Wednesday, 21 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXIII): Garm Chasma

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27/9/2012

Dia tumultuado. Fui acordado à meia-noite por nossos amigos. Iker já vinha sofrendo com problemas intestinais, mas agora estava passando muito mal. Disse que estava com uma dor de cabeça insuportável e muita diarreia. Pediu para voltar para Khorog, pensando que seus sintomas pudessem ser por causa da altitude (Jelondi está a cerca de 3.500 metros de altitude). Eu, como um zumbi de tanto sono, arrumei minha mochila e fui enfrentar com eles a rodovia do Pamir na mais completa escuridão. Obviamente ficamos preocupados com o motorista, coitado, que havia dormido pouquíssimo após 10 horas de volante e chacoalhadas nas montanhas (das 8h às 18h).

No caminho, o susto maior foi causado por um caminhão parado no meio da estrada, provocando uma forte freada. Por alguns segundos, vimos a morte. Mas, mesmo com o susto, não continuei alerta durante o resto de nossa jornada de volta a Khorog. Meus olhos se recusavam a abrir. Em uma hora, talvez mais, chegamos. Fomos conduzidos ao mesmo lugar que ficamos antes, a casa dos parentes de Rozik. Nossas camas ainda não tinham sido ocupadas por ninguém.

Acordamos umas sete horas depois e então saímos para caçar um médico para Iker. O espanhol, eu, Kim e o dono da casa onde pernoitamos, Fayz. Na clínica no centro da cidadezinha, encontramos uma médica falando excelente inglês (cortesia da universidade do Aga Khan em Khorog). E ela explicou a Iker o que me parecia óbvio - seu problema não tinha nada que ver com a altura e sim com micróbios em seu trato intestinal. Receitou alguns remédios. Psicologicamente, acho que ver a médica foi excelente para meu amigo. Tomar remédios é um sinal prático de que você está tentando vencer o seu problema de saúde, o que, no caso dele, estava fazendo da viagem um inferno. Como fez da minha, especialmente em Istaravshan e Dushanbe.


* * *

Minha passagem pelo pequeno mercado de Khorog. Me perco entre as pessoas levando vegetais de lá para cá e, em um canto, acho a barraca de um afegão. Acho que foi a primeira vez que vi um afegão em pessoa. Ele era como os homens nas reportagens sobre o Talibã - barba, chapéu pakol (uma espécie de boina de lã, plana como uma panqueca), nenhum sorriso. Olhos claros, amarelos, uma cor irreal. Também acho que foi a primeira pessoa que encontrei em toda a viagem que não falava sequer uma palavra de russo. Nas cidades cazaques de Taraz e Shymkent, onde também tive problemas para me fazer entender, os jovens, que já não aprendem russo na escola, pelo menos sabem algo da língua - afinal, o cazaque foi fortemente influenciado pelo russo, todos têm familiares que aprenderam russo na escola nos tempos da URSS, todos estão cercados de russos e descendentes que continuam vivendo no sul do Cazaquistão. No caso deste senhor, ele nunca teve um contato com o universo cultural e linguístico dos vizinhos do norte. O Afeganistão nunca fez parte do império russo nem nunca foi tomado pelos soviéticos - estes, bem que tentaram, mas amargaram uma traumática derrota sob os tiros dos mujahedins na guerra dos anos 1980 (1979-1989).

Para reforçar sua ligação com o Afeganistão, o senhor, ainda por cima, vendia pakols. Peguei um à venda e me dirigi a ele em russo. A resposta foi a expressão de incompreensão completa no rosto. Acreditei que ele falava a língua afegã dari, que é muito parecido com persa. Tentei algumas palavras, mas percebi logo que o pouco farsi que aprendi em minha viagem ao Irã já se perdera. Fomos tentando, por mímicas, até que comprei o lindo pakol por 50 somoni (cerca de US$ 6).

Partimos de novo de Khorog às 13h30. Desta vez, em vez de explorar o coração das altas montanhas do Pamir, seguiríamos pela estrada, paralelamente à fronteira afegã, paralelamente ao rio Panj, rumo ao Corredor de Wakhan, o estreito braço de território afegão (parecido com um cabo de panela) que separa um território anteriormente colonizado pelos britânicos, o Paquistão, do território que pertenceu ao Império Russo.

O Corredor é uma relíquia bizarra, e talvez a mais evidente, do "Grande Jogo" geopolítico travado na Ásia Central no século XIX - aquele que levou Stoddart e Conolly a serem executados pelo emir de Bukhara. Naquela época, o Império Russo e o Império Britânico se viram disputando influência na região - influência que, é claro, se traduziria em ganho financeiro, mercados (centro-asiáticos) para as exportações russas e britânicas e fontes (centro-asiáticas) de matéria-prima para as metrópoles. De fato, a disputa do terreno por pouco não se traduziu em uma guerra. Para os britânicos, o grande medo era que os russos chegassem à Índia. Em meio à tensão surgiram lendas: viajantes-espiões que cruzavam do lado dominado pelos russos ao lado dominado pelos britânicos e vice-versa. Assim, logo ficou claro que criar uma barreira entre os territórios dominados pelos britânicos e pelos russos era necessário.

Em um dos mais divertidos romances históricos já escritos sobre o tema, Peter Hopkirk explica o nascimento do Corredor:

Londres tinha concluído um acordo com São Petersburgo que finalmente estabeleceu a fronteira entre a Ásia Central russa e o Afeganistão ocidental. Além disso, o vão do Pamir, que por tanto tempo preocupou estrategistas britânicos, tinha sido fechado. Com a aprovação de Abdur Rahman (emir afegão entre 1880 e 1901) um estreito corredor de terra, anteriormente pertencente a ninguém e se prolongando até a fronteira chinesa, havia se tornado agora território soberano afegão. Embora não mais que 10 milhas (16 km) de largura em alguns trechos - o mais perto que a Grã-Bretanha e a Rússia haviam até então chegado de se encontrar na Ásia Central - este corredor garantiu que em nenhum lugar suas fronteiras de fato se tocassem. Reconhecidamente, ele deixou os russos com a posse da maior parte da região do Pamir. Mas os britânicos estavam cientes de que, se São Petersburgo decidisse anexar a área, eles seriam virtualmente incapazes de evitá-lo.
- The Great Game, The Struggle for Empire in Central Asia, Peter Hopkirk

Lhe falta a Hopkirk um pouco de precisão, contudo. O Corredor afegão, na verdade, chega a ter apenas 13 km entre os pontos mais próximos das fronteiras tajique e paquistanesa. De comprimento, tem 350 km, e só termina quando de fato encontra a China em uma divisa curta e sem nenhum posto de fronteira. Todo o Corredor está, sem a menor sombra de dúvida, entre os terrenos de mais difícil acesso em todo o mundo. Não só não há estradas de verdade, a não ser a pela qual viajamos do lado tajique da fronteira, como também o terreno é todo tomado por montanhas altíssimas e esparsamente povoado. Nos últimos anos, a fama de guardar extremistas do Talibã e plantações ilegais de papoula afastou ainda mais os visitantes. Entretanto, o local tem grande potencial turístico. Além de belíssimo, provavelmente teve importância histórica como parte da Rota da Seda, e há estudiosos que acreditam que foi por ele que Marco Polo fez a travessia para a China no século XI.

Seguindo para o corredor, voltamos a ter uma boa visão de vilarejos afegãos perdidos do outro lado do Panj, nosso companheiro constante à direita da estrada. As casinhas de barro simples, burros e altos montes de feno. À distância, os montes parecem pequenas pirâmides, anexos estranhos às casas, como torres de castelos.

Desta vez, a jornada foi curta. Às 15h, chegamos ao sanatorium de Garm Chasma, um complexo hoteleiro ao lado de uma fonte natural de água sulfurosa. Novamente, uma visão irreal. O carro se aproxima do complexo e logo se vê uma formação geológica multicolorida, na certa criada pelo acúmulo de minérios e enxofre expelidos pela fonte termal. Lembra uma grande colmeia, mas seu tamanho, com uns três metros da altura, não deixa que se acredite facilmente que se trata de um trabalho da natureza.

O forte cheiro de ovo podre toma o ar juntamente com a névoa quente, saindo da colmeia. Na entrada da fonte, uma placa estabelece horários alternados para que homens e mulheres possam se banhar. Percebemos que o último horário para o banho masculino já havia passado. Ficamos de provar o banho de ovo podre no dia seguinte, de manhãzinha.

Faço um passeio pelo vilarejo ao redor da fonte, um lugar muito pobre, com casinhas muito simples, todas as ruas de terra, todos os moradores, trabalhadores do campo. Passando por algumas casas, cheguei perto, finalmente, das pirâmides de feno que vi à distância no lado afegão. São alimentadas por mulheres com roupas coloridíssimas que cruzam as ruas de terra como formigas, carregando com velocidade imensos fardos de palha nas costas. Há muitas crianças brincando na rua, muitas cabras, poucos carros.

Na volta para o hotel, já escurecendo, temperatura baixando, jantar simples - um prato com arroz, uma espécie de hambúrguer e salada de tomate e pepino. Caiu muito bem. Na cama, dois edredons. Seguramente menos de dez graus durante a madrugada.

