cazaquistão, quiçá de toda a Ásia Central. O registro mais antigo estabelece que aqui foi construída uma fortaleza de uma confederação de nômades chineses há cerca de dois milênios. De fato, em 2001 a cidade comemorou, com o aval da Unesco, seus dois mil anos de existência.
Seu nome ecoa especialmente devido a talvez uma das batalhas mais importantes da história da Ásia. No ano 751, em algum lugar que não se sabe exatamente onde fica no vale do rio que passa pela cidade e sua vizinha Talas, os exércitos da Dinastia Tang da China e do Califado árabe Abássida se encontraram e cruzaram suas espadas. Historiadores atribuem à derrota dos chineses o fato de o Islã ter se firmado na Ásia Central, ajudando a diminuir a influência chinesa sobre a região.
Refletindo isso, a cidade tem alguns tesouros islâmicos. Visitei dois mausoléus no centro da cidade, o mausoléu Kharakhan e o Dauitbek. O primeiro, uma reconstrução do século 20 de uma estrutura do khanato karakhanida (dinastia que dominou vastas áreas da Ásia Central entre 840 e 1212, fazendo de Taraz uma de suas capitais), guardaria os restos de Kharakhan, ou Aulie-Ata, o mesmo que deu nome à cidade no passado. Aulie-Ata, ou Santo Pai, foi um rei local da dinastia. Seu mausoléu foi construído originalmente entre os séculos XI e XII. O outro teria os restos de um governador mongol local, morto em 1267, e foi reconstruído no século 19. Ambos estavam fechados (não fui capaz de ver se tinham tumbas mesmo) e apresentam fachadas simples, de tijolos. Ambas aparentando terem sido construídos semana passada, tamanho o esmero na reconstrução. Edificações assim são a alma desta terra, são o lembrete do passado e o orgulho de todos. Pena que sejam tão poucas as construções assim em Taraz, e todas estejam tão reconstruídas, tão "atualizadas". Não senti muita coisa nesses mausoléus.
Por outro lado, atrás de um deles há uma mesquita originalmente erguida entre séculos IX a XII, evidentemente também reconstruída depois. Nela, encontrei um mundo, ecos de um passado distante. Tetos baixos de madeira, escuridão, os tapetes macios no chão, apenas um mulá perdido em orações num canto. Lá fora, o Sol das 11h da manhã, já feroz. Dentro, a sombra fresca, quebrada apenas por algumas lâmpadas, aqui e ali.
O jovem mulá, seu rosto com feições quase invisíveis, se vira para mim, propõe uma prece. Eu e uma família que lá estava - mãe, pai, criança de colo - nos calamos, o mulá olha para o teto. Seu árabe flutua no ar, vira uma melodia, se transforma nos ecos.
Meditei por 20 minutos. A reza, meu mantra.
Mais da alma ancestral de Taraz me esperava a 18 km dali, já fora da cidade. Encontrei um ponto de táxi compartilhado e peguei uma estrada que segue em direção a Shymkent, onde eu iria dormir naquela noite. O táxi me deixou num povoado poeirento, sufocado pelo Sol. Uma hora da tarde. Apenas casas muito simples, zona rural. A passos lentos, castigado pela luz, venço uma rua de terra que sai da rodovia. As gotas de suor já caíam da minha testa quando os dois mausoléus que eu procurava aparecem, milagrosamente emoldurados por flores.
A lenda por trás do lindíssimo mausoléu de Aisha Bibi é intimamente ligada à história de Kharakhan, o do mausoléu em Taraz. Há versões diferentes, mas todas trazem a temática universal do amor proibido. Certa vez, no ano de 1080, Kharakhan teria feito uma viagem a Samarkand para se encontrar com o líder local. Lá, se apaixonou por uma linda jovem, Aisha, que por acaso era filha do líder. A paixão foi recíproca, e Kharakhan pediu a mão da menina ao pai, que se recusou a aceitar. Após juras de amor eterno, Kharakhan retornou a Taraz. O tempo passou e, em determinado momento, doente de amor, Aisha decide pedir ao pai mais uma vez que a deixasse se juntar ao seu amado. Com a teimosia do pai em falar não, ela decide fugir, juntamente com sua inseparável dama de companhia, Babaji Khatoun. Após uma longa viagem, já se aproximando de Taraz, a tragédia ocorreu. Aisha foi picada por uma cobra (ou teria sucumbido ao cansaço) e, sentindo sua morte, pediu a Babaji Khatoun que cavalgasse o mais rapidamente possível a Taraz para avisar ao seu amado o ocorrido. Kharakhan correu para o local e teria tido ainda tempo de se casar com Aisha antes da morte da amada. Arrasado, o rei decidiu construir no local um mausoléu para ela. Uma versão da lenda diz que, depois, Kharakhan nunca mais se casou, até a sua morte, com mais de 100 anos.
