O que é "Novas Fronteiras"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior deste diário
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Clique aqui para ver um mapa da viagem
Este texto narra uma visita ao Turcomenistão em 2018, quando o presidente do país era Gurbanguly Berdimuhamedow. Desde 2022 o presidente é seu filho, Serdar Berdimuhamedow. A mudança de líder, porém, não representou nenhuma mudança no regime do país, que segue sendo um dos mais fechados do mundo. Para um resumo das mudanças no Turcomenistão desde esta viagem, clique aqui para ler o prefácio deste diário.
30/8/2018
Hoje me despedi de F, meu companheiro de viagem espanhol, que voou logo de manhãzinha para Hong Kong, onde mora, e de T, nosso simpático motorista, que, apesar de só falar russo comigo, e mal, talvez no mesmo nível que eu, me fez dar boas risadas e me permitiu ver um pouco da realidade deste estranho país sob a ótica dos que devem se ajoelhar, todo dia, à frente das esquisitices do regime.
Sozinho novamente. Não fiquei triste. Fiquei empolgado, maravilhado pela oportunidade de circular pela capital até o fim da viagem, daqui a dois dias, completamente livre e sem companhia — com exceção dos policiais de olho em mim.
Peguei um ônibus comum, de linha, o mesmo usado pelas pessoas que vivem aqui para se deslocar pela cidade. Meu objetivo, hoje, foi conhecer o Museu de História, que fica um pouco longe do centro, perto da fronteira da cidade com o deserto, em uma zona de prédios especialmente reluzentes, deslumbrantemente brancos. Me chamou a atenção o preço da tarifa: meio manat, o que, na taxa oficial (3,5 manats por dólar) seria alguma coisa, mas, no câmbio negro (16 manats por dólar), é simplesmente nada. Também impressionou o ônibus, confortável, em ótimo estado, parecendo novo. Talvez coloquem esses coletivos exemplares no centro justamente para ficarem bem à vista dos visitantes eventuais. Atrás do motorista, em um local bem visível a todos, mais uma vez uma foto do presidente. Pela janela, na rua, outdoors com a foto do presidente. Continua todo dia a mesma sensação, em Mary, Ashgabat ou onde for: basta ficar de olhos abertos e Berdimuhamedow aparece sorridente.
O ônibus passou ao lado de um complexo imenso, uma "cidade olímpica", não muito longe do palácio presidencial. Não foi construída para uma Olimpíada — um evento cuja dimensão talvez justificasse se dedicar uma parte tão grande do centro da capital a ele —, mas sim para uma competição menor, os Jogos Asiáticos de Esportes em Recinto Coberto e Artes Marciais de 2017. Trata-se de um evento que inclui vários esportes não-olímpicos, refletindo os gostos dos aficionados asiáticos. Entre os esportes representados nos jogos, por exemplo, estavam xadrez, boliche e bilhar. Com o conhecido isolamento do país, os jogos de 2017 foram muito celebrados e promovidos pelo governo como forma de indicar que o Turcomenistão estava mudando, estava mais aberto e integrado ao resto do planeta. Evidentemente, o governo fez o possível e o impossível para causar boa impressão, usando a competição como ferramenta de soft power, mostrando o país como moderno e capaz de organizar com eficiência um grande evento internacional. Foram gastos cerca de US$ 5 bilhões na construção da fantásticas instalações esportivas. Os arquitetos com a bênção do governo, talvez os homens mais felizes deste país, tiveram um vasto playground, tendo entre suas missões projetar um novo estádio com capacidade para 45 mil pessoas e um centro de hipismo. No quadro de medalhas final, os anfitriões, muito longe de serem uma potência esportiva, garantiram o primeiro lugar com 74 medalhas de ouro, 32 a mais que o segundo colocado, a China. Participaram pelo Turcomenistão 496 atletas, quase o dobro do número que o segundo país a mais mandar mais representantes (Tailândia, 246).
