Sunday, 11 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXVIII): Osh

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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3/10/2012

O burocrata gordo e baixinho, com olhos puxados, óculos redondos de aros prateados, sem nenhum sorriso no rosto ou empatia no olhar, apenas desprezo por mim, frustração e raiva silenciosos, me pediu para entrar em sua sala. Senta-se à sua mesa, em seu trono. Usa uniforme militar, verde gasto. Nas paredes, vejo um retrato do presidente. O ambiente está meio escuro, lá fora está um Sol forte que ilumina um pouco o ambiente, entrando não sei por onde, já que não vejo janelas. A seu pedido, fecho a porta e me sento à sua frente.

O comandante a cargo do posto da fronteira. Estou tentando entrar no seu país, o Quirguistão, vindo do Tajiquistão, esse "ninho de radicais" (aspas minhas, imaginando o que o sujeito pensa).

Olha para mim. Olho para ele. Olhos nos olhos. Daqui, não passo. Nem mais um passo. Esta fronteira está fechada. Fechada para mim.


Retrocedo rapidamente no tempo até o início desta enrascada. Subindo do vale do Panj para o lago Bulunkul, na estrada de terra, nosso carro encontrou mais um posto de controle militar tajique, como o que encontramos quando estávamos chegando ao Pamir vindos de Khorog e onde tivemos aquele longo jogo de paciência que custou ao nosso motorista US$ 15 em propina para os militares. Neste caso, novamente, uma cancela, novamente o cenário remoto - só a guarita, nenhuma cidade por perto, muita poeira, Sol -, mas desta vez, havia apenas um soldado. Um pobre coitado, entediado até a ponta dos cabelos. Minha primeira reação foi de pena ao vê-lo. Foi um sentimento que mudou quando ele pegou os passaportes de todos no carro, levou-os à sua cabine e lá ficou com eles por quase uma hora. "Checando" os documentos.

Nesse trabalho minucioso de "checagem", saiu em duas ocasiões da cabine para falar conosco e nos dar a oportunidade de lhe dar presentes. Primeiro, queria um cigarro. Falamos que não tínhamos nenhum cigarro. Foi para a guarita contrariado. Ficou lá mais tempo. Saiu, voltou a falar conosco. Insistiu que queria um "cigarro". Insistimos que não, que não tínhamos nenhum cigarro nem nenhum "cigarro". Voltou para sua cabine novamente, frustrado. A estratégia dele não estava funcionando.

A nossa, funcionou. Ou achamos que funcionou. O sujeito se cansou de jogar, saiu da guarita, nos devolveu os documentos, abriu a cancela e saímos de lá o mais rapidamente que pudemos, suspirando aliviados. Tudo bem - até que eu olho dentro do meu passaporte. Diferentemente dos meus colegas, ganhei do guarda uma "lembrancinha" (já que não demos nada a ele, ele deu algo a mim). Meu passaporte me foi devolvido com a capa arrancada do miolo, arrancada de todas as páginas. Agora, eu tinha um documento dividido por dois, a capa e o interior. Claramente foi vandalizado pelo militar, que aliás fez um excelente trabalho, arrancou as páginas sem estragar em nada o miolo nem a capa. Os vistos estavam todos lá, as páginas estavam limpas, inteiras. Mas, evidentemente, aquele passaporte não era mais o mesmo. Mostrei para meus amigos e ficamos todos horrorizados com a maldade do sujeito. Entretanto, o consenso no carro era que, já que ele não tinha estragado as páginas e os vistos, nem a página com a minha identificação, eu não teria problemas, e era só o caso de no futuro visitar um consulado para pedir um novo, sem pressa.

E segui pensando assim até o encontro com o meu nêmesis, o burocrata gordo e baixinho no lado quirguiz do passo Kyzyl-Art, na saída do Pamir, na saída da região autônoma de Gorno-Badakhstan, na saída do Tajiquistão.

"Este passaporte é inaceitável", disse ele de forma enfática, inapelável, como um sargento dando ordens a um recruta rebelde. "Você tem que voltar a Dushanbe e pegar um novo. POR AQUI, VOCÊ NÃO PASSA." Ênfase na elevação ameaçadora do tom da voz. Em russo, o que é ainda mais ameaçador.

Evidentemente, fingi não estar entendendo nada. Mostrei a ele o visto de entrada no Quirguistão, impecável. A página com a foto e dados pessoais do passaporte. Tudo perfeito. Mas a capa estava separada do miolo.

"Isto é LIXO. Não aceito este passaporte. Volte para Dushanbe."

Tamanha falta de razão logo me fez perder a calma. Em uma situação assim, entender russo já é difícil e falar, ainda mais. Pois arrisquei lhe responder em inglês (imaginei que o digno senhor, sendo o manda-chuva em uma fronteira internacional visitada regularmente por estrangeiros, arranhasse um pouco a língua).