Mais de 50 padrões geométricos estão representados na fachada de terracota da impressionante edificação, um cubo de uns quatro metros de altura com um teto cônico. É possível perder uma hora apenas olhando cada padrão, admirando o capricho do artesão responsável pelo tesouro. Ao lado, mais simples, mas igualmente elegante, foi erguido o mausoléu de Babaji Khatoun, com seu teto mais trabalhado, como uma rosa dos ventos. Os dois mausoléus, evidentemente restaurados, foram datados como sendo do século XI ou XII. Seus estilos, especialmente o de Aisha Bibi, guardam uma impressionante semelhança com o que talvez seja a mais conhecida edificação da era Samanida, o mausoléu de Ismail Samani em Bukhara, do século X. A fachada com ricos detalhes chama a atenção pela ausência de azulejos ou superfícies coloridas com porcelana, que se tornariam a marca registrada da arquitetura timurida (a das cúpulas de azulejos azuis de Bukhara e Samarkand), a partir do século XIV.
Em toda esta região, o Islã é misturado com tradições locais que antecedem a chegada dos árabes, no século VIII. A reverência a santos, por exemplo, algo que não existe num Islã mais conservador. Várias famílias me acompanham dentro do mausoléu de Aisha Bibi. Elas mostram uma reverência profunda a ela, evidente pelas orações, pelo olhar. Acompanho tudo em silêncio. Após uma prece, o líder da oração, um senhor austero e de barba, se aproxima de mim. Sob a tumba de Aisha, um caixa de pedra em uma plataforma elevada, haviam sido colocados panos simples de algodão branco. Ele me dá um, sem eu pedir. Para dar sorte ao viajante, diz. Sorri para mim.
Uma forte senhora de uns 50 anos, com um véu colorido cobrindo a cabeça e seus dentes de ouro dominando a boca, me pergunta em inglês se sei falar inglês. A senhora logo me cativou com seu carinho. Me perguntou de onde eu vinha, para onde eu ia. Conversamos calmamente e longamente ao sair do mausoléu usando uma bizarra mistura de inglês e russo.
A senhora e uma amiga dela insistem em me levar ao ponto de ônibus, na estrada. No caminho, me falam com imenso afeto de Aisha Bibi, de como a fé as tinha ajudado com problemas de saúde e como a fé iria me ajudar, agora que eu tinha visitado o mausoléu. Disse a elas que pedi à santa que me ajudasse a falar russo, que me desse força na jornada, que me afastasse de encrenqueiros alcoolizados e de problemas de saúde. Que protegesse minha família tão longe, e desse a ela a certeza no coração de que eu estava bem.
Amarrei o pano branco ao redor do pescoço, como se fosse uma echarpe.
Coincidência ou não, logo após fazer isso surgiu na estrada o meu próximo meio de transporte: uma lotação indo para Shymkent - com todos os lugares vazios. O motorista da van, de bigode, suadíssimo, sorriu e me pediu 700 tengue pelas 3 horas de jornada. 700 era quanto eu havia pago de Taraz à cidadezinha do mausoléu de Aisha Bibi, uma distância muito menor. Pulei para dentro.
* * *
"Bem-vindo (ao) Texas" é o que dizia o adesivo colado na parte de trás do ônibus (uma velharia certamente trazida do estado americano) que encontramos na periferia da Shymkent.
O calor continuou imenso, desértico, em todo o caminho, durante o qual o motorista e eu viramos velhos camaradas. Uma pessoa de alto astral e curiosíssima em saber mais sobre meu mundo, como quase todos por aqui. As perguntas foram se desenrolando como de costume, sobre meu estado civil e meu salário, curva após curva. À esquerda, uma reserva natural em algum ponto da fronteira separando o território cazaque do Uzbequistão, nas cercanias de Tashkent.