O evento é mantido muito vivo com iluminação forte, luzes piscantes e, claro, muito mármore branco. Vejo no seu perímetro externo um telão que mostra em looping um lindo vídeo proclamando a celebração dos jogos "ASHGABAT 2017". Estamos na segunda metade de 2018. Ashgabat é futurista, mas parou no passado.
Todo esse luxo, além de ser uma mensagem para os atletas visitantes, deveria inspirar os cidadãos a se orgulhar da cidade maravilhosa que têm. Porém, no ônibus, ao passarmos ao lado do complexo, a maioria esmagadora dos passageiros olha para baixo. Para o celular, para um livro, para o próprio colo. Ou fecham os olhos, com fones de ouvido, ouvindo música. Parecem estar cansados, esgotados. Na verdade, eu próprio sou algo muito mais interessante para os moradores da cidade do que qualquer construção monumental.
Levei um susto. "O que achou de Ashgabat?", me perguntou em russo, de sopetão, um senhor idoso, ao meu lado, com tom jovial e lúdico na voz, sem sequer introdução ou qualquer saudação, mostrando como é fácil perceber que não sou daqui. Em outros países da Ásia Central, essa geralmente nunca é a primeira pergunta que me fazem. A primeira costuma ser, claro, de onde sou. Mas, no Turcomenistão, esta já é a segunda vez que uma pessoa me aborda pedindo primeiramente para saber o que vejo ao meu redor.
"Ah!", respondi com um sorriso. "Gostei muito. É uma cidade muito interessante." É uma resposta sincera. Ashgabat pode ser muitas coisas, mas, para um estrangeiro, é possivelmente impossível que ela não seja interessante.
O cidadão suspirou. Sem meu incentivo (não pela primeira vez isso me acontece por aqui), simplesmente abriu o coração, com a invulnerabilidade que a idade lhe permitia. "Ganhamos muito pouco", disse, olhando pela janela, não para mim. "O salário não dá para nada. Por mês, ganhamos uns US$ 40, US$ 50. Só se você trabalha para o governo ganha mais." Pausa. "Mas o que podemos fazer?"
Então passou a olhar para mim. "Em outros países, temos a opção de imigrar. Ir viver em outro país. Aqui, é muito, muito difícil. O Turcomenistão é isolado, precisamos de visto para quase todos os países. E visto é caro demais. A passagem, cara demais. Temos que ficar aqui. Aqui! E nos virar."
Essa sensação de estar sem saída é imensa, opressiva. No hotel, as notícias do exterior chegam principalmente pela TV russa, já que a TV turcomena prefere transmitir música e shows folclóricos. No entanto, ainda pior que a TV é a internet. Nos três hotéis onde pernoitei — em Dashoguz, em Ashgabat e em Mary — apenas um, em Dashoguz, oferecia acesso wifi, mas era muito, muito ruim. Quase não consegui navegar, as páginas simplesmente não carregavam. Cidadãos com pacotes de dados em seus celulares devem navegar melhor, mas, mesmo para esses sortudos, como para qualquer um, as redes sociais estão frequentemente indisponíveis. Além disso, há o relato persistente, e provavelmente verídico, de que o governo segue o modelo chinês: tudo o que você faz na internet é monitorado. Controle total. Totalitarismo. Doutrinamento. Se não há mais o comunismo, agora há a Altyn Asyr, a "Era de Ouro" dos turcomenos, a era de nacionalismo, de neutralidade, o que, aqui, na prática, significa... isolamento.
O doutrinamento, evidentemente, também envolve, como nos tempos soviéticos, a manipulação do passado.
