O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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4/10/2012
Babur. É um nome pouco conhecido no Ocidente. Foi tataraneto de Tamerlão e o fundador da dinastia Mughal na Índia. É a dinastia que nos deu o Taj Mahal, a que dominou o subcontinente a partir do século XVI até ser sucedida pelos britânicos no século XIX.
Babur sonhava em construir um império como o do ilustre ancestral. Nascido no Andijan, cidade no lado uzbeque do Vale de Fergana, ele partiu para a dominação da Índia e parou no caminho na milenar Osh, que fica ao lado de sua cidade natal. Viu a magnífica montanha que brota do coração da cidade, a segunda maior do que viria a ser o Quirguistão. Se emocionou com tamanha beleza. E construiu no alto dela, em 1497, uma pequena mesquita para suas preces.
Hoje, descansados, relaxados, eu, Iker e Kim enfrentamos a íngreme estrada até a Dom Babura, ou casa de Babur, como é conhecido em russo o pequeno templo. Lá em cima, encontramos a pequena edificação, reconstruída várias vezes ao longo dos tempos. Um lugar pequeno, simples. No chão de pedra polidíssima, o zelador - um senhor de meia idade, chapéu ak kalpak e longa barba escura - nos indica os buracos onde o Profeta Maomé, miticamente, teria colocado os joelhos e os cotovelos durante uma oração. No pequeno templo, encontramos paz e algum silêncio em meio a tantos turistas chineses e do próprio Quirguistão.
Trono de Salomão. Montanha de Solimão, ou Sulaiman Too em quirguiz (a confusão entre Solimão, o profeta islâmico, e Salomão deriva dos nomes dados àquele que se acredita ser a mesma pessoa tanto no Corão quanto na Bíblia). Esses são os nomes dados ao monte de Osh. Este lugar santo em uma cidade de 3 mil anos como Osh se tornou o único lugar de todo o Quirguistão a figurar na lista de patrimônios da humanidade da Unesco. Explicando a distinção, o órgão de educação e cultura da ONU diz que Sulaiman Too tem sido, há mais de 1.500 anos, um "farol para viajantes, reverenciada como uma montanha sagrada." Nela existem nada menos que 101 locais com pinturas rupestres representando humanos, animais e formas geométricas. Há 17 locais de adoração religiosa, entre os que continuam em uso e os que já não recebem fiéis. Eles estão espalhados pela montanha e são conectados por trilhas. "Acredita-se que os locais de culto trazem cura para a infertilidade, dores de cabeça e dores nas costas, além de abençoarem o visitante com a longevidade", diz a Unesco.
A montanha de aproximadamente 1.110 metros de altura é de fato impressionante. Projeta-se como se fosse inteira um único monumento, isolada, no coração da cidade. O Vale de Fergana, em si, não tem montanhas (elas estão todas ao redor). Assim, a Sulaiman Too, brotando da terra onde não deveria estar, parece ter sido obra de um capricho divino, como se Deus quisesse que ela se tornasse mesmo um centro de adorações. É evidente que, no futuro, quando entretermos lembranças da cidade quirguiz, eu e meus amigos poderemos até esquecer do nome do monte, mas ele para sempre será a tradução da cidade em nossas mentes. Não o povo, não as ruas, não o trânsito. O monte. Osh é o monte, o monte com o pequenino templo no alto, o monte de pedra pura, grandioso, santo.
Não só dentro da Dom Babura, por toda a parte, impressiona como a rocha é polida, lisa, como se tivesse sido esfregada, depois encerada e limpa com uma flanela. Como se tivesse sido esfregada, encerada e limpa com uma flanela todos os dias desde que surgiu na Terra. Tivemos que tomar muito cuidado para não escorregar ao caminhar pelo monolito.
Com sua conhecida indiferença para a religião, os soviéticos evidentemente não deram crédito ou respeito aos relatos locais sobre a santidade da Montanha de Solimão. Uma prova chocante disso foi o que fizeram em uma de suas faces. Com explosivos, ampliaram uma caverna, instalaram estruturas de aço e concreto e lá abrigaram um museu.
Foi uma obra futurista quando foi inaugurada, em 1978. Hoje, o Museu Histórico-Cultural é uma bizarra relíquia arquitetônica da URSS - suas linhas arrojadas sugerindo força e modernidade, sua simplicidade brutal. Uma aberração enfiada na beleza do monte. Um lembrete da dimensão que tomou a utopia soviética, destruindo, reconstruindo, moldando o homem e todo seu ambiente, tudo que lhe diz respeito, recriando o mundo. O museu é uma das provas mais berrantes dessa tentativa soviética de reconstruir o mundo e tudo associado a ele, incluindo a cultura.