Em Shymkent, dei mais um passo na minha busca febril pelo pior hotel da Ásia Central. Encontrei um lugar maluco. A entrada do hotel Turist estava parcialmente reformada. O lugar, levando em conta a fachada, parecia bem razoável. Sugeria um três estrelas, talvez quatro, com recepção bem limpa e acabamento de luxo no chão e nas paredes. A suspeita me surgiu ao ver os pontos de infiltração no teto que haviam certamente feito descascar e cair partes da pintura. Conclusão: tratava-se de um hotel da era soviética que estava sendo renovado para os novos tempos.
Pedi um quarto barato, o mais barato, para passar três noites. A senhora cazaque de 50 anos e sobrepeso sorriu secamente, me acompanhou por um corredor escuro, cada vez mais escuro, no andar térreo mesmo. Encontramos uma porta pintada recentemente com um número, 4, escrito à mão com tinta branca. A maçaneta e a fechadura eram ainda velhas. A mulher, forte, custou em abrir a porta. Só com um tranco mesmo.
O quarto era um completo e absoluto show de horrores (veja abaixo um vídeo em inglês em que mostro o lugar). Difícil escolher por onde começar a descrever. O local cheirava a mofo. As paredes estavam todas arranhadas com nomes e dizeres. Pelos cantos, poeira, moscas mortas. Uma cama de solteiro com colchão deformado por décadas de uso. Roupa de cama esburacada. O chão parcialmente coberto por algum tipo de plástico que estava descascando. O armário de madeira completamente gasto, velho, impossível fechar a porta dele sem um calço de papel para prendê-la, com um centímetro de pó por dentro e por fora. Teias de aranha no teto e ao redor da cama. Um buraco com uns 15 centímetros de diâmetro bem ao lado da cama, na parede. Uma janela que dava para um lugar escuro e molhado. Paredes cheias de marcas de mosquitos esmagados. Nenhuma tomada funcionando. No banheiro, vazamentos, azulejos faltando na parede escurecida pelo limo e deixando à mostra a tubulação, mais teias de aranha no teto.
Vários lados positivos, porém. O primeiro - era baratíssimo. Dois mil tenge (aproximadamente US$ 6) por noite com café da manhã incluído e (um incrível) chuveiro quente. Não titubeei. Imaginando que nesta região do país o Turist seria uma excelente base, paguei por quatro noites, de uma vez só, ao fazer o check-in.
Pouco após minha chegada, tive tempo apenas para um banho rápido, e Rustem chegou. Rustem é um morador de Shymkent de uns 30 anos que eu havia conhecido pelo Couchsurfing e de quem rapidamente fiquei amigo, com muitas trocas de mensagens pela internet. Meu plano inicial era ficar em sua casa na cidade, mas ele logo me avisou que infelizmente não seria possível, já que na mesma época ele já estava recebendo parentes em seu lar. Ainda assim, combinamos de nos encontrar, ele prometendo me ajudar a conhecer a cidade. Nos encontramos na recepção do Turist.
Rustem chegou com seu moderníssimo Lexus prata. Fã de carros e de cachorros, ele me cativou com seu sorriso fácil e o grande orgulho de sua Shymkent. Nem muito alto nem baixo, as feições típicas daqui - o meio do caminho entre um turco e um mongol, cabelos pretos, olhos ligeiramente puxados. Havia estudado relações internacionais em Almaty, vivendo lá por dez anos antes de voltar à cidade de origem para trabalhar no negócio de distribuição de salgadinhos e doces da sua família.
Os anos de estudo deixaram uma grande marca em Rustem - além de falar inglês muito bem, fala turco, uzbeque e, é claro, cazaque e russo. Me contou de seu encontro com outros viajantes que conheceu por meio do Couchsurfing e de seu desejo de viajar mais - próximo sonho: Índia. Falamos sobre o mundo, falamos sobre Almaty, falamos sobre Shymkent. Sobre a riqueza de Shymkent, sobre o lado moderno de Shymkent.