A exposição permanente de história do Museu Nacional (ou, oficialmente, "Museu Estatal do Centro Cultural Estatal do Turcomenistão") apresenta, quiçá, os mais perfeitos exemplos de construção artificial do passado de toda a Ásia Central. Uma manipulação que seria risível se não fosse tão trágica para os cidadãos do país. Nos países vizinhos, existe também a apropriação indevida do passado como forma de dar legitimidade e criar uma identidade para o país e o regime, que são consistentemente colocados como a mesma coisa. Assim, no Uzbequistão, Tamerlão é um herói "uzbeque", ainda que estivesse muito longe de ter esse tipo de identidade. No Quirguistão, as sagas de Manas, um herói mitológico, são tão "quirguizes" quanto chinesas, tajiques, cazaques — na época em que Manas supostamente existiu, ou Tamerlão, simplesmente não existiam tais nomenclaturas como as entendemos hoje. O Tajiquistão havia sido o caso mais extremo que eu havia visto até agora: o regime tajique faz crer que seu território é berço de boa parte da magnífica cultura persa, e canta a glória de poetas como Rudaki, que nasceu no atual Tajiquistão, mas certamente jamais teria se visto como tajique. Ismail Samani, o grande herói do Tajiquistão, era um monarca de uma dinastia persa, os Samânidas — sua associação mais correta e direta talvez seja com o próprio Irã na qualidade de centro milenar da cultura e língua persas. Mas tudo foi manipulado para dar a idea de que o Tajiquistão teve um passado glorioso e de que sua encarnação contemporânea tem o direito de herdar todos esses tesouros.
Mas o Turcomenistão vai além. O museu clama para o país a “herança” de três grandes impérios da idade média: o khorezmshah, centrado em Konye Urgench (séculos XI-XIII), o seljúcida, centrado em Merv (século XI-XII) e até mesmo o gaznévida (séculos X-XII), centrado em Gazna, no Afeganistão, e em Lahore, no Paquistão. O museu dá a entender que os três impérios, que ocuparam, todos, uma vasta área da Ásia Central, foram impérios turcomenos, séculos e séculos antes que existisse um Turcomenistão, ou mesmo a ideia de um Turcomenistão, ou qualquer “etnia” unificada chamada de turcomena (até hoje permanecem divisões tribais tão profundas que um turcomeno dificilmente se definiria como tal sem também reconhecer sua identidade como sendo da tribo Tekke, Yomut ou outras). Todos esses impérios, se usarmos as ferramentas analíticas atuais, eram “multiétnicos”, mas melhor fosse falar multitribais, multilinguísticos. A religião era o Islã trazido pelos árabes na sua conquista anterior da região, mas nesta região remota muitas das religiões ancestrais permaneciam. Se fôssemos agrupar todos esses impérios sob uma mesma alcunha, talvez o melhor fosse dizer que eram impérios “islâmicos”, dada a dominância, ainda que não completa, da religião. Os seljúcidas poderiam ser considerados um império “túrquico”, uma definição étnica que não significaria aceitar o império exclusivamente como parte do passado da atual Turquia. Mas reivindicar que todos esses impérios eram turcomenos é no mínimo um exagero. O fato de que capitais de dois desses impérios ficavam no atual Turcomenistão não muda em nada esse fato. O museu, com um respeitável acervo de artefatos retirados de excavações, parece colocar toda a ênfase no fato de que essas capitais ficavam no atual Turcomenistão e que os impérios tinham sua principal base no atual Turcomenistão — e, por isso, seriam impérios turcomenos. Quando a capital nem ficava no atual Turcomenistão, o destaque é para a origem de seus líderes, ou nascidos no território do atual país ou com "raízes" aqui, ou o fato de que o império ocupou o Turcomenistão atual. Isso explicaria a sugestão de que os gaznévidas e até mesmo algumas dinastias menores que dominaram partes da Índia foram turcomenas.
Em relação a Nisa, que foi capital do Império Parta (século III), novamente o museu presenta um rico acervo de objetos, particularmente ritões (copos no formato de chifre para consumo de bebidas, geralmente esculpidos com ricos detalhes). A cultura parta era sincrética, contendo elementos locais centro-asiáticos, persas e gregos. Sua “herança” poderia ser clamada por muitos povos diferentes — os gregos atuais, os iranianos atuais, até mesmo os afegães. Não vi escrito no museu, porém, em nenhum lugar que o império parta era “turcomeno”, embora a forma como os objetos partas são apresentados leva o observador distraído a pensar exatamente isso.