O museu foi inaugurado como parte das comemorações dos (supostos) 3 mil anos de Osh. Verdade? Seria uma cidade tão antiga? Ninguém sabe ao certo.
Uma lenda improvável é que a cidade tenha sido inaugurada por Solimão, o que explicaria bem o nome de sua montanha. Aliás, explicaria também o nome da cidade, que é bem incomum. "Osh" não significa nada nem em uzbeque nem em quirguiz, bem diferente de outras cidades, onde há palavras que têm significados claros para os locais (por exemplo: Karakul vem de "kara", negro, e "kul" (ou "kol"), lago: assim, é "Lago Negro" em túrquico, uma das línguas que ajudou a formar tanto o uzbeque como o quirguiz). Para explicar o nome, conta-se que Solimão, que vinha em seu cavalo acompanhado de outros cavaleiros, avançava pela região quando viu Sulaiman Too. Então, impressionado com a montanha, ordenou fazendo esse som, "OSH!", que todos parassem.
Mais provável é outra história, de que a cidade teria sido outra obra de Alexandre, o Grande. Ainda mais provável é que nenhuma das duas lendas sejam verdade, e Osh tenha sido um assentamento de tribos locais em sua origem. Sabe-se que no século VIII a cidade já era conhecida por sua produção da seda e por sua posição estratégica, sendo um último ponto de parada e comprar mantimentos antes da travessia das montanhas para a China e a cidade de Kashgar, a leste, ou do Pamir, ao sul. No século 13, estava sob controle dos Khoresmanshahs, os mesmos governantes de Otyrar, aqueles que irritaram Genghis khan, e por isso teria sofrido a fúria dos mongóis. Entretanto, diferentemente de outras cidades destruídas pelo império invasor, ela se recuperou e até a chegada dos russos era parte integrante do Khanato de Kokand.
Verdade ou não, a população local sustenta a antiguidade da cidade com orgulho: alguns dizem que é ainda mais velha que Roma. Quando a lenda se torna a realidade... publique-se a lenda. O orgulho de sua antiguidade parece ser um exercício cotidiano, no Quirguistão e em outros países da ex-URSS na Ásia Central, para que eles próprios se convençam de sua legitimidade histórica.
* * *
O grade mercado de Osh não é muito longe da Sulaiman Too. Não fosse o monte, ele provavelmente seria a grande atração da cidade. Uma orgia de cores e cheiros, maior (em número de barracas e vendedores) do que mercados em cidades muito maiores da Ásia Central.
Etnias, vozes, línguas, chapéus quirguizes, chapéus uzbeques, pessoas de longe, de perto, estrangeiros, frutas, carnes, tecidos. Empolgante como os mercados de Shakhrisabz e o de Margilan. Uma labiríntica arena para o esporte regional da barganha. Foi aqui que finalmente, consegui completar minha coleção de chapéus do Turquestão: comprei meu ak kalpak de uma moça em uma barraca com altas muralhas de chapéus. Meu ak kalpak, de feltro branco, poderia ser descrito facilmente como uma cartola - é alto, chamativo. Lindos seus bordados negros, motivos misteriosos em curvas, brincando de simetria, um a exata copia do outro, um à esquerda, outro à direita da cabeça.
A moça jovem tem talvez 18 anos, sorriso lindo, dentes perfeitos e olhos pouco puxados. Te cativa pela simpatia, excelente vendedora. Contou-me detalhes fascinantes sobre o chapéu, vendido com diferentes padrões decorativos e composições de branco e preto. Explicou: o ak kalpak em que a parte de baixo das abas é preta é geralmente usado por homens mais velhos, enquanto que os jovens usam com a aba branca, como o meu. A cor das figuras decorativas, disse, não tem importância - há até douradas e prateadas, além de pretas, é claro, o mais comum. O ak kalpak é só usado pelos homens, assim como os principais chapéus étnicos da Ásia Central. Mas há também um chapéu quirguiz para as mulheres. E ela me mostrou. Alcançou a prateleira atrás da tenda uma peça imensa, cor de prata. Parecia uma pequena melancia que se encaixa na vertical na cabeça, e deve ser usada juntamente com um véu que desce do chapéu e vai por baixo do queixo da portadora. A vendedora entendeu minha risada ao ver semelhante trambolho e ressaltou: "Só usamos em ocasiões especiais, como casamentos".
Com meu novo companheiro na cabeça, viramos, eu e Iker (e o ak kalpak que também comprou, nesse caso de aba preta), atrações na cidade. Claro que todos, à distância, percebiam que éramos estrangeiros. Mas estrangeiros usando um dos símbolos do Quirguistão? Fomos parados nada menos que seis vezes por locais, que, num esforço comovente para falar inglês, nos disseram que estávamos "elegantes". Achei engraçado.