Depois de tomarmos um café em um café chique como os que conheci em Almaty, ele foi me mostrar este lado moderno. Cruzamos a noite por umas duas horas - eu, lutando contra o sono. Com seu carrão, acelerava sem dó em algumas amplas avenidas. Me levou a um lindo salão de festas, todo decorado de forma luxuosa, onde muitos casais escolhem fazer suas festas de casamento. Curioso. Fiquei pensando: a festa de casamento é algo tão importante nesta sociedade que, ao apresentar sua cidade a um estrangeiro, o local escolhe me mostrar, com orgulho, um salão de festas preparado para um rega-bofe. Nunca faria isso se alguém viesse a São Paulo e eu fosse o anfitrião.
Gostei do salão, de tudo. Nas ruas, à primeira vista, Shymkent me apareceu decorada com luzes coloridas, cheia de carros, viva, vibrante. Essa Shymkent de Rustem me recebeu rica, me lembrou uma cidade americana. Talvez até uma cidade texana.
As montanhas me cercam. Estão cobertas por uma mistura de altos pinheiros, alguma vegetação rasteira meio marrom e, nas alturas, gelo. O ar é fresco, raspa um pouco as narinas ao entrar no meu corpo. O céu é completamente azul, um azul celeste escuro, sequer uma nuvem à vista. O Sol das 8h50 da manhã embala a subida pela estrada sinuosa, curva após curva, primeiro de táxi, depois, agora, ofegante, a pé.
Meu plano era pagar 5000 tenge (aproximadamente US$ 15) para que um taxista me levasse do hotel ao local mais próximo possível do chamado Grande Lago de Almaty, o centro de um cenário alpino de rara beleza no sul da cidade. Há muito queria conhecer o lago - em abril, com meus colegas de faculdade a meu lado, esbocei me rebelar em uma manhã, jogar para o alto os trabalhos na dissertação de mestrado, e vir para cá. Mas sabia que voltaria à cidade, que haveria uma nova oportunidade. Segundo o guia que levo na mochila, o táxi poderia chegar a até uns sete quilômetros do lago. Eu faria o resto do trajeto a pé e, na volta, faria caminhando todos os 15 quilômetros até o ponto de ônibus mais próximo, o que me permitira voltar ao centro de Almaty e, assim, embarcar no trem noturno para o oeste.
Levantei-me bem cedo (de novo, após uma noite atormentado por mosquitos). O relógio tocou às 6h30, e às 7h40 eu estava na rua. Em uma esquina menos movimentada, comecei a acenar para todos os carros que passavam - na Ásia Central, qualquer carro é um potencial táxi, basta negociar com quem se interessar em parar. O primeiro que abaixou a janela disse que não conhecia o lago ou simplesmente não quis se esforçar para entender meu sotaque. O segundo, um jovem simpático, com um carro compacto branco, disse logo que também não sabia onde o tal lago ficava, mas ficou curioso com meu pedido - senti que ele ficou na verdade inconformado com o fato de morar na cidade e não conhecer um lugar turístico. Contei a ele tudo o que eu sabia, até mostrei o mapa que tinha em inglês. Finalmente, ficou convencido e topou a viagem por 3000 tenge. Achei uma pechincha! Teria 2000 de lucro em cima do que eu previa e comemorei silenciosamente. Porém, eu estava inseguro - me perguntava se o sujeito realmente ia conseguir achar o caminho e chegar lá.
Passando por uma grande avenida, ele falou com vários amigos por um rádio comunicador do carro e com o irmão dele, pelo celular. Fomos conversando sobre futebol e sobre falar línguas estrangeiras. Me distraí e, quando percebi, estávamos em uma área com verde dos dois lados, com as montanhas altas se aproximando rapidamente à minha frente. Nem vi a transição entre urbano e rural, de tão entretido com a conversa. Reconheci a bifurcação descrita em meu guia, pegamos à esquerda. Abaixei o para-sol para proteger meus olhos da luz. O carro foi seguindo paralelo a um rio raso, subindo em direção às montanhas nevadas.