Garm Chasma, 28/9, 6h52

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Sunday, 18 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXII): Jelondi

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26/9/2012

O Pamir é ao mesmo tempo fértil e estéril, ao mesmo tempo habitável e desolado, ao mesmo tempo sorridente e repulsivo, de acordo com o ponto de vista de onde ele é observado. Ele está entre os paradoxos intencionais da natureza.
- The Pamirs and the Source of the Oxus, George Curzon, 1896

A 4.200 metros de altitude, as montanhas, mesmo as mais distantes, parecem mais próximas. O ar vem sob o efeito da neve nos picos, às vezes dolorosamente gelado como os glaciares eternos nas alturas, às vezes apenas frio e tolerável, refletindo o degelo do verão.

O carro sacode em uma estrada mal marcada, praticamente inexistente. Nenhuma casa. Dos dois lados, tudo quase plano - um ligeiro declive do meu lado esquerdo. Vejo pela janela dezenas de ovelhas pastando. Além das ovelhas, além do declive, as montanhas nevadas, perto e longe. E mais além ainda, picos fabulosos. O motorista me fala que são os picos Karl Marx (6.723 metros) e Engels (6.507).

Paramos o carro para olhar ao redor. De repente, surgem entre as ovelhas três cachorros. Um deles, muito tímido e mais velho, quase não chegou perto. Outro chegou, mas ficou só olhando, desconfiado. O terceiro, um castanho, se jogou sobre nós, querendo cafunés.

Chega o pastor, o dono dos cães e das ovelhas. Cajado, olhos profundos, pele vermelha e negra, curtida até o limite pela secura imensa deste planalto, pelo frio imenso, pela altitude, pelo ar rarefeito. Quieto, com roupas ocidentais, jaqueta, boné, sujo, coberto de poeira, quiçá uma película protetora, uma armadura. Talvez 60 anos, o que parece, provavelmente pouco mais do que 40.

Sem sorrisos. Aproxima-se, saúda. Fala baixo, lento, russo com pouca fluência. Perguntamos e aponta o caminho para Jelondi. Agradecemos dando-lhe o que pede, cigarros, pelos quais também agradece. Calmamente, se afasta. Os cães o seguem. Afastam-se no meio do nada. Para onde? Nenhum lugar. Estamos no meio de lugar nenhum.

Tresmalha-se no nada com seus cachorros, suas ovelhas, seu mundo tão, tão distante de mim, dos meus companheiros, de qualquer fronteira, de qualquer país.

A 4.200 metros, algumas pessoas sentem rapidamente os efeitos da altitude. Entendo que isso varia de organismo para organismo - uns mais, uns menos, uns hoje, uns amanhã, uns nunca. Iker e Kim sentem um pouco de dor de cabeça, além do desconforto intestinal que já vinha de antes. Estou ótimo. Um pouco enjoado, mas sentar atrás em um carro em estradas-terremoto costuma ter esse efeito em mim, mesmo à beira do mar.

Seguimos explorando o chamado vale de Shokh Dara, um dos principais da região oeste do Planalto de Pamir. O caminho tem pedras, alguns riachos formados por degelo, vegetação rasteira que parece esponja de aço e vento. Nada mais que isso. Nosso guia/motorista jurou que conhecia bem as redondezas, mostramos a ele no mapa o que queríamos ver. Mas a estrada é tão pouco usada e tão tênue que logo achamos estar perdidos. Não... está confirmado. Estamos perdidos. Não tem como não estarmos perdidos.

O motorista parece tenso.

Paramos mais uma vez, em um trecho de suave declive. Baixamos um pouco, estamos a 3.800 metros. Apesar do Sol, a temperatura está em 8 graus, sem contar o efeito do vento. Aqui, nem ovelhas, nem cães, nem aves. Pedras, vegetação de altitude e, a uns 300 metros de nós, o que parece ser uma casa feita de pedras, mas sem telhado, com um muro na frente, quase desabando. Às vezes o vento para. Nesse caso, o silêncio só posso ser o mesmo do de um planeta rochoso sem formas de vida. Marte, Mercúrio.

Surgem então mais extraterrestres. Um velho e sua mulher. O velho com a barba branca curta e a mesma pele do pastor que encontramos antes, dolorosamente queimada, vermelha enegrecida, um couro com rugas profundas como vales. Parece quase sem forças, se aguentando de pé porque não há outra opção para sobreviver. A mulher, mais jovem, olhos puxados e pele menos castigada, com as roupas coloridas das mulheres centro-asiáticas. Um sorriso lindo o dela, sincero, mas também extremamente cansado, beirando a exaustão. Suas rugas me dão a impressão de que ela deve ter uns 50 anos. Se a idade que lhe dou é uma ilusão causada pelo meio ambiente hostil e pelo cansaço, talvez até seja filha do velho. Por perto, nada de gado, nem de plantações (nas montanhas do Pamir não há agricultura, não há planta que aguente este chão, este clima).

De onde vieram essas pessoas? O que fazem aqui? Como sobrevivem? Tudo me pareceu meio inconcebível, meio irreal. O velho, caso tenha gado perdido pelo altiplano, teria energia para ir correndo atrás de reses perdidas? Falam russo muito mal, pouco posso entender. Não me atrevo a fazer perguntas. O motorista fala com eles e depois me confirma que viviam mesmo do gado, o gado invisível.

O motorista pede a eles que nos indique o caminho correto para Jelondi, como fizera antes ao encontrar o outro extraterrestre. É naquela direção, só seguir (apesar de não haver estrada visível). Agradecemos. E, antes de partirmos, eles nos convidam para o chá, querem que entremos na casa feita de pedras e sem teto. Agradecemos efusivamente, mas recusamos. O velho e a mulher sorriem de novo. Essas pessoas, tão pobres, provavelmente passando fome, quiseram dividir conosco o pouco que têm.

As neves nunca chegam a descongelar completamente por aqui, nem no verão. O que seria então este lugar no auge do inverno? O carro segue e estamos agora contra o Sol. O Sol é uma explosão branca, a altitude lhe dá mais força.

Cruzamos com um par de iaques. Nunca havia visto iaques, essa estranha criatura, um bovino com chifres aterrorizantes e um pelo longo e em várias camadas, conhecido por ser uma das criaturas mais adaptadas a esta desolação. Alguns são maiores do que o maior touro. Os dois não ligam para nós, pastam, apenas pastam.

O caminho quase invisível nos conduz à beira de um rio, embaixo de um forte abandonado. No Pamir há vários fortes e fortalezas, ruínas perdidas cuja história nem mesmo os locais conhecem direito. Mas todos lembram do comunismo. O legado soviético é evidente por causa de um único detalhe - eletricidade. Por toda parte há torres de transmissão. Lembro da obsessão soviética com eletrificação rural. Poucas coisas têm tanto sentido de civilização quando a luz elétrica.

Aqui, a cor do terreno mudou. Tudo no chão é marrom-alaranjado, cor de terra, até mesmo os arbustos rasteiros. Realmente, lembra Marte. Em algum lugar deste planeta vermelho fica Jelondi. Vamos em frente.


* * *

Mais cedo, passamos pelo povoado de Roshtkhala, no fundo do vale de Shokh Dara, não muito distante de nosso ponto de partida em Khorog e antes de entrarmos na estrada perdida pelas altas montanhas do Pamir.

Em Roshtkhala encontramos a primeira fortaleza do dia, pequena, com passado obscuro, no alto de uma colina. Mal conservada, hoje é apenas palco de brincadeiras das crianças. Ela dá nome ao lugar (Roshtkhala significa "fortaleza vermelha").

Encontramos uma família morando ao pé da fortaleza em uma casinha bem humilde. Se para os que vivem mais para o alto a agricultura não é uma opção viável, aqui o solo não é tão pobre e permite um plantar alguma coisa. Acompanhamos um pouco da rotina da família. Irmã mais velha, irmã mais nova e irmão pequeno, respectivamente uns 17, 12 e 10 anos, vasculham o solo para colher batatas. O irmãozinho usa uma pá, cava, as meninas enfiam as mãos na terra e colocam as batatas que encontram num balde.

Ao lado, o pai, com uma vaca e um arado. A vaca puxa o arado, abrindo sulcos na terra. Numa estrada ao lado da família, pastores passam tocando suas ovelhas. Como o gado levanta muita poeira, os pastores cobrem o rosto com panos, deixando apenas os olhos de fora. Passam por nós, olhos expressivos, curiosos. Colocam a mão direita no peito para nos saudar, como é costume por aqui.

As duas meninas da família das batatas, lindíssimas, poderiam ser modelos em outro mundo. Todos juntos, o pai, o garotinho e elas, posam para nossas fotos. Sorriem.

Não acho que lamentam viver na pobreza. Provavelmente não conhecem outra existência. Parecem felizes e tranquilos. E encontrá-los nos fez todos mais felizes, mais tranquilos.


* * *

Em Jelondi, passamos a noite em um balneário, um hotel com piscinas aquecidas, chuveiros, um restaurante e camas para passar a noite. Um estabelecimento para relaxar muito comum na antiga União Soviética, chamado em russo de sanatorium.