Mas não por muito tempo. Conversando com Iker, refletimos sobre o porquê de tanto orgulho dos locais em nos ver usando os chapéus. Concluí que estávamos, na verdade, não apenas usando o chapéu, mas adotando um certo discurso com o gesto. Um discurso de divisão social, em que os quirguizes, que tradicionalmente não eram maioria aqui, se impõem sobre os uzbeques, esses sim a maioria tradicional no Vale de Fergana, onde fica Osh.
Da violência que foi a divisão de fronteiras à soviética, Osh é talvez uma das maiores feridas que surgiram, uma ferida causada pelo fratricídio de povos que eram vizinhos e viviam em harmonia, até serem separados à força por Stálin. Em duas ocasiões nas últimas décadas, a região onde fica Osh foi o palco de conflitos étnicos sérios, que levaram à morte de centenas de pessoas. A raiz parece ter sido a mesma nos dois casos - nacionalistas quirguizes, alimentados pelo desemprego e pelo sentimento de inferioridade, enfrentando membros da comunidade uzbeque, vistos como tendo regalias econômicas em um países que não é deles.
O primeiro conflito ocorreu em 1990. A explicação para o início da violência na época era a discussão sobre o destino de uma antiga fazenda coletiva soviética, então nas mãos dos uzbeques, mas cobiçada pelos quirguizes pobres, muitos vindos de miseráveis povoados nas redondezas. Cifras oficiais colocam o número de mortos na casa dos 600, enquanto alguns dizem que eles chegaram a mil.
Em 2010, um Quirguistão já quase 20 anos distante da União Soviética, viu o fantasma ressurgir durante a queda do segundo presidente da história do país, Kurmanbek Bakiev, então alvo de uma revolução. A base de apoio de Bakiev eram os nacionalistas da região de Osh. Embora ele sempre tenha alegado que não esteve por trás do banho de sangue, e nenhuma prova tenha sido apresentada sustentando essa tese, muitos acreditam que o presidente estimulou os quirguizes a novamente enfrentar os uzbeques para tentar se beneficiar disso. Contudo, o mais provável é que tenha sido uma mistura de vários fatores (entre eles as feridas ainda não inteiramente cicatrizadas de 1990) em um momento em que a minoria uzbeque insistia para ter direitos como o de operar escolas em sua própria língua, enfurecendo nacionalistas. Acredita-se que cerca de 400 pessoas morreram.
Após nossa reflexão, à sombra de tamanha barbárie, os ak kalpaks, meu e de Iker, foram rapidamente guardados em nossas mochilas.
Apesar do temor causado pelo passado na cidade, não posso dizer que encontrei manifestações explícitas de tensão étnica em Osh. Perto do mercado, uma simpática uzbeque me vendeu um chip de celular e me ajudou a instalá-lo. No mercado em si, os vendedores, uzbeques e quirguizes, foram igualmente generosos e sorridentes. Oferecem frutas de graça, se deixaram fotografar com grandes sorrisos, como se orgulhosos de tamanha abundância e de serem visitados por turistas.
* * *
De noite, a despedida de Kim, que segue para Tashkent amanhã bem cedo.
O elemento-surpresa do trio que saiu de Dushanbe e enfrentou os desfiladeiros, a comida e a polícia corrupta do Pamir armado apenas com câmeras fotográficas e um carro 4x4 nos deu adeus no mesmo glorioso restaurante da nossa noite de chegada em Osh, ontem. Consumimos um banquete para reis. Comemos de quase tudo um pouco - suculentas samsas, saborosos shashliks, um colorido prato com arroz e chuletas de cabrito, mantis, oromo - este último, uma espécie de minilasanha.
Muitas, muitas risadas, lembrando de momentos incríveis de poucos dias atrás. Discutindo o que poderia ter ocorrido. Já pensou se não me deixam entrar no Quirguistão por causa do problema no meu passaporte? Poderíamos estar lá até agora... E o que Iker teve em Jelondi, foi efeito da altitude ou algo diferente? E o motorista-guia, foi bom, ruim ou péssimo?
Cervejas quirguizes, várias garrafas, de baixa qualidade, mas por outro lado excelentes simplesmente por serem locais e estarem geladas. Longos e saborosos goles, abençoados, gerando uma urina bem clara, uma bênção de se ver. Sinal da gloriosa vitalidade de meus rins, santos rins, totalmente recuperados após o susto em Dushanbe.
Adeus Kim, que testemunhou meu medo e recuperação do início ao fim, do albergue na capital tajique... à doce cidade do Trono de Salomão.
Osh, 5/10, 19h
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