"Voltar para Dushanbe? Mas como vou fazer isso? Isso é impossível! Eu NÃO TENHO VISTO para voltar para o Tajiquistão!". Ênfase no tom de súplica por empatia.

A questão era simples. Para chegar ao posto de fronteira onde eu me encontrava, eu e meus companheiros de viagem tivemos primeiro que passar pelo posto de fronteira tajique, onde carimbaram a saída no meu visto, que, então, deixou de ser válido. Depois disso, até chegar até o posto de fronteira quirguiz, tivemos que atravessar de carro um trecho de uns dez quilômetros de terra de ninguém, nem Quirguistão nem Tajiquistão, no meio das montanhas, na companhia apenas de vacas (que não sei de que nacionalidade eram). Aí, chegamos ao posto quirguiz. Ou seja, naquele momento, pelo que o militar me dizia. eu não poderia entrar no Quirguistão nem voltar para o Tajiquistão. Eu teria que ficar na terra de ninguém. Eu e as vaquinhas. Expliquei isso, em inglês, bem devagar.

Ele entendeu. E respondeu, em russo: "Isso não é um problema meu".

Cruzou os braços. Silêncio.

Após 10 segundos de silêncio, o jogo psicológico do sujeito estava me dominando, me fazendo ficar desesperado. Expliquei o outro detalhe que fazia aquela "solução" do militar ainda mais impraticável. Disse a ele, misturando russo e inglês: "Imagine que eu consiga entrar no Tajiquistão e ir para Dushanbe. Chegando em Dushanbe, o que vou fazer? Procurar a embaixada do meu país para tirar um novo passaporte, certo? Mas NÃO EXISTE embaixada do meu país em Dushanbe! A mais próxima é no Cazaquistão!"

Depois da explicação, segui para a última cartada, me humilhar, pedir "por favor, me deixe passar, desculpe pelo meu documento". Seus braços então se cruzaram, indicando o verdadeiro final da conversa. O guarda não quis mais escutar meus argumentos ou súplicas. Se levantou, abriu a porta, pediu para eu sair. E fui para o Sol.

Até então, não havia pensado na possibilidade de oferecer dinheiro a ele. Agora, do lado de fora, confuso, sem saber até onde o drama poderia chegar, pela primeira vez pensava em jogar a toalha - que eu poderia ter jogado na salinha, perguntando se havia "alguma taxa" que eu deveria pagar. Teria sido um problema de qualquer jeito, pois nem sabia falar a palavra "taxa" em russo. Um erro qualquer na escolha de palavras inclusive poderia piorar as coisas.

Não obstante, agora, os problemas de comunicação e ética eram irrelevantes. O guarda sequer queria falar comigo. Saí de sua salinha, saí da casa onde ela ficava, ao lado da cancela da fronteira. Eu suava. Não sabia o que fazer. Caminhei em direção a meus amigos, que estavam ao lado do carro, com as mochilas todas a seus pés, abertas, desmontadas, a pedido de outros "simpáticos" guardas de fronteira. Expliquei o caso a eles. Kim e Iker foram categóricos - sem mim, de lá, eles não sairiam. O que me deu algum ânimo e esperança.

Foi então que o nosso motorista, que até então tinha desaparecido em uma outra casa, ao lado da casa do manda-chuva que me aterrorizou, reapareceu. Veio falar comigo, perguntou o que tinha ocorrido. Expliquei da forma que consegui. Era meio óbvio de entender. E o motorista deu risada. "Deixa comigo." Pediu para eu esperar perto do carro e foi para a casa onde estava o mandarim com quem conversei. Desapareceu lá dentro por um bom tempo - meia hora ou mais. Permaneci apreensivo, conversando com meus companheiros, tentando não pensar no que estava acontecendo.

Surge novamente nosso motorista. Jovial. "Vamos", disse, olhando para o grupo todo, não só para mim. Todos entraram no carro e ele logo revelou - teve que pagar 45 somonis (cerca de US$ 5) ao sujeito. Além disso, o motorista recebeu um pedaço de papel com o número de telefone do comandante. "Este é o telefone de um amigo dele que trabalha transportando turistas de Osh (próxima parada da viagem) a Bishkek. Prometi que você ia ligar e combinar a viagem com ele quando chegasse a Osh", explicou. Agradeci efusivamente. Dobrei o papel com cuidado e o guardei no bolso.

Evidentemente, eu não iria ligar nem se minha vida dependesse disso. Em Osh, aliás, eu só teria uma prioridade - comprar uma boa cola para arrumar meu passaporte.