Em um lugar remoto como este, é um paraíso. Depois de horas perdidos no altiplano, no anoitecer encontramos a rodovia do Pamir, o principal referencial da região. O sanatorium estava à beira da estrada. Estacionamos o carro e puxamos os capuzes das jaquetas para enfrentar o vento cortante até a entrada do lugar - do lado de fora, parecia apenas uma casa bem grande, com um só andar.

Entrar naquele ambiente quente e úmido foi um grande prazer. Quartos coletivos nos esperavam. Tudo muito simples - cama, cobertor, travesseiro, lençóis limpos, um prato de feijão com macarrão bem quente, chá preto para acompanhar. Algum conforto. Enquanto meu peito se aquece mais tarde sob as cobertas, penso no primeiro pastor que encontramos, aquele a quem demos cigarros. No casal que encontramos depois, o velhinho de barba branca e a mulher, sorridentes, mas exauridos. Penso na família das batatas, nas meninas lindas. Aparições no meio do nada. Como estarão passando a noite?

Jelondi, 26/9, 21h

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Wednesday, 14 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXXI): Khorog

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25/9/2012

Fim do verão. São 11 horas, o Sol está forte, mas o ar é fresco. Uma suave brisa passa entre as árvores em direção ao vale, com a cidade, lá embaixo. Estou em um pequeno mirante nesta terra estranha de montanhas peladas.

Aqui no alto, afastado do resto da Khorog, vivem cerca de 2 mil espécies diferentes de plantas. É o jardim botânico da cidade. Tudo está colorido, há flores de todas as formas, um aroma doce no ar. As árvores, carregadas de frutas. Encontro uma macieira cheia de suculentos vermelhos, tentadores vermelhos. Foram maçãs assim que geraram o pecado original. Sinto um desejo louco de afundar meus dentes nessas tentações, mas não quero correr o risco de ser expulso, caso seja proibido.

A associação com o Éden me leva rapidamente para outro lugar, na minha cabeça. Shangri-Lá, a cidade tibetana oculta do livro Horizonte Perdido, de James Hilton (1933). O lugar mais secreto dentre os locais secretos. O mais mágico. Uma cidade em um vale em que o isolamento traz harmonia, felicidade, imortalidade aos nativos.

E na Shangri-Lá Khorog, o jardim botânico é um tesouro. Um local tranquilo, quieto, colorido, perfumado. Perfeito para horas de contemplação. Me sento e ouço o farfalhar das folhagens. Em apenas uma árvore, adiantada, anuncia-se a nova estação se aproximando. Está toda amarela.

Eu e meus companheiros de viagem cortamos o barulho das folhagens e da brisa com risadas. Rimos tirando fotos, com os olhos semifechados por causa do clarão do Sol, mostrando o resultado dos cliques uns aos outros, fechando a jaqueta para conter a entrada do frescor. Nossa, quanta foto bonita. Impossível tirar uma só.

A vista também é muito bonita. Khorog (veja o vídeo abaixo), a uma altitude de 2.123 metros, fica protegida pelos paredões de pedra que foram se apresentando durante toda a odisseia que foi a jornada desde Dushanbe. E, serpenteando por ela, um rio esmeralda, como espinha dorsal, e álamos, esticados, como golpes de pincel em uma tela. Seu parque principal, lá embaixo, perto do meu hotel, é uma assembleia de álamos. Tantos juntos, não lembro de ter visto antes.



Nos despedimos do alto paraíso para voltar a Khorog. Pegamos uma carona que tivemos sorte de encontrar. Os locais são simpáticos conosco. Doces, atenciosos. Muitos falam inglês. No carro, conhecemos um jovem que diz trabalhar para uma empresa de telefonia e uma moça que trabalha com ele. Os dois estavam vestidos como muitas pessoas que trabalham se vestem no Brasil - o homem, de gravata e roupa social, a mulher, com saia e blusa com um decote discreto. Falavam inglês excelente e nos levaram exatamente onde queríamos ir, a avenida principal da cidade, perto do parque dos álamos. Sorrisos e uma sensação de que eles estavam felizes de nos ver - de que estavam felizes de ver novamente visitantes por aqui.

Penso como é surreal que, há meros três meses, pessoas morreram baleadas em um confronto armado pelas ruas de Khorog. Nestas mesmas ruas tranquilas, habitadas por gente calma e hospitaleira. Tudo está na mais completa paz. Paz até demais. Fico pensando se estamos apenas arranhando a superfície.

Depois fica claro que sim. Há algo sinistro, além das amenidades.

Na cidade, finalmente, encontramos o motorista particular que vai nos levar pelo resto do Pamir. Um sujeito jovem, baixinho, fala rápida. Converso com ele, ele diz que é quirguiz e que sua família é do norte, de Murghab, para onde vamos. Fluente em russo, quirguiz e tajique, mas não fala uma palavra de inglês e fica aliviado em saber que eu falo algo de russo. Ficamos no meio-fio, em frente ao mercado, perto do parque, na avenida principal. Eu, Iker, Kim e ele, combinando os próximos passos. Sairemos no dia seguinte, bem cedo. Tudo certo.

Eis que surge um amigo do motorista.

O amigo o cumprimenta. Pergunta a ele, sério, em russo, quem somos. Apesar de eu estar do lado do motorista, não me saúda. Ao descobrir que somos estrangeiros, reage de uma forma muito estranha. Ele fala para o motorista, dando risadinhas, algo que não consigo entender - não acho que era russo. Em seguida, aparentemente em uma piada para o amigo, com a mão esquerda fazendo um gesto imitando um revólver, encosta o indicador na minha testa. Flexiona o polegar. Fala "bang". Dá uma risadinha final, olhando para o motorista, fala mais algo que não entendo. O motorista só olha e não fala nada. O observamos atravessar a rua e se afastar, em silêncio. Surgiu e desapareceu como se nunca tivesse existido, sem ter me dirigido a palavra.

O motorista não conseguiu explicar o que aquilo significava, ou eu não consegui entender a explicação dele. Mas parecia evidente que o homem havia dito que estávamos em risco. Onde? Por quê? Pura piada do homem? Muitas teorias, muitas respostas possíveis.

De noite, no hotel, eu, Kim e Iker voltamos a analisar os moradores de Khorog.

Kim havia voltado de comprar cigarros. "A atmosfera está pesada", disse. No mercado, encontrou olhares desconfiados em sua direção, risadas pelo canto das bocas. Desconhecidos, na rua, lhe pediram cigarros. Estavam bêbados. Perambulavam sem destino, cambaleantes, falando alto. Kim voltou o mais rápido que conseguiu para o hotel.

"Este lugar, tem algo muito errado por aqui. A tensão ainda não acabou", disse o singapurense, veterano de viagens por lugares machucados da Ásia.

Detalhes, impressões, sensações. Coisas para coçar a cabeça.


* * *

Este lugar deve muito ao Aga Khan. Trata-se de uma peculiaridade do Pamir.

No Brasil, poucos sequer ouviram falar no Aga Khan. Trata-se do líder de um dos inúmeros braços da religião muçulmana, o ismailismo Nizari. Trata-se de uma corrente do Islã xiita - ou seja, eles acreditam numa cadeia de sucessores místicos de Maomé, entre os quais o genro e primo do Profeta, Ali - para eles, o primeiro Imã (sucessor de Maomé). No entanto, diferentemente daqueles que compartilham da visão majoritária entre os xiitas, de que existem 12 imãs, os ismailitas nizari discordaram sobre quem deveria ser o sétimo Imã e, a partir daí, seguiram uma corrente separada de líderes espirituais. Dentro do ismailismo, existem por sua vez outras correntes. Os nizaris têm como líder o Aga Khan IV, o príncipe Shah Karim Al-Hussaini, o 49º da linha sucessória de Imãs dos ismailitas. Nascido na Suíça em 1936, milionário, ele é um empresário que se dedica a causas beneficentes e ao fortalecimento das instituições ismailitas em todo o mundo, para benefício dos seus estimados 15 milhões de seguidores.

Como o ismailismo passou a ser a religião predominante no Pamir é uma história interessante. Na Ásia Central inteira, a maioria dos muçulmanos segue a corrente sunita do Islã. Mas não aqui.

Durante a história da religião muçulmana, visões dominantes da fé foram empurrando outras para longe por meio de matanças e perseguições, da mesma forma que empurravam outras religiões. Os zoroastristas, por exemplo, que têm seu berço espiritual na Pérsia e no Afeganistão, foram praticamente eliminados nessas regiões (ainda restam muitos no Irã, mas nada comparado com o que eram no passado) e acabaram se fixando na Índia, onde encontraram um berço de tolerância e proliferaram (lá, são chamados de parsis). No caso dos ismailitas, missionários se tornaram especialmente influentes durante a dinastia persa samânida (a de Ismail Samani, nos séculos IX-X) a ponto de um dos emires ter, acredita-se, chegado a se converter. Há estudiosos inclusive que dizem que algumas das grandes mentes daquele tempo, como Avicena (980-1037) e Al-Biruni (973-1048), teriam sido ou ismailitas ou influenciados pelo ismailismo.

