O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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2/10/2012
Perto de Murghab encontramos o que pareciam ser miragens arquitetônicas. Na paisagem de alta montanha, não longe do rio que leva o mesmo nome da cidade, há pequenas edificações de barro, bem rústicas, que parecem minimesquitas.
Seguíamos com o carro quando passamos ao lado de duas, a uns 20 metros uma da outra. Perguntei para o motorista o que eram. "Maguila", disse. Obviamente, achei engraçado, dada a associação automática com o pugilista brasileiro ou com personagem da Hanna Barbera. Mas se tratava da palavra em russo para "túmulo".
Paramos o carro para vê-los por dentro. Estávamos longe da cidade, em um lugar com aclives suaves e montanhas próximas, vegetação rasteira, vento frio, nenhum assentamento por perto.
Explorando os pequenos mausoléus, me parecia que eu estava ao lado de algo de grande valor histórico, algo vetusto, com possíveis tesouros escondidos.
Segundo o motorista, os túmulos foram construídos por povos de séculos atrás. Os maiores têm uns 4 metros de altura. São inteiramente cobertos de barro por fora, enquanto que por dentro é possível ver os tijolos que são a base de sua estrutura. As construções têm um formato chamativo, com pórtico e cúpula, e dentro há aparentes nichos para colocar oferendas. "Khans eram enterrados em lugares como este", disse o motorista, se referindo não aos sucessores de Genghis, mas a senhores locais. "São muito antigos. Alguns são do século III. Neles estão enterrados só quirguizes". Isso explicaria a ausência dessas estruturas ao sul, onde vivem os pamiris ismailitas. Ainda que os "quirguizes", no sentido moderno, só tenham surgido durante a URSS (quando foi criada a República Socialista Soviética do Quirguistão, embrião do atual país), durante muito tempo esse era o termo usado para designar os povos nômades que ocupavam desde estas terras até as estepes bem mais para o norte, perto da Sibéria. Ou seja, tanto os antepassados dos atuais cazaques como os dos atuais quirguizes. E certamente foi com esse sentido que o motorista usou a palavra.
Dentro dos maguilas, para nossa decepção, não encontramos nada, a não ser barro e tijolos. Tudo vazio. Teriam essas tumbas um dia sido violadas e todos os seus tesouros, levados? Ou nunca tiveram riquezas? Não há nenhuma lápide, nada escrito indicando quem encontrou aqui seu último descanso. Será que os cadáveres estão ainda ali, sob a terra, sem nenhuma indicação a não ser a própria construção? Será que um dia inscrições ou estátuas adornaram as tumbas? Ao redor do mausoléu há vários buracos profundos. Me pergunto se esses buracos são de caçadores de tesouros que foram procurar algo de valioso... ou se foram cavados para guardar restos de pessoas que nunca vieram a ser enterradas.
Tudo isso tento esclarecer fazendo perguntas para nosso motorista. Ele pouco sabe responder.
Fica o mistério, embalado pelo vento frio soprando por entre as frestas no barro, criando melodias arcanas, tristes, solitárias.
* * *
Kim usou uma palavra boa em inglês para descrever a cidade de Murghab - bleak, algo como sem vida, sem graça nenhuma. Aliás, não usou uma vez só, usou três vezes. Concordei em cada ocasião. Especialmente nesta manhã, com um lindo Sol e céu azul, fatores que aquecem o coração de qualquer um, mas que nesta cidade parecem só confirmar a descrição do meu companheiro de viagem e a minha primeira impressão, da noite anterior.
Circulamos com nosso motorista, conhecedor de todos os cantos da cidade. Por onde passamos, vimos inúmeras casas de concreto sem telhado, como se fossem contêineres, com apenas um andar. Muitos postes de eletricidade (apesar da eletricidade intermitente), ruas sem asfaltar (com exceção da Rodovia do Pamir, que cruza a cidade) e um "mercado" bem diferente dos que vi até agora. Em vez da algazarra de vendedores e vendedoras com suas roupas coloridas, encontramos mercadores quietos, taciturnos, em contêineres de verdade (usados em vez de barracas) vendendo infinitos produtos chineses, na certa trazidos pelos caminhoneiros que atravessam a fronteira. Em alguns cantos, vejo carcaças de carros depenados, provavelmente desfeitos para obter peças de reposição para outros.