Meu guia estava desatualizado, e isso ficou claro logo. Em vez do que ele descrevia que viria a seguir, uma estrada que acabava e virava uma trilha, encontramos asfalto o caminho inteiro, praticamente até o lago, lá no alto. Foram curvas e curvas com os pinheiros ao redor, o ar ficando mais frio, aos poucos mais agradável do que no bafo do centro da cidade, e, depois, progressivamente cortante como gelo. Chegou um ponto em que as curvas nos conduziram até uma cancela que impediam o carro de prosseguir. Foi um longo caminho, talvez uma hora; estávamos bem no alto. Eu acabei me afeiçoando do motorista, uma pessoa extremamente simpática, não só um taxista, mas um companheiro de viagem instantâneo. Lhe dei afinal 1000 tenge (US$ 3) a mais do que o combinado. Ele pareceu genuinamente feliz de ter conhecido um lugar tão lindo, com as árvores e a vista da estrada descendo pelas montanhas. Até pediu para que eu tirasse uma foto dele com esse panorama - prontamente eu a enviei a ele por bluetooth, conectando nossos celulares.
A pequena, mas cansativa caminhada a seguir foi perfeita para criar mais expectativas. Não cruzei com nenhum outro humano. O tempo estava perfeito. O vento parou, e eu só ouvia meus passos no asfalto e a minha respiração. A mais alta montanha nevada, ainda distante, se aproximava, lá em cima. Fui vencendo o aclive, às vezes suave, às vezes mais forte.
Após uma hora, eis. O lago, no alto, a 2500 metros de altitude, com uma área, calculo, de cerca de um quilômetro quadrado. O corpo d'água não era transparente como me falaram. Era verde, mas um verde esbranquiçado, leitoso. Não consegui entender ao certo o porquê do branco - o local parecia limpíssimo, apenas árvores e montanhas altas ao redor. Fui recebido por uma família de picos ao redor - pico Turist (3954 metros), pico Sovetov (4317 metros) e outros, arranhando o azul. Um deles, bem à minha frente, com o topo nevado gerando um ruidoso regato de degelo, alimentando o lago. A água era tão gelada que não consegui manter minha mão dentro dela por mais de 30 segundos.
Circundei o lago e fui até o lado oposto ao que tinha chegado, até o ponto mais próximo do pico à minha frente, que imaginei se tratar to pico Turist. Cheguei a um ponto além do qual uma placa informava que era proibido acampar: trata-se de zona de fronteira. Um pouco mais além, aproximadamente uns cinco quilômetros, o Quirguistão, e seguindo nessa direção, o lago Issyk-Kul. Mapas mostram uma estrada atravessando as montanhas, cruzando a fronteira internacional. Por aqui se fazia antigamente a hoje proibida caminhada até as bandas de Cholpon-Ata. Deveria ser sensacional.
Cochilei, caminhei ao redor, fiz piquenique, admirei um local inteiramente para mim. Os vestígios humanos que encontrei foram algumas poucas casas e uma carcaça de carro, estranhamente deixada à beira do lago, enferrujando. Lembrei-me do filme Na Natureza Selvagem (2007) e do veículo abandonado onde o protagonista acabou indo morar e morreu. Me imaginei morando aqui, caçando alguma fauna local e pescando o que for possível pescar no degelo esbranquiçado. Nada mal viver isolado por aqui, nada mal esquecer as agruras do mundo com o Sol como companheiro. Eternos desvarios do viajante, que sabe que no fundo não pode se desvencilhar da civilização porque, em última análise, é ele, o viajante, a civilização. O lago e as montanhas poderão viver muito felizes sozinhos. Provavelmente mais felizes do que em qualquer companhia.
Duas horas depois, estava voltando. O caminho do lago até a parada de ônibus parecia ser ainda mais longo do que eu calculara, "apenas 15 quilômetros." Ou simplesmente eu não havia imaginado o que seria caminhar "apenas" essa distância, a preguiça que tomaria conta de mim. Lá pelo terceiro quilômetro, ainda descendo pela estrada rodeada de pinheiros, já decidi arriscar com meu polegar.
Dei sorte. Tive que esperar apenas três carros passarem até que um parasse. Não negociei o preço, já calculei que 1000 tengue (aproximadamente US$ 3) até o ponto fosse justo. Mas, quando desci do carro, o motorista nem quis saber de receber o dinheiro e foi embora! Uma jornada gratuita que, contando a curta espera pelo ônibus, me trouxe de volta a Almaty pontualmente à uma da tarde.
