Thursday, 18 May 2023

Novas Fronteiras (XXIV) - Konye Urgench, Turcomenistão



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24/8/2018

Tinha sido construído como um mausoléu real coletivo, ao que parece, mas recebeu o nome de Turabeg em alusão a uma princesa mongol. A ala norte gemia por entre suas portas. Minha ignorância em relação a esses conquistadores oníricos, tão poderosos em seus dias, me fez duplamente um estranho aqui. Eu não conseguia me lembrar de nenhum monumento exatamente como este. Um santuário alto, de 12 lados, ele continha uma câmara mortuária hexagonal e era mais rico, mesmo deteriorado, do que qualquer coisa em Khiva. Sob os arcos cegos, os elementos decorativos em formato de favos de colmeia se acumulavam em agrupamentos densos, recobertos de um brilho sutil de campânula e azul escuro e um opaco verde opala. Expostos e aparentemente frágeis, eles jaziam dependurados com uma força enigmática, enquanto que, acima, uma cúpula destruída projetava um estilhaço de turquesa no céu.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia (1994)


Eu o chamarei assim: O Templo dos Pombos.

Ninguém sabe ao certo o que é o mausoléu de Turabeg Khanum, provavelmente o mais incomum monumento da Ásia Central, capaz de superar em beleza, ao gosto do observador, até mesmo as joias rutilantes de Samarkand e Bukhara. O "ao que parece" da impactante descrição de Colin Thubron é o escritor se rendendo ao fato de que qualquer refletir sobre ele é fundamentado em alguma especulação. O prédio, estonteante em seus detalhes decorativos quase na mesma medida que misterioso, fica na entrada da vasta área onde estão reunidos os tesouros arqueológicos de Konye Urgench, logo ao lado da guarita onde se vendem as entradas. Sua antiguidade o tornou um enigma permanente, deixando perplexos até mesmo os locais, que parecem tratá-lo com um grau de veneração especial.

Para explicar a existência deste monumento, suas raras características, é preciso primeiramente invocar a história geral do igualmente impressionante sítio arqueológico de Konye Urgench, uma área desabitada de 3,5 quilômetros quadrados ocupada apenas por santuários e ruínas.

Konye Urgench ("Velha Urgench"), antigamente conhecida como apenas Urgench ou Gurganj, foi a capital dos khoresmshahs, a dinastia que dominou uma vasta área da Ásia Central imediatamente antes da chegada de Gengis Khan, no século XIII, e diretamente culpada pela vinda do conquistador — sempre se repete a infame história do assassinato de emissários mongóis pelo governante khoresmshah em Otyrar, no sul do Cazaquistão, causando a ira do conquistador e levando-o a varrer a cidade dos mapas (como vi visitando suas ruínas de Otyrar em 2012). Após esse início de dar calafrios, o moedor de carne de cavaleiros das estepes seguiu, invadindo as terras do atual Uzbequistão e, finalmente, chegando a Gurganj, arrasada por Gengis em 1221. Até então, os khoresmshahs já haviam mostrado astúcia e habilidade de sobrevivência ao resistir durante a ascensão e queda de quatro impérios que reivindicaram para si a Ásia Central: o dos kharakanidas, o dos turcos seljúcidas, o dos gaznévidas e o dos caraquitais. Mas os mongóis seriam um golpe mortal. O império nativo da Corásmia, que em seu apogeu controlava o atual Turcomenistão, o norte do Irã, Samarkand e Bukhara e o sul do Cazaquistão, foi conquistado rapidamente.

Gurganj, porém, teria uma sobrevida, assim como, ainda que enfraquecidos, os próprios khoresmshahs. Nessa segunda encarnação, Gurganj não seria mais a capital de um vasto império como o de antes de Gengis, mas recuperaria muito de seu brilho, pelo menos aos olhos de visitantes. Ibn Battuta, o lendário viajante nascido no atual Marrocos, esteve em Gurganj na metade do século XIV e, no seu diário, assim a descreveu:

(...) A mais vasta, a maior, a mais bonita e mais importante cidade dos turcos. Tem bons mercados, e ruas amplas, e um grande número de construções e fartura de produtos; ela treme com o peso de sua própria população.
- H.A.R.Gibb, As Viagens de Ibn Battuta A.D. 1325–1354 (Volume 3)