A manipulação da história no museu se faz também, por outro lado, com as omissões seletivas. Antes de ir embora, F havia visitado o museu sozinho e, ao voltar, me confessou seu estranhamento por não ter visto nada nele sobre o período soviético do Turcomenistão, mas também reconheceu que sua visita havia sido rápida demais: “Quem sabe você encontre alguma coisa, eu não vi.” Eu estava cético de que não havia nada. Imaginei que o período soviético estaria todo concentrado em um andar ou em uma sala que F, justamente na sua pressa, não havia visitado.
Após ficar boquiaberto com as exposições dos impérios supostamente turcomenos da idade média, notei que praticamente não havia mais nada para se ver. Essas exposições estavam no segundo andar do magnífico edifício. Havia algo no andar térreo, perto da entrada, mas não me pareceu ser muita coisa vendo de cima. Desci e decidi conversar com uma funcionária. Disse a ela o que estava procurando. “Sim, claro, temos algo sobre o período soviético, venha”, respondeu. Segui a jovem, que permaneceu em silêncio, e poucos passos depois ela parou em frente a uma série de painéis com fotos de estudantes em escolas, todas em branco e preto, tiradas no período do comunismo entre os anos de 1930 e 1960. As legendas eram puramente descritivas. Era uma exposição temática, todas as fotos mostravam aulas de alfabetização. Eram umas 20 fotos.
— É só isso que vocês têm, neste museu, sobre a era soviética? — perguntei para a moça, com respeito e sincera curiosidade e, ao mesmo tempo, sem deixar esconder minha incredulidade.
— Sim, só isso — disse, olhando para o chão.
— Mas por quê?
— Não sei — respondeu. Tive a impressão que ela estava falando a verdade e que ficou incomodada.
A incredulidade continuou. Eu até poderia entender o passado soviético sendo apagado na busca de um novo e glorioso presente imensamente nacionalista (sendo a estátua de Lênin de Ashgabat uma exceção apenas porque o líder soviético pode ser considerado o arauto da independência turcomena por sua defesa da "autodeterminação dos povos"). Entretanto, a manipulação da história no museu prosseguiu até mesmo no período pós-independência. O primeiro presidente do Turcomenistão, o pai da pátria, Saparmurat Niyazov, que espalhou estátuas de ouro por Ashgabat e moldou a ideologia hoje seguida pelo Arkadag, tem presença discretíssima no museu. Contei o total de quatro, apenas quatro, fotos de Niyazov. Também vi sendo exibida a Rukhnama (o livro do presidente que se tornou sua bíblia no governo de Niyazov, leitura obrigatória por crianças na escola) ao lado de traduções da mesma obra para várias línguas. E isso era tudo. Tudo o que vi no museu sobre a importantíssima primeira etapa da história independente do país, sob a liderança de seu primeiro presidente.
Por outro lado, o atual presidente reservou para si um museu inteiro, separado. Trata-se do "Museu do Presidente do Turcomenistão", que apresenta, segundo seu site em inglês, "a história do desenvolvimento do Estado a partir da data em que Gurbanguly Berdimuhamedow se tornou presidente". Isso, inevitavelmente, com lindas fotos do Arkadag e muita, infinita bajulação, num ambiente deslumbrante, de muito brilho, limpeza e luxo, parecendo o saguão de um hotel cinco estrelas. Decidi não visitar esse museu. Achei que seria um pouco cansativo.
* * *
Tolkuchka (...), com o multitudinário elenco colorido de milhares de pessoas, é um mercado centro-asiático tal como se tivesse sido concebido por Cecil B. DeMille. Ele se espalha por hectares de deserto nos limites da cidade, com cercados para camelos e bodes, avenidas de mulheres, com vestidos vermelhos, agachando em frente a bijuterias de prata à venda e vilarejos de caminhões nos quais loquazes uzbeques negociam de sementes de pistache a componentes para carros. O que quer que você queira comprar é vendido no Tolkuchka. Se prepare para pechinchar.