Posteriormente, a queda dos samânidas foi sucedida por impérios com o fanatismo sunita, como o dos gaznévidas (962-1189) e o dos seljúcidas (1034-1300), que perseguiram os ismailitas, forçando-os a se estabelecerem nos confins do império, em regiões isoladas, como o Pamir. Nessa época, um dos mais importantes intelectuais ismailitas, Nazir Khusraw (1004-1088), autor de um importante livro de viagens pelo mundo islâmico chamado Safarnama, se estabeleceu por aqui. Um líder local, que havia se convertido, ajudou em seus esforços proselitistas e firmou as montanhas como um bastião e um refúgio para os seguidores da vertente xiita. O fato de eles terem sobrevivido aos séculos com certeza se deve ao isolamento, mesmo durante os anos soviéticos.

O Aga Khan investiu milhões de dólares em projetos para beneficiar seus fiéis centro-asiáticos por meio de sua ONG, a Rede de Desenvolvimento Aga Khan (Aga Khan Development Network). Uma universidade e o parque do centro de Khorog, por exemplo, são atribuídos a ele. Não é de se estranhar que o Khan e o presidente tajique travem uma guerra silenciosa pelo poder em Gorno-Badakhstan. Mas, enquanto Rakhmon é quase esquecido em Khorog, o Aga Khan está em cada canto, nas conversas, com as pessoas mostrando gratidão pelos investimentos e carinho pelo líder toda vez que o mencionam.

Por outro lado, a presença do poder "oficial" de Dushanbe se dá principalmente pelos antipáticos soldados nas ruas e pelos igualmente antipáticos cartazes com a face do presidente, ainda assim menos numerosos do que vi no norte do país ou na capital. Algo imposto. Algo que os locais parecem querer esquecer.


* * *

De pijama, escovando os dentes, troco lamentos com Kim e Iker, todos falando sobre nossos probleminhas de saúde. Os dois enfrentam uma diarreia, especialmente o espanhol. Eu, por outro lado, finalmente me libertei de minha prisão de ventre, depois de tomar um laxativo. Parece ser impossível ter uma longa viagem com mochila e pouco dinheiro pela Ásia sem enfrentar, em algum momento, algum mal digestivo. Mas estou bem, tranquilo, empolgado, respirando o ar puro do paraíso, a caminho de outros paraísos no teto do mundo.

Khorog, 25/9, 22h17

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Sunday, 11 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXX): Khorog

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24/9/2012

A planície é chamada PAMIER, e atravessa-se ela cavalgando durante 12 dias seguidos, encontrando nada a não ser deserto sem vivendas ou qualquer coisa verde, de forma que os viajantes são obrigados a carregar consigo o que quer que venham a precisar. A região é tão elevada e fria que você não consegue ver quaisquer pássaros voando. E eu devo notar também que, por causa do grande frio, o fogo não brilha tanto, nem produz tanto calor quanto de costume, nem permite cozinhar a comida tão efetivamente."
- Travels of Marco Polo (século XIII)

No caminho.

O carro desce um vale profundo. Estamos em uma montanha de terra seca. Terra ocre, terra avermelhada. Alguns arbustos.

À direita, lá embaixo, bem longe, um pequeno rio vai ziguezagueando em direção a um maior, com uma água bem cinza.

Muita poeira lá fora. Sol forte. Nenhuma nuvem.

O grande rio cinza vai aos poucos se aproximando do nosso possante veículo 4x4, uma espécie de jipe.

Muitas, muitas curvas. Continuamos descendo devagar. Pulando com os buracos da estrada horrorosa.

O rádio toca música pop em alguma língua que nem sei qual é. O motorista segue quieto, concentrado.

Todos no carro estão sem abrir a boca. Se ouve apenas a música e pedras pequenas e grandes colidindo sem parar com a parte de baixo do carro.

Uma hora depois, chegamos lá embaixo. O grande rio toma sua posição à direta. Do meu lado.

Olho ao redor pela minha janela. Pelo para-brisa. Pela janela da esquerda.

O cenário é de arrepiar. Literalmente. Minha pele congela por alguns segundos. Além do rio, no lado direito, picos altíssimos de pura pedra, os mais altos que já vi. Também vejo o mesmo do lado esquerdo, beirando a estrada. E à frente, por onde vai o nosso caminho, mais montanhas.

Em vários momentos, me esforço para tentar enxergar, dentro do carro, o cume dos picos, à direita ou à esquerda, e não consigo. Vejo apenas paredes de pedra.

A estrada é realmente muito dura. Asfalto em pouquíssimos trechos. Na maior parte, cascalhos, rochas. Buracos imensos. Terra que vira poeira. Ao avançar, estamos criando uma nuvem de poeira cinza. Se estivesse chovendo, duvido que qualquer carro passasse por aqui.

Seguem-se as horas.

No caminho, mais, mais, mais montanhas altíssimas. A estrada continua beirando os pés dos picos e o rio.

De vez em quando, o caminho passa por pequenas planícies de pedregulhos que se abrem entre as paredes de pedra e a água. É onde algumas pessoas têm suas casinhas. Gente muito isolada, gente muito pobre. Gente desconhecida com olhos no carro como se o carro fosse um milagre. Vê-se apenas mulheres e crianças. Viram-se para ver o veículo chegar. E viram-se para respirar a poeira e ver o veículo passar. E misturam-se ao cinza. E viram cinza, poeira.

Após uma curva, o rio fica mais raso e amplo. Cria-se uma praia de cascalho e mais um espaço para um vilarejo. Vamos chegando e aparecem apenas crianças. Aparecem do nada, antes mesmo de podermos discernir qualquer casa. Trazem baldes com maçãs muito vermelhas. Trazem colares feitos com sementes de pistache. Risonhas, mas muito sujas, miseravelmente sujas. E com roupas coloridíssimas, como que para ajudar a diferenciá-las da poeira. As meninas com seus vestidos longos, alguns vermelhos, outros verdes. Vejo, depois, um outro grupo, só de meninos. Nos enxergam, estão perto das casas do vilarejo, e vêm correndo na nossa direção. Na corrida, suas sandálias quase escapam do pé. Não trazem nada para vender. Querem apenas nos ver. Sorriem.

Pouco depois, três vacas cismam em tomar o meio da estrada. Esta estrada é delas, não nossa. Devagar, vão-se as vacas, os meninos, as meninas. Vão-se maçãs e pistaches. Vai-se o vilarejo como se nunca tivesse existido. Talvez não tenha.

Voltam as montanhas, apenas as montanhas e o rio Panj, à direita (veja mais um vídeo com um panorama da região abaixo).



Do outro lado do rio, a terra proibida do mundo perdido. Meu celular está ligado, com um chip que comprei no Cazaquistão. De repente, algo surreal. Ele treme no meu bolso. Olho, é um torpedo, em inglês. Um torpedo? Quem me mandaria um torpedo? Abro para ler. É do serviço de roaming. Bem-vindo à Roshan. Fique com a Roshan para usufruir da maior rede de cobertura. Aproveite bem sua visita ao Afeganistão. Pela segunda vez nesta jornada desde Dushanbe, um longo arrepio. A confirmação de que, do outro lado do rio, está a terra do Talibã.

Do lado tajique ao afegão, por quilômetros e quilômetros de estrada que vamos vencendo, não encontramos nenhuma barreira, nenhuma cerca, nada. Só o rio. Diria que é fácil de atravessar, com uma pequena canoa ou mesmo a nado, mas não dá para saber a força da correnteza. Do outro lado, surgem lá e cá casinhas afegãs, isoladíssimas. Depois, um vilarejo. Depois, outro vilarejo. Não vejo neles, à distância, nenhuma alma viva. Parecem cidades fantasmas.

Ninguém parece patrulhar esta fronteira. Se há traficantes operando entre os dois países, eles não devem ter muita dificuldade de cruzar por aqui. Contudo, quem quer que venha para cá com o objetivo de traficar drogas ou armas entre um país ou outro deve enfrentar dois problemas sérios. Um é justamente o isolamento. Chegar a esta fronteira com uma carga não deve ser fácil. Mesmo as cidades afegãs mais povoadas que ficam perto daqui já são isoladas dentro do país pela geografia das montanhas. E o segundo problema é que, dizem, essa fronteira está salpicada de minas terrestres.

Todos gostariam de parar, tirar fotos, esticar as costas. Mas melhor não parar o carro.

Seguem-se as horas.

Lá pelas 22h, tudo escuro, estou conversando com Iker em espanhol - incompreensível para Kim, o motorista e mais um homem e um casal de pamiris que viajam conosco.

A conversa é interrompida. Nós dois nos calamos olhando para frente, vendo o que parece ser o céu negro profundo com estrelas, com um brilho puro que eu nunca havia visto. "Olhe o céu!", digo a Iker.

"Não é o céu", responde, deslumbrado. "É o Afeganistão!".

Estico a cabeça e vejo o céu, claro por causa da Lua crescente quase cheia, sem estrelas. Em baixo, as montanhas criam sombras sobre si mesmas, escondendo completamente as casas do outro lado do rio, menos a luz dentro delas. O firmamento que vimos era o mundo apagado com algumas estrelas caseiras. O universo se inverteu.

Nosso carro, com os faróis, se transformou em um brilhante cometa.