Com a ascensão de Tamerlão, Gurganj aceitou, nominalmente, ser subjugada. Mas um imprudente monarca khoresmshah chamado Yusuf Sufi depois mudou de ideia e, por isso, viu sua capital cercada pelas forças do inimigo em 1379. Em vista da exigência de rendição, Yusuf Sufi enviou uma carta a Tamerlão, que comandava em pessoa as tropas, sugerindo que, em vez de o conquistador enviar seus soldados para saquear a cidade, os dois líderes resolvessem a questão cara a cara, em um duelo entre eles mesmos. Yusuf Sufi na certa não acreditava que Tamerlão, que mancava permanentemente como resultado de um ferimento na juventude, fosse aceitar o desafio. Mas ele aceitou. O conquistador pareceu no local e hora sugeridos com sua indumentária de duelo — enquanto que Yusuf Sufi, covarde, decidiu se abster. Isso teve o efeito, evidentemente, de diminuir o moral dos defensores e elevar o dos atacantes, que, por fim, saquearam a cidade. Yusuf morreu em algum momento durante o cerco.

Os timuridas esperavam que então Urgench não fosse mais dar dor de cabeça e, em nome de benefícios comerciais e estratégicos, a cidade foi preservada. Mas a imprudência dos khoresmshahs aparentemente era uma maldição. Menos de dez anos depois, em 1388, provavelmente por influência do maior rival de Tamerlão no norte (Tokhtamish, o khan da Horda Dourada, um reino-herdeiro do império de Gengis), os khoresmshahs decidiram novamente se revoltar. Desta vez, Tamerlão não seria piedoso. A cidade foi demolida com selvageria sistemática durante dez dias; membros da família de Yusuf Sufi, que ainda governavam a cidade, foram chacinados, e o importante centro de conhecimento, cultura e religião simplesmente deixou de existir. Por fim, em um gesto simbólico, Tamerlão mandou plantar cevada em toda a área da antiga cidade. Urgench, então, se tornaria um dos maiores exemplos do que o conquistador poderia fazer caso seus vassalos ousassem contrariá-lo. A cidade nunca mais existiu no mesmo lugar; o centro urbano chamado Urgench que existe hoje, e visitei antes de Khiva, fica no Uzbequistão, a dezenas de quilômetros.

A vasta área do massacre tem cor de barro e areia e ocupa uma monótona planície interrompida quase que apenas por arbustos e uns poucos monumentos que, incrivelmente, sobreviveram à barbárie de Tamerlão. Um deles é o Turabeg Khanum.

Como Thubron, nunca vi um prédio igual em toda a Ásia Central. É de se coçar, muito, a cabeça.

De fora, a melhor suposição é que, de fato, se trata de um mausoléu. Um mausoléu gasto, semidemolido pelos elementos, o que lhe dá a força que os grandes monumentos reconstruídos do Uzbequistão já não têm. Aparentemente, está sendo restaurado, mas o trabalho anda bem lentamente e não há andaimes nem pedreiros por perto. Sua fachada é de sólidas e altas paredes de tijolo exposto, com frisos que revelam detalhes tentadores do que um dia foram enfeitiçantes linhas de tijolos azuis, trabalhadas com o capricho dos melhores artesões da Ásia. Há um portal na entrada, retangular, como o das madrassas. Um perfeito alinhamento de linhas de tijolos fazendo o contorno do retângulo vertical, três fileiras, e entre elas o lugar onde um dia ficavam os azulejos. Linhas retas perfeitas, direcionando o olhar para o centro, para a entrada, chamando. No alto, uma cúpula destruída, novamente como descreveu Thubron: é possível ver o que sobrou do que seria sua superfície externa, com uma parte da cobertura de azulejos azuis (seguindo perfeitamente a cartilha da arquitetura timurida), mas o que sobrou principalmente é a sua estrutura interna, outrora totalmente coberta, feita de tijolos ocres e sem decoração. A fachada, além do portal, tem ainda 12 faces, cada uma com nichos de tijolos, onde bem poderiam, na minha imaginação, um dia terem descansado estátuas, num eco de templo grego ou romano. Na parte superior de cada um desses nichos externos, um trabalho de reentrâncias (chamado muqarna) que lembra os tetos de cavernas, estruturas azuis que ocultam a si mesmas, vistas mais frequentemente em mihrabs, o nicho em mesquitas que marca a direção de Meca. Um trabalho impressionante que não chegou inteiro ao século XXI, mas, o que chegou, é prova de uma suntuosidade incomum.