Eu planejava pegar dois ônibus na sequência para voltar ao centro. Mas quando desci do primeiro, vi um parque. Um parque diferente. Sua entrada era um portal grandioso, triunfal, com colunas altas e a inscrição, no alto: "Parque do Primeiro Presidente do Cazaquistão". Referência, claro, a Nursultan Nazarbayev, o atual presidente. Imaginei o que fosse ver lá dentro.
Evidentemente, o parque é lindo - uma excelente propaganda. Logo na entrada, uma grande fonte, em manutenção e portanto vazia, só com o concreto de suas paredes tripudiando dos visitantes - o calor e o Sol estavam de rachar. Mais à frente, uma estátua do grande líder, com dizeres imortalizados em granito. Desde abril eu coçava a cabeça, sem entender por que não havia estátuas do reverenciado Nazarbayev por toda parte. Até no monumento do centro de Almaty onde as pessoas fazem fila para tocar um molde feito no formato da mão do presidente, o que se vê é um baixo-relevo com a imagem dele, e só. Por outro lado, são abundantes cartazes com fotos e frases do grande líder. Mas finalmente encontrei uma estátua, a primeira e única que já vi de Narabayev. Quando ele morrer, fico pensando em que tipo de homenagem vão lhe fazer. Mais estátuas como esta? Quem sabe uma de 20 metros de altura em Astana, a capital do país?
Voltei em seguida ao hotel para mais um lance de sorte, além do parque, do taxista simpático, da carona na volta. Eu havia esquecido no quarto um colar que uso faz quase 20 anos. Mesmo acreditando que a camareira já houvesse se apossado dele, voltei para ver se por acaso eu estava errado. Estava. Ela o guardou e me entregou de volta. Fiquei tão feliz que, sem pensar, abracei a camareira. Coitada, primeiramente ficou tão sem jeito que me senti mal - um sorriso constrangido, tímido, seu olhar no chão. Mas logo, logo se contagiou comigo. O sorriso se tornou largo, bonito. Eis as pequenas coisas que fazem a alegria do viajante.
* * *
Já era quase noite quando chegou a hora de dizer adeus a Almaty e à minha sorte. Como que por vingança pela minha partida, a cidade quase me matou do coração.
Minha noite seria passada num trem, em um leito, a caminho de Taraz, onde eu chegaria às 6h30. Nunca havia viajado de trem na antiga União Soviética, então achei que essa era uma boa oportunidade. Comprei tudo com antecedência, quando ainda estava na Inglaterra, pela internet. Tudo parecia ter corrido bem no meu computador na distante Europa, mas eu imaginava que os burocratas neosoviéticos pudessem me causar problemas. Por isso procurei chegar cedo à estação - cheguei às 18h50, e o trem sairia às 19h37. Tentei me precaver como pude - fiz fotocópias de todos os meus documentos, visto, passaporte. O que poderia dar errado? Tratava-se de uma simples viagem doméstica, algo como ir de São Paulo para o Rio.
O problema foi que minha passagem, o papel que eu tinha, não era uma passagem, era um comprovante de compra que teoricamente viria com um número que eu teria que digitar em uma máquina dentro da estação para que, aí sim, a máquina imprimisse minha passagem. Até ai, tudo bem (demorei um pouco para descobrir o que estava acontecendo, me surpreendi, mas não fiquei nervoso, pensei que simplesmente bastava digitar na máquina e tirar minha passagem). Mas o número havia saído incompleto na impressão que eu tinha, provavelmente por causa de algum problema na impressora.
Pedi ajuda a uma funcionária da estação. "Esse problema é seu", disse ela, "tentando" ajudar. Faltando 30 minutos para o trem sair, saí à caça de um internet-café por perto para tentar descobrir o número online. Achei um que estava fechando (o dono quase não me deixou entrar). Na internet, descobri que só entrando no site da companhia de trens eu poderia recuperar o número. Mas o site exigia uma senha que eles haviam me dado e que, é claro, eu havia esquecido, julgando que não precisaria mais entrar no site. No calor do início da noite, ainda uns 28 graus, eu suava horrorosamente naquele internet-café, sozinho, com a pressão do dono para eu acabar logo minha navegação e a pressão do trem prestes a sair. Tentei lembrar da senha. Tentei uma vez. Duas. Três.