Por volta da 1h a Lua foge para o Brasil, desaparece do nosso céu. O motorista não aguenta mais e para o carro para urinar. Para, repentinamente, no meio da estrada, freia e desliga o motor, só deixando os faróis.

Até onde posso ver no breu, as montanhas ainda altíssimas nos cercam completamente. Somos um nada perto desses titãs. Se o carro é um cometa, somos poeira cósmica. E por falar em estrelas, elas, de verdade, finalmente aparecem. Vejo as Plêiades, vejo Alderbarã, tudo com irreal nitidez. Sinto uma alegria boba de reconhecer algo, as estrelas, nesta dimensão.

As estrelas, como setas, indicam o caminho. Mais estrada, mas falta pouco.


* * *

Pamir. O nome evoca isolamento a um ponto que as duas palavras, Pamir e isolamento, poderiam ser usadas como sinônimos. O local talvez seja de mais difícil acesso que as montanhas do Himalaia, que o próprio Tibete. E talvez seja ainda mais desconhecido - visto que tantos são atraídos ao Himalaia por causa do Everest, e tantos outros ao Tibete pela projeção internacional do Dalai Lama, pelo impacto do romance e do filme Sete Anos no Tibete, pela popularização do Budismo tibetano. Enquanto esses locais têm uma identidade com projeção no mundo atual, que se pode dizer do Pamir? No Ocidente, o local aportou no relato de Marco Polo. E até hoje esse relato permanece sendo a maior referência para ele.

Acho que ninguém sabe ao certo o que é o Pamir. Eu mesmo me incluo entre os ignorantes. Sempre imaginei que Pamir fosse o "Planalto de Pamir", uma região de altiplano. Mas essa é apenas uma parte dele. O Pamir é também um conjunto de altas montanhas entre China, Tajiquistão e Afeganistão.

Geograficamente, no Tajiquistão, há duas regiões distintas do Pamir. Mais a oeste, nas imediações de Khorog, há montanhas imensas e vales profundos onde vivem comunidades que, tradicionalmente, falam dialetos diferentes em cada vale. Culturas com restos de civilizações antiquíssimas, preservadas pelo isolamento. No leste do Pamir tajique, têm-se o altiplano em si, imortalizado pelo nome persa Bam-i-Dunya, "Teto do Mundo", passando dos 4 mil metros. Há quem chame a região de "montanhas Pamires", ou "Pamires". Prefiro chamá-lo de "o Pamir" como se diz "o Himalaia" ou "o Tibete". Pois são montanhas, são altiplano, são vales, são uma diversidade geográfica, cultural. São um micromundo.

Para complicar, o Pamir é dividido em vários "Pamires". Os mais conhecidos são o Pequeno e o Grande Pamir, ambos na parte oriental, incluindo partes do Tajiquistão e do Afeganistão. Se fala também de Pamir de Taghdumbash (na China), Pamir de Sarez (região da cidade tajique de Murghab), Pamir de Alichur (perto do vilarejo tajique do mesmo nome) e outros. Todos micromundos dentro do micromundo. Todos desconhecidos, todos, acenando ao intrépido viajante.

Até o nome vem carregado de mistério. Difícil descobrir que começou a chamar essa região de "Pamir". O nome aparentemente vem do persa antigo, com o significado de "pastagens onduladas", provavelmente associado ao panorama do altiplano. Por outro lado, os chineses se referem a esta região como "Montanhas das Cebolas" ou "Cordilheira das Cebolas", devido a cebolas selvagens supostamente encontradas no solo da região.

Para ir de encontro a este mundo, saímos de Dushanbe às 9h numa gloriosa manhã, tempo maravilhoso. Paramos para almoçar por volta das 13h no sul tajique, na cidade de Emomali Rakhmon, Kulob. Depois, só paramos para jantar, em Kala-i-Khumb, já em plenas montanhas do Pamir, às 19h. Aqui, me informaram que ainda teríamos umas sete horas de curvas. E nesse trecho final fizemos uma pausa apenas mais uma vez, para o motorista se aliviar.

Quando chegamos a Khorog são 2h30 da manhã. Estamos demolidos, exaustos. Faz frio, menos de dez graus. Cada osso do meu corpo solta um suspiro de alívio quando deito na cama da hospedagem providenciada por Rozik na casa do sogro dele. Uma cama quentinha, cheia de cobertores vermelhos.


* * *

Além do puro desgaste físico da estrada, a épica travessia foi pontilhada por encontros desagradáveis com policiais e militares. Nos povoados pelo caminho, vimos pelotões de homens com fuzis marchando, mesmo no meio da noite, no luar. E a cada dois ou três povoados, enfrentamos um bloqueio policial na estrada. Alguns dos policiais pediram nossos passaportes e, é claro, desconfiamos que a demora em liberar nosso carro se devia à ganância ao ver os "endinheirados" estrangeiros.

Apenas um bloqueio, porém, nos trouxe dor de cabeça de verdade.

Perto de Kulob, antes da descida para o rio Panj, paramos em uma cancela em um lugar ermo, empoeirado, no alto de uma montanha de uns 1.500 metros. No Sol e no vento, os soldados pediram todos os passaportes e com eles foram para uma pequena guarita ao lado da cancela. Depois de uma espera de uns 15 minutos, sem nenhuma justificativa, um deles ressurge e pede para que os turistas que não fossem do Tajiquistão o acompanhassem. Fui escolhido para ir sozinho e representar Kim e Iker por ser o único com algum conhecimento de russo.

Cordial, entrei na guarita e apertei as mãos dos três pequenos vermes vestidos com seus uniformes verdes. Me impressionei ao vê-los melhor, verificando quão jovens eram. O líder deles parecia ser especialmente diabólico. Loiro, magro. Parecia russo (a Rússia envia soldados para ajudar o Tajiquistão a patrulhar a região da fronteira com o Afeganistão). Cara de vilão de faroeste. E um cinto-relíquia, com a fivela com o símbolo da foice e do martelo.

Me veio com a história de que nem eu nem meus colegas tínhamos o "passe" especial para avançar rumo a Khorog. Todos nós, evidentemente, tínhamos conseguido previamente, além do visto tajique, um carimbo especial no passaporte autorizando nossa viagem a Gorno-Badakhstan, inclusive detalhando as cidades (entre elas, Khorog) onde tínhamos autorização de passar. O militar, porém, me disse que outro passe (que ele poderia fornecer em troca de dinheiro) era necessário por causa dos problemas recentes que haviam ocorrido no Pamir. Respondi, novamente com educação, que ninguém tinha conhecimento de nenhuma exigência especial, que nos haviam dito em Dushanbe que o passe era o carimbo especial no passaporte e que nada mais era necessário. O líder, não esperando minha reação, coçou o queixo e a cabeça. Eu já sabia o que iria acontecer.

O motorista de nossa 4x4 (que não falava inglês) interveio. Apareceu de surpresa na guarita. Na minha frente, falou longamente com o militar corrupto. Pelo pouco que pude entender da conversa em um russo bem rápido, o motorista tentou argumentar, mas o militar estava irredutível. Afastei-me. Fui para perto do carro chutando montes de poeira no chão, com as mãos no bolso. Iker e Kim, perdidos, me perguntam o que está acontecendo. Lhes digo. Respiram fundo, em silêncio.

Permaneci de pé do lado do carro por uma hora ou mais, até cansar e esboçar voltar para dentro do veículo. Nesse momento, o motorista, enfurecido, com os olhos vermelhos e prestes a explodir, sai da guarita com nossos passaportes. Entramos no carro e a cancela finalmente se abre.

Ficamos então sabendo os detalhes da negociação. O vilão de faroeste havia pedido inicialmente US$ 200, um absoluto disparate, uma fortuna para qualquer tajique. O motorista, um pamir que depende justamente do dinheiro dos turistas que viajam para Khorog e que ficou semanas sem faturar por causa dos problemas na região, manteve a paciência e foi negociando uma diminuição no preço do "passe".

Fomos liberados por cerca de US$ 15 (um montante também bastante considerável para os padrões locais). O motorista pagou do próprio bolso e não quis nos cobrar. Estava absolutamente enojado com os militares.

Vendo a cena, fiquei imaginando como o motorista deve enfrentar o mesmo périplo toda vez que transporta estrangeiros, a cada viagem infinita e dolorosa a Khorog e de Khorog a Dushanbe. Como já devia conhecer o vilão de faroeste de outras ocasiões, e como o vilão de faroeste não estava nem aí com ele, com seu ganha-pão, com a economia local, com os outros pamires que estavam no carro conosco. Total desrespeito, corrupção sólida, profunda. Caso os militares fossem russos, e pareciam ser, isso só aumentaria a dor dos locais, vítimas dessa intimidação cotidiana por parte dos colonizadores de décadas e décadas.

Fiquei pensando nisso e também no outro lado: como esses jovens militares devem ter um treinamento ridículo, um equipamento obsoleto e, principalmente, um soldo absolutamente irrisório, enquanto recebem a responsabilidade de patrulhar uma das fronteiras mais perigosas de toda a ex-União Soviética. Uma fronteira que pode gerar uma fortuna em contrabandos. Uma receita pode ser usada para cooptar esses garotos, fechando o ciclo de perdição.