Na entrada, encontrei mulheres que puxaram o véu para se garantirem cobertas antes que adentrassem, denotando o sentimento de que se trata de um lugar sagrado. Havia uma porta com uma tela estilo mosquiteiro logo após o portal, claramente instalada pelos restauradores trabalhando no local. Empurrando-a se tem acesso a uma antessala que, novamente, me impressionou pelo que trazia na parte superior: uma repetição do trabalho de teto de mihrab dos nichos externos, mas, neste caso o centro desmoronou, deixando um buraco onde se vê claramente a parte interna da cúpula de tijolos, nua. O lugar, assim como todo o teto interno do complexo, é hoje residência de pombos. Os arrulhos são altos, mas poucas aves são visíveis no teto, ficam em algum ponto invisível onde estão suas crias. As aves vêm e vão constantemente, aguardando o momento certo em que a porta com o mosquiteiro é aberta para fugir e voltar. O barulho delas, suas asas batendo e seu canto repetitivo, ecoam e ecoam. Não ouvia mais nada, nem as mulheres à minha frente, conversando, nem o vento lá fora; só os arrulhos, terminando e recomeçando, como um mantra, como um elemento a mais de hipnotismo.

E então, após essa antessala, o salão principal do edifício.

Nada pode preparar o visitante para o teto. É tão incomum em comparação com qualquer teto de prédio religioso da Ásia Central, tão diferente. Seus parentes mais próximos talvez sejam os intrincados tetos dos grandes templos de Isfahã, no Irã. Na Ásia Central, ele não tem paralelo. O Registan de Samarkand captura o visitante com a majestade de seu conjunto arquitetônico perfeito, as três madrassas erguidas para acompanhar o sol como se juntas fossem um pequeno planeta Terra. Em Bukhara, a madrassa Mir-i-Arab entorpece por suas cúpulas azuis, por ser um prédio elegante que inspira o misticismo que só em Bukhara pode ser encontrado. Mas, em ambos os casos, a arquitetura tem uma clara função. A elegância, a magia, têm um propósito racional e conhecido, o religioso. Isso não é claro no caso no teto central do Turabeg Khanun. A teoria é que seja alguma espécie de calendário feito em mosaico, com linhas que se esticam e se cruzam com uma complexidade incrível. A equação para preparar tais linhas e usá-las para dividir perfeitamente os espaços do teto desafia qualquer credulidade. Com computadores, atualmente, seria possível fazer algo assim e da mesma fora seria trabalhoso. Ao imaginar que tal obra foi feita no século XIV se entendem as aparentes imperfeições (as linhas não parecem perfeitamente alinhadas, o conjunto não é absolutamente simétrico) que lhe dão ainda mais valor. É, em resumo, um mosaico com linhas e estrelas em azul, branco, amarelo e preto. Ele é dividido em 365 seções, o que, evidentemente, seriam os dias do ano. Logo abaixo, circundando o centro, há 24 arcos, que seriam uma referência às horas do dia; mais abaixo, 12 arcos maiores, com os nichos externos e também internos, representando os meses do ano; e, por fim, quatro janelas, que seriam uma referência às semanas de um mês. Mas essa é apenas uma interpretação simplificada; seria possível dar uma explicação para as estrelas desenhadas pelas linhas dentro do mosaico no teto, depois fazer mais interpretações dividindo as estrelas por tipo e tamanho. Depois, verificar cada polígono nesse teto, classificá-lo. Seria um trabalho quase infinito.

E é certamente isso que a obra inspira, o infinito.

Após olhar por longos minutos o teto, me sentei no chão para olhar mais. Os arrulhos contavam esses minutos, mas eu perdi a conta. As mulheres, com seus véus, rezaram e se foram. Ficaram eu e as pombas.

Por que um teto tão enigmático teria sido construído em um mausoléu? Fiquei imaginando que aqui estava enterrado algum monarca local que tinha grande obsessão pelas estrelas, pelo infinito. Como um Ulugh Bek dos khoresmshahs.