* * *

À nossa frente, colinas baixas e verdejantes, esparsamente pontuadas com neve, abrem-se para permitir a visão do azul intenso do grande lago Karakul, uma névoa leve revelando pela metade o panorama, e o todo criando uma imagem de beleza notável que de alguma maneira nos lembra das highlands da Escócia.
- Through Deserts and Oases of Central Asia, Ella Sykes e Percy Sykes, 1920

Horas antes do episódio na fronteira, tivemos um último e mágico momento no Pamir ao passar pela estrada ao lado do lago Karakul, perto do vilarejo de mesmo nome. O lago é vasto, com margens a perder de vista, e circundado por montanhas nevadas - inclusive, entre eles, o Pico Lênin dos tempos soviéticos, hoje conhecido como Pico Avicena. Na fronteira com o Quirguistão, esse o segundo ponto mais alto do Tajiquistão e do país vizinho (7.134 metros), só ficando atrás, no Tajiquistão, do Pico Comunismo (7.495 metros), mais a sudoeste, e no Quirguistão, do Pico Vitória (7.439 metros), bem mais para o norte.

O lago Karakul é azul, mas um azul com um tom diferente de todos os lagos que vi na vida. Um azul claro, cintilante, só um pouco mais escuro do que o azul do céu. Parece uma grande pedra preciosa, brilhando no Sol, calmo, sem que o vento enrugue sua superfície.

Calmo, celestial. Sugerindo uma pureza infinita (veja o vídeo abaixo).



Encontramos à beira do lago um pobre iaque solitário, deitado, mascando algum pedaço de arbusto. Um chifre a menos, provavelmente arrancado em alguma briga com algum macho.

Nunca me aproximei tanto de um animal da espécie. A três, dois metros da intimidadora besta, que sequer tomou conhecimento da minha presença. Olhava para o pico Lênin ou para a água azul, ou para os dois ao mesmo tempo. Sonhava em ser uma ave ou sonhava em ser um peixe. Hipnotizado pelo azul.

O azul puro - do céu sem nuvens e do lago - e o ar fresco. Um bem estar gigante tomou conta de nós e pulamos de empolgação. Passamos a tirar fotos, dezenas, muito mais do que nossa cota regulamentar. E fizemos vídeos. E respiramos fundo e fomos caminhar, andando até o vilarejo, até o iaque, até a beira da água, até aqueles outros viajantes que estavam caminhando para lá. Um casal europeu, eram alemães. Viajavam no sentido contrário de nós, vinham do Quirguistão. Queriam usar transporte público para chegar a Khorog. Avisamos que teriam muitas dificuldades. Falaram que acampariam à beira do lago, nesta beleza azul, e depois pensariam no que fazer.

Fome. No vilarejo encontramos um velhinho quirguiz muito hospitaleiro. Ele nos ofereceu, por um preço camarada, um laghman simplesmente horroroso, o pior que comi na vida. Era um macarrão cozido pelo menos uma hora além do que deveria. Uma massa sem gosto e com textura horrível que custou para descer pela garganta. Agradeci muito o chá preto, que tomei, e muito, para fazer descer tudo aquilo até meu estômago.

Quantas refeições ruins nos celestiais picos, lagos e rios do Pamir.

E quantos sonhos azuis. Calmos. E eternos.


* * *

Após passar dez dias entre algumas das montanhas mais remotas do mundo, enfrentando estradas péssimas, nos surpreendemos com uma alegria tola: sentir o carro a milhão em um asfalto liso como um tapete.

Que diferença fazem alguns quilômetros - rapidamente, o carro desceu para menos de dois mil metros de altitude. As casas deprimentes de Murghab dão lugar a outras bem acabadas, com tetos robustos, os Vs invertidos. As montanhas voltam a ter árvores em vez de apenas rochas e arbustos com cor de rocha. O ar é mais quente, o vento, prazeroso, nunca cortante. As pessoas parecem mais gordinhas. A noite cai e, lá pelas 21h, após curvas e curvas, chegamos a Osh. Estou de volta ao vale de Fergana, dessa vez do lado quirguiz.

Osh é uma cidade. Uma cidade de verdade, com trânsito, com confusão. Outra alegria tola.

Comemoramos nossa volta à civilização e o fim da grande aventura do Pamir. Fomos a um restaurante incrível - incrível simplesmente por ser um restaurante de verdade, incrível por ter opções de refrigerantes, um cardápio inteiro de escolhas possíveis para o jantar, e, talvez, o mais maravilhoso, cerveja. Um Beshbarmak, talvez o mais conhecido prato quirguiz e cazaque, foi a escolha evidente para mim, nunca foi melhor escolhido. Trata-se de carne de carneiro, cozida até se desfazer em fiapos, descansando sobre um ninho de laghman.

Brindes, sorrisos. Osh, viva Osh. E viva também, claro, esse mundo que vivemos intensamente, o Pamir, onde cada refeição horrível foi também tão maravilhosamente bem-vinda.

Osh, 5/10, 18h

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