Na terceira, que alívio. Acertei a senha, consegui o número da passagem. Voltei correndo para a estação, imprimi o bilhete. Estava quase desmaiando de sede e fui comprar uma garrafa d'água para a viagem - fui expulso de um supermercado porque não podia entrar com minha mochila, depois achei um vendedor do lado de fora da estação e nem pensei no troco ao agarrar a garrafa e dar o dinheiro a ele. Aí, fui procurar a plataforma. Qual plataforma? Uma tremenda confusão nos letreiros. Fui direto para as plataformas perguntar aos fiscais qual era meu trem. Descobri. E qual o vagão? Não conseguia pensar muito bem, ainda menos em cirílico. Os fiscais conversam calmamente entre si - "Ele vai neste vagão? Olha na passagem dele. Não, vai naquele vagão!". Me conduzem ao certo. Ah! Finalmente...
E quando coloco o pé na escada do vagão, prestes a soltar o derradeiro suspiro de alívio, um outro fiscal me para. Pede o passaporte. Dou a ele a cópia xerox do passaporte e do visto, os papéis que sempre carrego no bolso. Sempre é suficiente. Não, não, neste caso o fiscal quer e exige o passaporte original (mesmo para uma viagem doméstica). O documento está num cinto com um bolso que carrego entre a cueca e a calça, juntamente com o grosso do meu dinheiro. Abaixo a calça, fico seminu na frente dele, acabo sem querer mostrando a ele todo o dinheiro que tenho para a viagem, torço para o burocrata não beliscar meus dólares. Ele me devolve o passaporte. Entro. Estou ofegante e suado, inteiramente molhado, gotejando, dos pés a cabeça.
Encontro minha cama. A de baixo à esquerda em um quarto com duas beliches. Lá fora, está quase escuro. Almaty realmente não queria que eu fosse embora.
* * *
Estranho e interessante passar a noite em um trem. Só havia feito isso duas vezes. Uma aos 13 anos, com meu pai, em um trem em algum ponto do Pantanal sul-mato-grossense. Depois, lá pelos meus 22 anos, entre Copenhague e Amsterdã, quando eu era um estudante cruzando a Europa tão sem dinheiro que precisei economizar a acomodação passando uma noite em trânsito. Mas, nos dois casos, eu dormi em uma poltrona, nunca em um leito.
Dividi o quarto com outros três cazaques. Nenhum falava uma palavra de inglês. Meu medo de que eles pudessem ser um risco à minha segurança se dissipou rapidamente logo quando conversei com um deles. Muito simpáticos, os três eram do oeste - dois deles de Aktau, o outro de uma cidade próxima. Como tantas vezes já me aconteceu na Ásia Central, acharam estranhíssimo o fato de eu não ser casado com mais de 30 anos, e uns bons 15 minutos de conversa foram dedicados ao assunto "esposas". Dois deles disseram ter mais de uma esposa (um deles, duas, o outro, três, tudo permitido para muçulmanos como eles). O terceiro, mais jovem, tinha "namoradas" - uma em Almaty e outra em sua cidade. Com naturalidade, argumentavam que a mulher não deveria trabalhar fora, o homem, sim. O homem muçulmano, disseram, tem a função de sustentar as esposas. Em troca, tem que ser paparicado em casa - "ser tratado como um leão macho, enquanto as leoas lhe trazem alimentos".
O trem, em si, foi uma alegria para mim por ser vintage. Certamente construído na era soviética, pelo que pude ver no interior. Me lembrou os vagões do metrô de Moscou. Calculei que aquele onde eu estava tinha entre 30 e 40 anos. As paredes internas eram revestidas de fórmica, copiando madeira. As maçanetas e seguradores, todos metálicos, foscos, gastos. Janelas fechadas. Tudo parecendo velho, mas bem preservado e consertado várias vezes durante as décadas.
Dormir foi desconfortável, principalmente porque meus companheiros de compartimento em nenhum momento pararam de falar, e rir, e bem alto, conversando entre eles ou no celular, provavelmente com as muitas esposas. Não achei boa ideia estragar o alto astral com meus pedidos de silêncio. E, na verdade, eu estava tão arrebentado que acabei dormindo mesmo com o barulho.
Acordei 6h30 com um dos companheiros batendo na madeira ao lado do meu rosto. Próxima parada: Taraz.