Tradicionalmente, acredita-se que o mausoléu foi erguido pela dinastia de Yusuf Sufi para abrigar a tal Turabeg Khanum, mulher de um dos khans locais, Qutlug Timur. No diário da visita do viajante Ibn Battuta à região, ele descreve, em 1330, seu encontro com Turabeg Khanum, o que confirma que ela existiu. Cientistas estimaram que a edificação foi erguida em 1370, o que seria justamente antes do período de turbulência envolvendo Tamerlão. As dúvidas sobre a função do prédio e a data em que foi erguido se devem principalmente aos detalhes decorativos e arquitetônicos, que, caso a data seja correta, antecedem significativamente os avanços que se veriam acima de tudo nos anos finais de Tamerlão e durante o século XV, quando seus descendentes dominavam esta região. Além disso, há outros elementos questionáveis. Primeiro: segundo as crônicas, Tamerlão teria destruído quase tudo em Urgench em 1388, deixando apenas pequenos mausoléus. Por que deixaria de pé uma construção tão grandiosa, certamente uma testemunha da grandiosidade dos seus inimigos khoresmshahs? Segundo: a dinastia Sufi certamente não era abastada; seus períodos de estabilidade foram quando aceitaram ser vassalos e isso, a vassalagem, drena recursos locais para o império dominante. De onde viria tanto dinheiro e mesmo o talento para construir tamanha obra? Por fim, o mausoléu parece ter um sistema rudimentar de aquecimento. Que sentido isso teria em um mausoléu? Pode ter sido outra coisa, não um mausoléu, algo completamente diferente. Ele combina mais com um palácio, ou a sala do trono de um palácio, como cogitam alguns arqueólogos. Uma teoria levantada por um cientista é que, estranhamente, este tenha sido um prédio ao menos parcialmente timurida, como bem sugere o que restou da cúpula azul externa. Esta seria a explicação: Tamerlão teria determinado que o mausoléu fosse deixado de pé porque Turabeg Khanun era descendente de Gengis Khan e, por isso, tinha grande prestígio, algo que o conquistador sempre manifestou interesse em trazer para si (visto que não era descendente de Gengis). Então, teria mandado reformar o mausoléu, criando boa parte da obra que se vê hoje, emprestando alguns dos grandes decoradores e arquitetos que havia feito prisioneiros em suas conquistas (e que usou para embelezar Samarkand). Isso explicaria a presença dos avanços decorativos posteriores ao final do século XIV no prédio.

Mas não há provas definitivas de nada. Principalmente, ninguém parece vir com uma explicação sobre o deslumbrante teto.

Quem sabe o mausoléu fosse o palácio de um astrônomo ou polimata querido pelo monarca local que, ao vê-lo morrer, decidiu homenageá-lo, fazendo o teto e enterrando-o no mesmo local. Ou quem sabe o teto fosse uma ferramenta de trabalho para o astrônomo.

Criei minhas próprias teorias para fazer sentido.

A verdade é simples. Apenas está oculta.

É passada de geração a geração, de pombo pai para pombo filho. Nos arrulhos e seus ecos.


* * *

Meu novo colega de viagem, o espanhol F, é um piloto de avião comercial, uns 40 anos, solteiro, cabelos castanhos claros esvoaçantes, nem alto nem baixo. O conheci do lado de fora do hotel em Dashoguz com ele usando óculos escuros e uma camisa social de mangas curtas, bege, sugerindo ser uma fantasia de aventureiro dos desertos. Tomamos café da manhã no hotel e, depois, o ajudei a colocar sua mochila carregada de água e cerveja (umas quatro latas) no bagageiro do carro. T, nosso motorista, tinha um utilitário esportivo branco, poderoso, uma espécie de Pajero de um modelo e marca que nem consegui identificar, com aparência de ser uma máquina valente no off-road. Um dia cheio começava com o sol forte das 8h da manhã. A ideia era explorar as ruínas de Konye Urgench e depois rasgar o deserto do Karakum, que domina todo o centro do Turcomenistão, em direção ao sul. Dormiríamos em uma iurta na areia no meio do caminho.

Sempre tenho impressões totalmente positivas de espanhóis, mas F logo mostrou que que poderia ser diferente.