* * *

Outro problema de saúde. Agora, estou com uma tremenda prisão de ventre. Há cinco dias meu intestino não funciona, embora eu me sinta ótimo e a urina esteja dourada e saudável. Em Khorog, vou ter que procurar um laxante.

Khorog, 25/9, 12h30

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Wednesday, 7 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXIX): Dushanbe

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23/9/2012

Hissar é uma vila a cerca de 30 minutos de carro de Dushanbe. É conhecida pelos tajiques pela sua fortaleza, cuja origem remontaria a antes do imperador persa Ciro - que viveu no sexto século antes de Cristo. Foi atacada e praticamente inteira destruída pelo exército vermelho - uma das (dizem) 21 vezes em que este local foi demolido. Da construção sobraram os fantasmagóricos montes de argila, já familiares para mim, repetições de Otyrar, de Sauran, de Mug Tepe. Montes de argila com as fundações, os restos das muralhas. Mas não é pela história e sim por uma razão bem mais prosaica que este lugar é bem conhecido pelos tajiques em geral. O portal de entrada da fortaleza, reconstruído, recebeu a honra de ilustrar a nota de 20 somanis. Apresso-me em ser bem turista, tirando a foto obrigatória do monumento com a nota embaixo.

A construção, no território do antigo Emirado de Bukhara, foi um foco importante da resistência contra os bolcheviques. Aqui buscou refúgio um dos líderes do chamado movimento basmachi - os milicianos motivados por uma forte religiosidade muçulmana que, até os anos 30, foram uma dor de cabeça para Lênin e depois Stálin. Ibrahim Beg foi um de seus líderes mais conhecido (juntamente com o turco Enver Pasha). Fiel ao Emir de Bukhara - afastado do controle da cidade uzbeque, que passou ao controle de Fayzullah Khojaev por ordens de Moscou - Ibrahim permaneceu no forte até 1924, lutando pela volta do Emir, exilado no Afeganistão. Em 1925, porém, não resistiu às tropas do brilhante general bolchevique Mikhail Frunze e teve ele próprio que fugir para terras afegãs. De lá, comandou várias incursões armadas na então recém-nascida URSS até ser capturado e finalmente executado pelos soviéticos.

A fortaleza de Hissar não poderia ter sido erguida em lugar mais perfeito. O portal fica em um pequeno vale, separando duas colinas. Subindo a da direta, tem-se uma vista impressionante.

À minha frente, com o Sol das 13h queimando meu rosto, vejo o portal e duas madrassas (dos séculos XVI e XVII) construídas logo defronte à entrada. Entre o portal e as madrassas, uma grande algazarra na escada para o portal. Dança, tambores. Uns quatro casais recém-casados estão aqui ao mesmo tempo para tirar fotos e comemorar, como costumam fazer em todos os principais monumentos das cidades da Ásia Central.

À minha direita, a outra colina, do outro lado do pequeno vale, completamente tomado pelas ruínas semicobertas pela grama e pela poeira. O resto das muralhas circunda tudo. No centro desse vale, há também um campo de futebol improvisado, onde alguém deixou um camelo preso a uma das traves.

À esquerda, finalmente, as amorfas feições do monte que estou pisando e lá embaixo, à distância, a estrada que me trouxe aqui.

Vento, secura, altura. Me sinto um general, analisando o terreno, concebendo o futuro movimento de minhas tropas. Estou em uma versão de menos impacto do impressionante castelo de Edimburgo, mas sem as poderosas paredes de pedra que circundam e elevam a fortificação escocesa. Ainda assim, é uma edificação com impacto. Uma grandiosa demonstração do poder do Emir de Bukhara (veja o vídeo abaixo).



Os casais lá embaixo provavelmente nunca estiveram na Escócia. Se sabem de algo sobre o legado do Emir em Hissar, isso veio de histórias confusas e fantasiosas contadas de segunda mão por parentes idosos que conviveram com pessoas que eram vivas antes dos comunistas. Seus amigos, convidados dos casamentos, só querem saber de dançar. Uma tremenda barulheira, como a que vi naquela festa de circuncisão em Turkestan. Há um músico com um tambor, batendo forte e alto, sem ritmo. Há um senhor com um instrumento de sopro, nem flauta nem clarineta, um som parecido com o de uma mosca, subindo em agudos, descendo, indo e voltando ao ritmo sem ritmo do tambor. Não há uma melodia clara, há uma hipnose, o movimento do instrumento de sopro, o senhor, engravatado e suando rios no Sol, subindo o instrumento, descendo o instrumento, inflando as bochechas. Uma música para mim horrorosa, para eles, perfeita. Vejo logo imediatamente abaixo, mais perto de mim, os homens dançando uns com os outros. Batem palmas, dão pulos baixos, mexem as mãos, fazendo gestos estranhos. Mais para baixo da escadaria, um grupo menor, de mulheres, faz o mesmo, dançam entre elas. Homens e mulheres comemoram efusivamente, mas não se misturam na folia do "carnaval" em Hissar. (veja o vídeo abaixo).



Achei tão distante de mim aquela alegria segregada por sexos que, de repente, fiquei triste. Pensei: não há ninguém que eu conheça ou que poderia me conhecer aqui. Sou um penetra nessa festa. Essa alegria não é minha. Me apossar dela é condenável. Não entendo e nunca poderei entender essa forma de comemoração.

Contudo, essa tristeza, pura besteira, passou em seguida devido ao efeito estranho daquela música horrível. Após alguns minutos de hipnose, até eu, alienígena, queria bater palmas, admirar os vestidos coloridos das mulheres, os vestidos brancos das noivas, a fila de noivas que se formou para subir as escadas do portal e comemorar no alto. E bati palmas. E sorri.


* * *

Passaram-se uns dez minutos e uma cena de cortar o coração me arranca o sorriso de novo.

Pela rua ao pé da escadaria, um pobre filhote de cachorro passa. Cinzento, sujo, ignorado por todos. Com a boca aberta, arfando em meio à poeira, parece até que está sorrindo também. É a pobre criatura mais magra que já vi, um eco inimaginavelmente distante e próximo da Baleia de Graciliano Ramos. Conto cada vértebra, cada costela do pobre animal, identifico os ossos da bacia. Passa de lá para cá, de cá para lá, sonhando com alguma migalha, ninguém sequer olha para ele, só eu.

Os cães são considerados sujos, impuros para os muçulmanos. Já havia me espantado pela ausência deles durante minha viajem pelo Irã. No Tajiquistão, eu lamentei ter visto esse em Hissar e todos os outros cães de rua que cruzaram meu caminho. Foram poucos. Apenas sobreviventes.

No caminho de volta para o hotel, já de volta a Dushanbe, vi outra pobre alma na rua. Branquinho, quietinho, jogado numa sombra, obviamente desnutrido e doente. Achei que estava morto até que me aproximei e ele mexeu um pouco a cabeça. Fiz um carinho, vi um brilho no olhar. Me afastei, fui embora.

Nisso, o magrelo se mexeu, vindo na minha direção, e chegou perto de um vendedor de jornais. O vendedor esperou o momento certo em que a criatura passou mais perto dele e por um milímetro não lhe acerta um chute na barriga. O pé foi em cheio em uma de suas patas traseiras. O bicho, ganindo, saiu da calçada e quase foi atropelado.

Na cidade inteira, por onde andei, não vi nenhuma placa de veterinários oferecendo seus serviços (diferentemente de Almaty). Fiquei pensando que os cachorros podem estar pagando a conta de uma raiva do povo daqui, uma raiva profunda (raiva da falta de liberdade, da pobreza, do ditador) misturada com algum tipo de incapacidade de sentir amor por essas criaturas. Algo cultural, religioso, mas também a expressão da dureza da vida. Pode ser o reflexo de uma brutalização, legado de uma violenta guerra civil, onde a violência, em todas suas expressões, se tornou parte do cotidiano.


* * *

Urina devidamente amarelada, o processo de tomar remédios a cada dia devidamente iniciado, fecho no hotel a superequipe que vai enfrentar a viagem ao isolado e misterioso Planalto de Pamir. Uma viagem que parecia até pouco quase impossível devido aos incidentes de julho.

Desde Khojand, quando vi pela TV o presidente visitando Gorno-Badakhstan, eu não havia tido notícias da situação na região - se ela já poderia ser visitada por turistas, se a violência havia cessado. Também desde Khojand, eu havia seguido rumo a Dushanbe dando uma espécie de pulo no escuro, acreditando que tudo seria resolvido e eu poderia, de fato, viajar a Khorog, a capital do Pamir. Mas não tinha certeza e, caso não pudesse seguir para lá, não tinha nem ideia de para onde iria a seguir. Mas, no hotel, me informam que finalmente a estrada foi reaberta. Me avisam: "Você e seus amigos serão os primeiros estrangeiros a viajar para lá depois do banho de sangue de julho. Boa sorte".