- Lonely Planet Central Asia, second edition (abril de 2000)
Era assim que o guia que comprei antes da minha primeira viagem como turista à Ásia Central (em 2003) descrevia o mais famoso mercado da região de Ashgabat. Era uma descrição tão marcante que nunca saiu da minha cabeça. Imaginava o Tolkuchka (russo para "mercado de pulgas") como um lugar realmente grandioso, à sombra da cordilheira Kopet Dag, com mercadores de camelos do Karakum disputando o espaço com vendedores da mais fina seda de Margilan, persas com as mais maravilhosas romãs, chineses com sua porcelana de rara beleza, mascates do Punjab com cheirosas especiarias, peregrinos a caminho ou vindo de Meca, mulheres misteriosas com os rostos cobertos e longos vestidos coloridos apenas sugerindo as curvas voluptuosas de seus quadris. Na minha cabeça, uma dessas mulheres me sequestrava para algum lugar secreto e iniciávamos uma longa sessão de paixão e sudorese. A melhor materialização da canção Year of the Cat, do escocês Al Stewart:
She doesn't give you time for questions
As she locks up your arm in hers
And you follow 'til your sense of which direction
Completely disappears
By the blue tiled walls near the market stalls
There's a hidden door she leads you to
These days, she says, I feel my life
Just like a river running through
The year of the cat
Uma poderosa fantasia.
Mas o mercado, tal como existia na época de edição do guia, tal como existiu por séculos como personificação da Rota da Seda, mesmo nos tempo soviéticos, foi obliterado pela sanha higienista de Berdimuhamedow. Na Ásia Central, não apenas no Uzbequistão esse hábito modernizador questionável de reconstruir tudo "a limpo" está em voga. Não conheci a Ashgabat de décadas passadas, as breves descrições de Ryszard Kapuscinski em Imperium (1993) são a única, e limitada, imagem que tenho de como foi a capital no passado. Logo, a transformação atual para um coleção esdrúxula de prédios brancos e monumentos não teve muito efeito em mim. No tocante ao mercado Tolkuchka, contudo, posso dizer que o "conheci", e bem, antes de vir para cá. O visitei muitas, muitas vezes, com minha imaginação sempre alimentada pela descrição marcante do Lonely Planet e pela linda canção de Al Stewart.
O Tolkuchka foi transferido, em 2011, para novas e modernas instalações e se transformou num cartão postal da Altyn Asyr, a era de ouro do presidente. Virou mais um marco "glorioso" do país, mais exemplo de branding doméstico para sustentar o regime totalitário.
O taxista pareceu feliz quando lhe pedi para me levar até o mercado. Logo entendi. Ficava longe do centro e ele iria faturar bem pela corrida. Tivemos que pegar uma estrada e, pelo caminho, os prédios brancos da capital logo desapareceram, dando espaço ao já familiar universo vazio do início do deserto, salpicado por alguns conjuntos de casas. Exatamente o cenário que imaginava, imenso, aberto. "Ele ficava deste lado", indicou o senhor gordinho, de bigode, na janela, apenas de forma genérica. Nada de mais na ponta de seu dedo indicador: areia, casas distantes, o céu azul. "Era uma bagunça! Uma bagunça! Agora está limpo, organizado. Muito melhor!", completou, com orgulho na voz. Ah, sim. Respondi. Consigo imaginar.
Ele me desembarcou em uma pequena cidade. São 154 hectares, cerca de 1,5 milhão de metros quadrados. O carro havia atravessado um portal e estacionado ao lado do que pareciam ser grandes pavilhões. Me disse para caminhar em direção a uma torre de relógio, visível a uns duzentos metros. Ao meu redor, pouca gente. Era meio-dia, fazia um sol forte, me disseram que o mercado estaria fervilhando.