Na saída do hotel, vi de novo o outdoor que havia visto na noite anterior — o presidente turcomeno, todo angelical, com roupas típicas e chapéu gigante branco, segurando dois filhotes de cachorro alabai. Evidentemente, o cartaz era um exemplo gritante da bizarra estratégia de marketing do presidente. Estranhíssimo, sim, para quem está familiarizado com a história e cultura do Brasil. Os cachorros me lembraram filhotes de labrador usados em propagandas de TV de amaciantes de roupas e papel higiênico. E, por isso, ver o cartaz me pareceu engraçado naquela manhã. Ri e apontei para ele para que F o visse.

F não riu. Seu ponto, explicando por que achava que rir era errado, era justamente porque não sabemos até que ponto a risada pode ser ofensiva aos turcomenos, o quanto o cartaz agrega elementos tidos como importantes na cultura local: quão sagrada é essa raça de cachorro? O que significa o chapéu telpek branco? Tudo o que ele disse era, sem sombra de dúvida, corretíssimo. Mas me senti decepcionado. Meu companheiro de viagem era uma pessoa com quem eu naturalmente previa ter uma afinidade cultural, pois ele conhece o mundo de onde venho: a Europa, onde moro, mas mais que isso, o Ocidente. Então eu esperava que tivesse a mesma reação que eu, relaxasse, risse. Sua explicação, porém, me fez abrir os olhos e foi extremamente válida. Silenciei por alguns segundos, endireitei a risada que havia brotado no rosto. Não fiquei envergonhado. Agradeci. E acrescentei — de fato, havia outro problema com a risada. O Turcomenistão é tão fechado que, de fora (e estávamos fora do país até ontem), não dá para saber se o presidente realmente é popular. Rir do cartaz com os cachorros pode bem ser interpretado como um escárnio do presidente, disse. Ele concordou sem ressalvas.

F chegou mostrando que poderia me ensinar, e por isso senti grande respeito por ele. Entretanto, dentro de mim, não pude evitar a sensação de que nosso contato inicial foi mutuamente desconfortável. Em vez de relaxar, meu novo companheiro de viagem julgou. Eu teria como avaliar esse estranhamento mais a fundo nos próximos dias.

No sítio de Konye Urgench, o Templo dos Pombos é separado do resto dos monumentos pelo nada do terreno imenso, descampado. É evidente que um dia abrigou uma grande cidade que foi tão terrivelmente aniquilada que nada mais pôde ser construído no seu lugar. T, que já estava sendo pago pelo dia inteiro para ficar à nossa disposição, sugeriu nos levar de carro a cada um dos pontos de interesse, ressaltando a distância entre eles. Eu lhe disse que preferia caminhar e F logo concordou, queria fazer o mesmo. Não havia muito por onde se perder. No final do terreno, após uma sequência natural visitando cada ponto de interesse, havia uma estrada e lá o motorista esperaria. T estimou que em duas horas veríamos tudo com muita calma. Ele estava apreensivo, pois teria ainda no mesmo dia que dirigir um bom trecho, incluindo uma parte pelo deserto por um caminho sem marcação, fora da estrada, até o acampamento de iurtas.

Enquanto F ficou explorando o Templo dos Pombos depois da minha visita, eu não podia tirar os olhos do horizonte. Havia várias famílias, pais, mães e muitas crianças, passando por nós e caminhando em silêncio em direção a uma torre muito alta, um minarete ancestral. Era o único monumento visível à distância. Fui acompanhando-os. Pelo caminho, já perto do minarete, cruzei com outro mausoléu, de um santo sufi, e logo percebi que as pessoas na verdade estavam seguindo para esse mausoléu para rezar. Mas muitos aproveitavam para fazer turismo e, depois das preces, visitar a estrutura vertical.

Segundo historiadores, o imenso minarete foi construído no século XIV e seria o único elemento sobrevivente da mesquita principal da velha Urgench. Se a mesquita fazia jus ao minarete, então era algo que desafiaria até mesmo os mais celebrados templos de Istambul, Cairo, Bagdá ou Damasco em termos de grandiosidade. A altura do minarete, chamado Gutlug Timur, supera qualquer outra estrutura ancestral na Ásia Central. Tem 60 metros — e, dizem, um dia já teve mais. O minarete mais alto que visitei anteriormente na Ásia Central, o Islom Khodja de Khiva, tem 57 metros. O gigante de Konye Urgench é levemente cônico, com a base de grande diâmetro subindo e se estreitando, e parece estar se inclinando. A porta para galgá-lo estava fechada, provavelmente de forma permanente, pelo risco à estrutura que trariam milhares de pessoas subindo-a todos os dias.