A cidade inteira parece uma obra em andamento, incompleta, ou feita de forma displicente, do jeito que deu para fazer, dado o isolamento, dada a falta de recursos.
Outra coisa chamativa, mais uma vez, é a ausência quase completa, aos meus olhos, de qualquer coisa tajique. Vejo alguns militares e frases em tajique em cartazes, um deles com o inevitável retrato do presidente Emomali Rakhmon. Todavia, o pouco que encontrei parecia mais um lembrete de que estamos na saída do mundo de Rakhmon, com um pé para fora, do que um sinal de que estamos, realmente, completamente dentro do Tajiquistão. Eu esperaria uma maior presença do estado tajique impondo sua dominância cultural para tornar esta região menos "diferente". Aqui todos parecem quirguizes, todos usam o ak kalpak. O dono do lugar onde passamos a noite, a dona do restaurante onde jantamos, vendedores no mercado, pessoas na rua.
Talvez justamente essa dominância étnica quirguiz em Murghab e outras cidades do leste do Pamir explique o descaso de Dushanbe com elas. O descaso pode ser interpretado com o medo do governo central em mexer em um vespeiro. Se impor aqui poderia significar (no caso da adoção de uma estratégia truculenta, algo previsível em se tratando de Rakhmon) tentar tornar orgulhosos quirguizes menos quirguizes. Ou tomar suas terras, ou doá-las para assentamentos de tajiques. Claro que isso poderia acabar mal. O descaso também pode ser interpretado como um desprezo, uma arrogância de Rakhmon: "Se eles não estão do meu lado, não vou ajudá-los". Ou como o resultado da estratégia de Rakhmon de priorizar recursos para sua base eleitoral, em Kulob ou na capital. No sul, nas margens do rio Panj, onde o estado tajique parece também ausente, a população tem o Aga Khan para ajudá-la. Aqui, não. Não tem nada. Imagino que muitos tenham saudades dos tempos soviéticos ou acalentem regularmente sonhos de revolta, com a paciência se esgotando com tanta falta de envolvimento do governo central. Essa raiva retroalimenta o descaso do governo, e surge uma bola de neve.
Mais um legado negativo dos mapas soviéticos, outro trauma eternamente varrido para debaixo do tapete, sem solução à vista.
* * *
Nosso sonho de passar uma noite em uma iurta foi adiado.
À tarde, paramos no escritório de uma agência local de turismo comunitário (mais um eco do Quirguistão - lembro de minha experiência com turismo comunitário em Tamchy). Decidimos perguntar se havia algum acampamento de iurtas ainda montado para passar a noite nos arredores da Murghab, nas lindas montanhas. Novamente, no escritório, todos quirguizes. Lá dentro, encontramos à venda diversos livros sobre artesanato quirguiz (tapetes, chapéus, bolsas); um visitante, um velhinho, com o ak kalpak, e duas funcionárias quirguizes muito simpáticas, uma delas com uma fluência incrível em inglês.
Ela nos explicou que os acampamentos com as iurtas são montados pelos seminômades quirguizes para lá passarem o verão e, como estávamos no final da estação, muitos já tinham voltado a suas casas para passar o inverno nas cidades. Ela também disse que achava improvável que nós encontrássemos qualquer acampamento de iurtas ainda de pé no próprio Quirguistão, para onde vamos. De fato, nos nossos passeios de carro nos campos próximos a Murghab, como quando fomos ver os maguilas, não vimos nenhuma iurta. Só dentro das cidades, colocadas em alguns terrenos - como, por exemplo, a usada pelo dono da hospedagem onde passamos a noite em Murghab, que aluga a própria casa para os turistas e dorme na iurta quando a casa está tomada.
Depois de visitar o centro de turismo comunitário, voltamos a explorar a região. Seguimos por uma estrada de terra que tomava o caminho de um sereno vale rumo oeste, por onde passa um rio verde, um verde límpido, quase surreal. Novamente, cruzamos com iaques, mas, desta vez, não à distância. Um rebanho inteiro cruzou a estrada, quase atropelou nosso carro.