Eis meus amigos, os meus companheiros nesta expedição, com os quais troco apertos de mão em um dos quartos coletivos do hotel. O primeiro é Iker, o espanhol. Eu o conheci na internet nos meses anteriores à viagem, quando eu já estava procurando uma pessoa para dividir os custos do transporte no Pamir. Encontrá-lo na distante Dushanbe, após tantos meses de espera e conversas virtuais, foi como encontrar um amigo de infância. Havíamos combinado que em tal dia ele estaria no hotel, eu também, e de lá partiríamos para a aventura. E lá estava ele. Alto, magro, careca, com barba e olhos claros, verdes. Bem espanhol, sem dúvida, meu amigo. Fala alto, sorriso constante, alegre, tremendo sotaque no castelhano. Um moleque com 35 anos, empolgante, empolgando a mim, empolgando ao terceiro elemento do grupo.

E o terceiro elemento, o elemento-surpresa, foi o fotógrafo Kim, de Singapura. Nós o conhecemos no hotel. Descobrimos que ele também estava tentando ir para o Pamir, mas por causa dos problemas por lá tinha ficado "entalado" em Dushanbe. Agora, com o caminho novamente aberto, contemplava suas opções. Na minha primeira conversa com ele, eu estava enrolando na cama, com medo de ir ao banheiro ver a cor de minha urina, e ele estava na cama ao lado arrumando a infinidade de equipamentos fotográficos e de vídeo que trazia na mochila. O singapurense me pareceu uma pessoa afável e simpática, mas quieta. Um tipo artístico, observador, introspectivo, com um humor inteligente e sutil. Trabalhava como fotógrafo em projetos de viagem e, quando não estava viajando, estava dando workshops. Já havia feito longas jornadas e tinha centenas de histórias para contar. Falei da minha planejada ida para o Pamir e ele logo mostrou interesse. Falei com Iker e ele adorou a ideia de ter mais um no grupo, para reduzir ainda mais os custos. Tentamos encontrar até um quarto elemento, não conseguimos.

A questão dos custos é algo importante. Visitar o Planalto de Pamir implica em providenciar transporte próprio, o que, evidentemente, não é barato. Há alguns que tentam explorar a região com transporte coletivo - de fato, há lotações que vão até Khorog e outras que saem de lá e vão esporadicamente para outras cidadezinhas. Entretanto, o transporte além de Khorog é muito incerto e deixa o explorador sem a liberdade necessária para explorar uma das regiões mais remotas do mundo. Mais ainda, corre-se o risco de ficar vários dias em um determinado lugar esperando transporte para seguir em frente, o que é uma péssima forma de passar os raros dias de férias que todos temos. Alugar um carro com motorista - no caso, uma 4x4 para enfrentar as estradas todas sem asfaltar e cheias de buracos - foi uma decisão fácil, porque, claramente, era a única solução.

De noite, a noite antes da nossa partida, tivemos uma reunião com Rozik e sua linda esposa. Rozik foi um contato recomendado pelo nosso livro-guia, um pamiri (natural do Pamir) especializado em organizar viagens para sua terra natal. Tomando conosco litros de chá preto para combater os calafrios da noite do lado de fora de uma casa de chá, o carismático Rozik explicou que já havia planejado tudo. De Dushanbe a Khorog, viajaríamos em um veículo 4x4 "regular", ou seja, uma lotação, transporte público, que dividiríamos com outras pessoas. Ele nos preparou psicologicamente para a estrada até Khorog, explicando que ela estava em péssimo, péssimo estado. Uma vez vencido esse primeiro rali, com duração estimada em umas 18 horas, para a viagem de Khorog até Osh (de volta ao Quirguistão) teríamos uma outra 4x4, desta vez particular, com nosso próprio motorista. Assim, poderíamos fazer qualquer passeio.

Serão dez dias no teto do mundo. Dez dias nas pegadas de Marco Polo.

Dushanbe, 23/9, 23h25

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Sunday, 4 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXVIII): Dushanbe

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Este texto faz referência a minha visita ao Irã narrada em Sombras Persas (2005); clique aqui para relembrar

22/9/2012

Dushanbe, capital do Tajiquistão. O nome significa "segunda-feira" em persa. Trata-se de uma referência ao dia da semana em que, antigamente, neste local, se realizava um grande mercado. Mas se segunda-feira é o dia mais triste da semana, esta cidade não está me deixando muito deprimido. Só um pouco.

Linda a avenida Rudaki, com suas árvores, de norte a sul. É vida e alma de uma cidade que ainda guarda com carinho tesouros arquitetônicos czaristas e comunistas, mas que está sendo desfigurada, como tantas outras nesta região. Desfigurada pela sanha revisionista, pela sanha da nova história, pela megalomania de um ditador.

O Parque Rudaki fica na avenida, em frente ao palácio presidencial. O parque é lindo, mas, como no centro de Tashkent, sinto que está faltando alguma coisa. Tudo parece artificial. Algumas pessoas, com feições centro-asiáticas, vão perambulando pelo Sol, tirando fotos da estátua do poeta persa (858-941) que dá nome ao parque e à avenida. Então, elas observam por um tempo o palácio presidencial. Em seguida, a outra estátua no parque (previsivelmente, de Ismail Samani). Depois, o segundo mastro mais alto do mundo (165 metros), que leva às alturas uma bandeira de 700 kg, tão grande que certamente seria preciso um furacão para fazê-la tremular por inteiro. Essas pessoas parecem estar desempenhando algum papel pré-estabelecido para elas. Como se seguindo ordens. Não duvido nada, se forem tajiques, que estejam fazendo o que acreditam que se espera delas... para evitar qualquer problema com as autoridades. Talvez se perguntem, lá no fundo, o por quê de tanto gasto grandioso em obras grandiosas. E silenciosamente, escondidas, talvez suspirem.

O palácio presidencial, defronte ao parque, é modestamente chamado de "Palácio das Nações". Demorou oito anos para ser construído - de 2000 a 2008. Com uma opulência impressionante, dizem que ele custou mais do que todo o orçamento anual do Tajiquistão para a saúde. Substituiu o antigo bairro judeu da cidade, um reduto de um povo em extinção nesta terra, o que gerou uma onda de protestos internacionais. O palácio é coroado por uma cúpula dourada que ofusca o Sol da manhã. A ostentação é agressiva, talvez o maior exemplo de megalomania que já vi na Ásia (ainda hei de visitar o Turcomenistão).

Hipnotizado, fui mantido bem à distância, eu e todos os mortais. Há um portão na frente, e ele fica bem longe da edificação em si. Nem bem me aproximei dele, um policial de guarda pediu para eu me afastar. Fiquei pensando que o melhor seria pintar uma linha vermelha no chão para estabelecer até onde as pessoas podem se aproximar a fim de evitar os olhares desconfiados dos pobres soldados, na certa adestrados dia e noite por anos para serem paranoicos. Todos têm que ficar bem longe do imaculado poder, turistas e locais. Não há nada o que fazer. Observo à distância a modesta morada do presidente Emomali Rakhmon, o humilde servo desta nação, cujo semblante adorna tantos prédios por aqui.

É como se a opulência e as fotos de Rakhmon tentassem compensar a pobreza e a falta de identidade legítima do país.

Prova dessa falta de identidade se vê perto do parque e do palácio, na sede da Associação de Escritores do Tajiquistão. A fachada da instituição relembra com estátuas os grandes nomes da cultura persa. Lá estão, como em uma reunião de família, Rudaki, Ferdosi, Omar Khayyam. O governo tajique reforça essa ligação íntima que tem com seu passado persa, o patrimônio atrelado à dinastia persa samanida, do século X. Paradoxalmente, isso ao mesmo tempo torna a identidade tajique mais forte e mais fraca. Uma visita ao Irã, como a que fiz em 2005, faz o visitante conhecer os ícones da milenar cultura do país. Lá também são enaltecidos Ferdosi e Khayyam (ambos nascidos no atual Irã, só Rudaki nasceu no atual Tajiquistão). Não seria o Tajiquistão apenas um eco centro-asiático do Irã, essa sim uma grande nação? Não seria o Tajiquistão um filho pródigo do Irã que se perdeu no meio das montanhas distantes, nas satrapias distantes dos aquemênidas, reencontrado depois?

O Tajiquistão busca sua própria personalidade ao celebrar seu passado persa. Mas o passado persa pertence também aos outros. Pertence ao Irã, de onde tantos de seus heróis literários, onde fica, inegavelmente, o centro da cultura persa. E pertence ao Uzbequistão, onde está Bukhara e a tumba de Samani, maior herói tajique. Uzbeques e tajiques por séculos foram povos unidos, em simbiose. Assim, o que é realmente, exclusivamente tajique?

Nesse contexto, Rakhmon assume essa identidade. Ou tenta assumir. Quer ser a personificação do povo tajique.

Pobre país.


* * *

No Museu Nacional de Antiguidades, a luz das salas vai sendo acesa pelos funcionários à medida que você vai passando por elas. Todos são obrigados a tirar os sapatos e a colocar sapatilhas de plástico nos pés.

Vale a pena. Há algumas preciosidades. Relíquias que, realmente, provam que Alexandre esteve no Tajiquistão... já que as ruínas desfiguradas de Istaravshan e Khojand não provam muita coisa. Suas pegadas, ei-las visíveis nos artefatos tirados do sítio arqueológico de Takh-i-Sagin, perto da atual fronteira tajique com o Afeganistão. Incríveis colunas, que um desprevenido diria que foram retiradas de Atenas. Estátuas com as formas gregas clássicas e até o que parece ser uma cabeça de Alexandre, esculpida em marfim.