O Tolkuchka, após a transformação renomeado (previsivelmente) Altyn Asyr, se apresentou como uma entendiante sequência desses galpões — vastas áreas cobertas, de alvenaria bem feita, com portões separados, cada um deles identificado com letras e números, com precisão cartográfica. Brancos, limpos, tomados por espaços separados para cada tipo de produto, com balcões para cada vendedor, com espaço para que eles pendurem suas ofertas. O mapa do mercado procura copiar um ornamento usado em carpetes da província de Ahal, onde fica Ashgabat. O primeiro galpão que visitei, após saltar do táxi, era dedicado a ferramentas e ferragens. Ele acaba, atravessa-se uma rua e chega-se a outro igual, de produtos para carros. São galpões imensos, tão grandes que me pareceu que ainda não se encontrou vendedores suficientes para preencher os espaços em todos eles.
Na maratona de visitar cada um dos pavilhões, me surpreendi ao constatar que não era o de alimentos o mais lotado. Havia muita gente comprando frutas e verduras, mas nada se comparado à quantidade de pessoas no galpão de material escolar. Explica-se: o Turcomenistão, como os demais países da Ásia Central, tem uma abundância de crianças, sendo que o mais comum são famílias com mais de um rebento. E eu visitei o mercado quando elas estavam prestes a voltar aos estudos após as férias de verão. À venda, cadernos, cadernos e mais cadernos com a bandeira nacional, com os cavalos da raça nacional, com o brasão nacional. Estranhíssimo, porém, que nenhum desses cadernos trazia uma foto sorridente do presidente na capa. Talvez por um pouco de modéstia de Berdimuhamedow.
Havia um galpão separado para os vendedores de amuletos. Eis outra característica singular dos turcomenos: por aqui, o Islã foi ainda mais mudado pelas crenças pré-islâmicas do que em vizinhos do norte. No Uzbequistão e em outros países de lá, o sincretismo com a fé ancestral é mais visível pelo sufismo, pela presença dos mazars, as tumbas de "homens santos", ou na queima de ervas para afastar os maus espíritos (como vi em Nukus). No Tolkuchka, encontrei singulares objetos, produzidos em massa, contra o mau-olhado: pulseiras feitas com lã de dromedário ou carneiro, colares, pingentes. Para minha grande surpresa, alguns têm o olho grego (ou olho turco). Não esperava ver um símbolo tão conhecido no Brasil por aqui também, mas, pensando depois, faz sentido. O amuleto deve ter sido levado ao Brasil por imigrantes árabes e turcos, tão numerosos em nosso país.
Exploro os amuletos em um balcão. A vendedora, uma senhora em seus 70 anos, falava russo com um sotaque fortíssimo e virtualmente inexpugnável. Tinha a pele morena enrugada e aveludada; viu décadas de sol arrasador. Seu olhos traziam uma certa empolgação cansada, como se algo nela a empurrasse para falar, sorrir e negociar contra a sua própria vontade. Olhos negros, lacrimejantes.
Me recomendou três pulseiras de lã de carneiro. Não consegui me desvencilhar. Pedi também um chapéu que ela tinha à venda em uma pilha ao lado dos talismãs. Colocou tudo numa sacola antes de me falar o preço. Eu não queria barganhar. Tome o dinheiro, minha senhora. Tome e tenha saúde.
O chapéu, disse ela, era abençoado pelo deserto. "Que ele te dê saúde e sorte nas suas jornadas."
Olhos negros, lacrimejantes. Nos meus olhos.
Ela apertou minha mão e sorriu. Silêncio.
O mercado, como no meu imaginário, não mais existe. Mas, apesar de tudo, algum mistério irresistível ainda sobrevive.
Ashgabat, 31/8, 11h20
Clique aqui para ler o próximo capítulo
Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
Clique aqui para ler o primeiro capítulo deste diário
Voltar para o topo desta página
.
Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
This comment has been removed by the author.
ReplyDeleteDe que forma se dá a construção artificial de identidades nacionais na Ásia Central, por meio de heróis e do apagamento (ou não, no caso quirguiz) do passado soviético? Taqui evidente um problema de pesquisa para um futuro doutorado, um eixo narrativo para o conjunto dos seus diários.
Delete