Depois que os gigantes peludos se foram em direção ao rio, continuamos com o carro até um povoado e de lá pegamos outra estrada menor até um ponto em que essa estrada se estreitou de tal forma que não dava mais para seguir. Havia virado uma trilha à beira de um riacho que descia das montanhas em direção ao rio maior que vimos antes.
O motorista nos disse que, seguindo a trilha, que subia de forma leve até onde eu podia ver, havia uma antiga fonte termal onde dava para se tomar banho. "Só uma hora de caminhada", disse. Também até onde eu podia ver, a trilha logo se transformava em um desafio de pular de pedra em pedra.
A aventura não me atraiu e, pela segunda vez, tomei uma decisão à revelia do grupo. Eles seguiram para a suposta fonte (não sabia se o "uma hora" realmente era ou não uma estimativa realista do motorista, péssimo de estimativas, como já ficara provado anteriormente). Eu, sozinho, decidi seguir no sentido contrário, para baixo, à beira do riozinho até o povoado que passamos no caminho, tirando fotos da flora e parando para ver com mais calma a beleza ao redor, com tempo para gastar, tranquilo, sem conversa, sem pedras para se equilibrar.
À beira do regato, muitas flores e folhas já tinham secado e outras estavam secando, anunciando a chegada iminente do outono. Flores ainda coloridas ao lado de outras douradas e marrons, quebradiças de tão secas. Empolguei-me com as fotografias, explorando detalhes intrincados dos miniuniversos castigados pelo Sol, as pétalas agora condenadas, suas curvas e formas misteriosas. Em particular, me encantei com uma flor, com pétalas que mais pareciam agulhas de algodão. Leve, delicada, com formas misteriosas, diferente de tudo que já tinha visto no Brasil.
Cheguei à cidadezinha em meia hora. Encontrei uma madrassa pintada de branco, modesta, nenhuma arquitetura esplendorosa, nada mais que concreto no teto e nas paredes. Um lugar, para variar, perdido, flutuando no limbo, em um povoado onde não viviam mais que 40 almas, quase invisíveis. Só vi uma criança, brincando de pescar à beira do rio, e uns homens tentando arrumar um carro enguiçado. Quiçá a primeira leva de moradores a abandonar as iurtas de verão nas montanhas, voltando para cá para passar o inverno.
A madrassa parecia abandonada. Pela janela, tremendo com rajadas de vento, vi uma lousa com caracteres em árabe. De resto, sinais de que estava em obras: latas de tinta, pinceis. Nesta miséria, a comunidade se mobiliza para arrumar o que considera o seu bem mais precioso, uma escola.
Ao lado, o rio verde, que seguia para Murghab paralelamente à estrada que nos trouxe até aqui, e montanhas baixas se fazendo de moldura.
Tudo parado.
Novamente, imaginei como estes povoados, Murghab e Alichur, ficam durante o inverno, com um metro de neve pelas ruas. Como sobreviver? Como não morrer de tédio, de fome, de isolamento? Como não morrer de tristeza, engolidos pela escuridão e brancura?
A resposta óbvia é que todos aqui vivem para o verão, para os breves meses gloriosos de Sol e calor. E, mesmo nesses meses, a vida não está nas cidades ou povoados, está nas montanhas, nos rebanhos de iaques e nas iurtas onde vivem há séculos e séculos. Não nas cidades, que são uma invenção distante, estranhamente desconfortável neste universo.
No verão, esbaldam-se na beleza e na liberdade, para se recolherem numa hibernação espiritual durante todo o inverno. Acho muito difícil entender isso. Acho que nenhuma pessoa que não foi criada nesta cultura poderia entender. E, mesmo se entender, não poderia se adaptar.
Voltam meus companheiros de viagem. A fonte termal, aparentemente, não estava longe, e tomar banho nela foi divino. Estão os três com sorrisos deliciados nos rostos.
Chegamos de volta a Murghab no anoitecer. No hotel, macarrão. Minha saúde está ótima, estou inteiramente recuperado, finalmente, nesta minha última noite no Tajiquistão.
Osh, 4/10, 11h02
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