Mas esta terra foi lar de muitos outros povos. Um deles foram os kuchanos (ou cuchanos), que tiveram o auge de seu império nos primeiros anos da era Cristã. Os kuchanos foram um dos primeiros impérios a surgir da desintegração do império de Alexandre, o Grande, na Ásia. Após a morte do macedônico, em 323 a.C., um de seus generais, Seleuco, assumiu o controle na Ásia Superior, criando o que hoje se conhece como Império Selêucida. Posteriormente, em 250 a.C., o governador da província de Báctria (região da antiguidade que coincide, em grande parte, com o atual Afeganistão), Diodotus, declarou sua independência dos selêucidas, formando outro reino chamado pelos historiadores de Greco-Báctrio. Invasões de guerreiros nômades de outras partes da Ásia levaram à desintegração desse novo reino, criando as condições para a ascensão dos kuchanos a partir do primeiro século depois de Cristo. Os três reinos têm uma coisa em comum, confirmada pelo que foi encontrado por arqueólogos: realizaram a helenização de fato da Ásia Central, juntando elementos da cultura local, como a religião budista, com outros vindos da distante Grécia, como a estética das esculturas.

Os kuchanos, que só seriam eliminados de vez por volta do século IV d.C., chegaram a dominar um território vasto que ia do Vale de Fergana até muito mais ao sul, onde fica a metade da atual Índia. Acredita-se que usavam o alfabeto grego, mas, ao mesmo tempo, adotaram o Budismo e foram grandes incentivadores da religião, expandindo-a da Índia à região da Ásia Central, incluindo a China. Nesse período, se construíram inúmeros mosteiros e templos na região.

No sítio de Anjina-Tepe, novamente no sul tajique a caminho do Afeganistão, eles deixaram o seu maior legado na Ásia Central. Maior mesmo, literalmente, descomunal. Uma estátua de um Buda em nirvana, deitado, medindo 12 metros, feita de argila. Tão grande que teve que ser cortada em dezenas de pedaços para ser transportada para o museu em Dushanbe.

Depois da destruição dos Budas de Bamiyan no Afeganistão pelo Talebã em 2001, esta é a maior estátua de Buda que resiste na Ásia Central. Vê-la em uma sala do museu, com o funcionário acendendo a luz e meus olhos demorando para fazer sentido do tamanho da figura, me deixou boquiaberto. Como eu gostaria de ter visto esta estátua no local onde foi encontrada, gostaria de ter sido seu descobridor. Certamente quem a encontrou deve ter tido uma sensação de espanto mil vezes maior que a minha.

Logo, meu deslumbramento passa à tristeza e à conclusão que o museu é provavelmente o melhor lugar para este tesouro. Quantos já se perderam na mão de ignorantes como o Talibã. O próprio homem destruindo o que tem de mais valioso, sua própria memória.


* * *

Viajar por muito tempo por lugares desconhecidos proporciona essas coisas. De repente, seu próprio corpo te trai e você está sozinho. Mas acabei tendo uma experiência positiva e até engraçada na capital tajique quando me vi obrigado a sacrificar boa parte de meu dia para ver um médico e esclarecer o porquê do sangue na minha urina. Sentia medo, constrangimento e simples desamparo - como explicar uma coisa tão complexa em russo, se nem falo russo direito?

Na noite anterior, fiz questão de beber muita água numa tentativa (evidentemente sem nenhuma base científica, só nascida de instinto) de "eliminar as toxinas". Me ocorreu que andei bebendo muito pouca água durante a viagem e que se tive algo pequeno, algum pequeno ferimento, a água poderia ajudar a limpar. De manhã, minha urina me pareceu laranja, mas fiquei em dúvida se era amarelo escuro e meu olhos estavam me enganando. Imaginando que os médicos fossem me pedir para ver a urina, e temendo a demora em fazer o exame, me adiantei e colhi um pouco do líquido numa garrafinha transparente. Me sentia bem, sem febre.

Lá fui eu pelas ruas de Dushanbe com minha "garrafa de guaraná" para a clínica particular recomendada pelo consulado.

Chegando lá, uma longa fila. Levei meu dicionário de bolso e me fiz entender, mas insisti várias vezes para ver alguém que falasse inglês. A recepcionista me deu um formulário para preencher e me pediu para subir as escadas e aguardar numas cadeiras em um corredor cheio de portas e pessoas vestindo branco. Estranhei as paredes - eram avermelhadas - e a escuridão, mesmo sendo de manhã. Uma enfermeira chegou e perguntou meu problema. Fiquei envergonhadíssimo, e o russo não saia. Pedi novamente para ver alguém que falasse um mínimo de inglês e um médico. Ela pegou o formulário e desapareceu.

Passaram-se uns cinco minutos. Uma enfermeira mais velha, obesa e com uma tremenda cara de poucos amigos, chegou acompanhada de um homem igualmente mais velho, os dois com jalecos. A mulher era a típica russa. Braços volumosos, cabelo penteado com um coque, bem esticado, rugas e semblante permanentemente raivoso. Voz dura e forte, pele suando. O homem, com o rosto todo enrugado, tinha um olhar doce e paciente, parecia sem pressa, tranquilo. A mulher me disse que falava "um pouco de inglês". Pediu para eu explicar qual era meu problema.

Expliquei devagar. Sempre que falo com médicos me pergunto o grau de detalhe que eles querem ouvir da gente, nunca sei se algo aparentemente irrelevante para mim pode ter grande importância na hora do diagnóstico. E o grau de detalhes que costumo dar varia de acordo com a preocupação que tenho em relação ao meu quadro clínico. Ou seja, neste caso foi mais ou menos um resumo da última semana. Ando dormindo em lugares horríveis doutor, horríveis. Respirei pó sei lá de que ano da era Brejnev, passei frio e tomei chá com água de procedência suspeita. Como sem pensar muito no que estou comendo. E ando, ando, horas e horas. Comecei a sentir os primeiros sinais de uma gripe em Isfara. Eu tomei tal remédio para gripe, que trazia da Inglaterra, melhorou minha febre. Em Istaravshan ela esta alta, atrapalhou meu passeio, meu sono. Lá minha urina estava estranha, pensei que era algo do meu fígado, porque eu já tive hepatite e a urina fica escura. Então, tomei cuidado com a alimentação. Aí cheguei em Dushanbe depois de mais uma longa jornada de carro, me sinto ótimo, sem febre, mas ontem fui ao museu e tive vontade de urinar, fui ao banheiro e vi que minha urina estava vermelha, acho que é sangue em minha urina. Esta garrafinha aqui, tem urina de hoje de manhã, olha - está meio laranja ainda. Ou não? Já nem sei. Só sei que ontem estava vermelha. O que pode ser?

Falei, falei, longos minutos. Dei, enfim, detalhes minuciosos. A enfermeira ouviu. Algumas vezes eu parava, para ver se ela queria me fazer alguma pergunta, me pedir para falar mais devagar, mas ela não dizia nada. Então, eu continuava. Falei, falei. Até o final. O que pode ser?

Fiquei em silêncio. Finalmente a enfermeira abriu a boca. Dirigiu-se ao médico em um russo que até quem não sabe russo entenderia. Simplesmente falou "está mijando sangue", deu as costas e foi embora.

Que doce de pessoa.

O médico me convidou para entrar em uma sala de consulta, fez mais umas perguntas em um russo básico, me examinou e pediu um ultrassom e um exame de urina. Pensei que demoraria, como no Brasil, dias para ter tudo pronto. Nada disso. Saí do consultório, fui direto fazer o ultrassom. Pegaram minha urina da garrafinha. Uma hora depois, me chamaram no corredor. Com os resultados em mãos, voltei ao consultório. O doutor escreveu uma receita e me explicou - "provavelmente, algo nos rins, algo pequeno". Entendi que provavelmente tinha se criado um minicálculo ou minicálculos, como areia, no órgão ou nos ureteres, o que gerou um ferimento e possivelmente uma infecção. Fiquei pensando em como não senti nenhuma sede em vários dias de passeio. Esqueci uma regra básica, beber muito líquido.

O médico continuou sendo extremamente gentil. Fez questão de me acompanhar até a farmácia da clínica e pediu os remédios para mim - antibiótico e um outro, que não consegui entender para o que era. Repetiu três vezes a posologia. Este, um por dia por dez dias. Este, um a cada refeição por uma semana. Perguntei se podia continuar viajando. Sim, sim. Tome os remédios e pode viajar. Mas nada de álcool. Cerveja, nem pensar, até acabar o antibiótico.

O temível Tajiquistão me deu um tratamento médico de primeiro mundo, enfim. Evidente. Fui atendido em uma clínica particular e, provavelmente, a mais cara da cidade. Remédios, consultas e exames consumiram uma semana de meu orçamento. Mas estava tão feliz, tão profundamente aliviado, que nem sequer pensei no dinheiro. São e salvo! Livre!

Volto para o hotel, pijama, internet. Mais conforto. Amanhã, voltamos à aventura.

Dushanbe, 22/9, 21h14

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