Talvez sua simplicidade seja um elemento que reforça sua imponência. Na sua superfície, dando a volta em sua circunferência, fileiras de tijolos com pouquíssimos elementos decorativos. Algumas linhas de dizeres em alfabeto árabe. Nada de combinações intrincadas de azulejos criando padrões geométricos, como no minarete Kalon de Bukhara ou no mausoléu de Aisha Bibi no Cazaquistão. Me pergunto se tudo isso é só restauro, se essa riqueza decorativa existiu um dia e foi destruída juntamente com o resto de Gurganj, enquanto que a torre em si, poderosíssima, resistiu à violência com uma força que nenhum humano poderia desafiar. Sem dúvida, o que torna o minarete mais impressionante é o fato de estar sozinho, perdido no meio do terreno, como um sinal de desafio às areias do tempo. E, assim, atrai os turcomenos, que lhe atribuem a santidade merecida. Os visitantes do mausoléu sufi ao lado se enfileiram e caminham dando voltas ao redor dele, sempre tocando levemente sua superfície, como que lhe fazendo carícias, esperando levar para casa um pouco da energia que lhe deu tanta longevidade.

Pouco à frente, no caminho para outros mausoléus espalhados pelo terreno, um pequeno morro é o destino específico de muitas das mulheres que visitam o sítio. Chamado de Kyrk Mollah ("Quarenta Mulás"), o morro é completamente pelado. Parece ser um monte de barro acumulado por tratores há poucos anos e do qual o tempo ainda não permitiu que brotassem árvores. Impressão equivocada; há séculos, o lugar é considerado sagrado, talvez o mais sagrado de todo o complexo. Diz a lenda que neste local os khoresmshahs montaram a última resistência antes de consumado o massacre pelos mongóis. Mas, para as seguidoras do Islã pesadamente influenciado por crenças perdidas no tempo desta região, o morro é associado à capacidade de mulheres gerarem filhos saudáveis. Ao lado dele, encontrei um numeroso grupo delas. Pareciam em transe. Rezavam em silêncio, dançavam uma dança muda, olhavam-se de olhos fechados; ao seu redor, um homem e algumas crianças as observavam atentos, como se testemunhando algo poderoso e misterioso. Essas mulheres queriam ter filhos ou rezavam por saúde para si mesmas e para outros. Tamanho é o transe do ritual que, dizem, algumas mulheres vão além. Sobem o morro e, no alto, se deitam no chão e rolam encosta abaixo, cobrindo seus vestidos coloridos com poeira e barro. Não as vi fazendo isso.

Tive uma sensação de que não deveria estar lá vendo as preces tão de perto. Me afastei e esbocei subir o morro quando fui interpelado, à distância, pelo homem que acompanhava o ritual. Acenos e gritos. Indicava que eu não posso subir. Voltei imediatamente, mas tive tempo de ver que, atrás da colina, havia um cemitério. Mais um sinal de quão santo os locais consideram o Kyrk Mollah.

Pelo vazio, continuei a caminhada, encontrando mais três monumentos de arquitetura bastante incomum, testemunhas da genialidade dos khoresmshahs e da sua influência sobre os estilos que viriam a seguir entre os povos que dominariam estas terras. Possivelmente do final do século XII, o mausoléu do Sultão Tekesh estava fechado, sendo restaurado. Nunca vi uma cúpula assim — cônica e coberta por azulejos azuis da cor do céu, azulejos que evocam os grandes monumentos de Samarkand. O sultão enterrado aqui teria conquistado terras bastante para o sul, talvez trazendo para Konye Urgench elementos da arquitetura persa que não haviam antes alcançado as margens do Amu Darya. Foi o pai do sultão Mohammed, aquele que teria autorizado o assassinato dos membros da comitiva enviada por Gengis Khan a Otyrar. No tempo de Sultan Tekesh, o império khoresmshah tomou Samarkand e Bukhara, garantindo assim as maiores riquezas da Ásia Central.

O mausoléu seguinte, o pequeno Il-Arslan, construído na segunda metade do século XII e claramente reformado, tem uma cúpula igualmente diferente, única, novamente cônica, mas poligonal, com 12 faces, cada uma decorada com padrões geométricos desenhados com azulejos azuis. Também estava fechado. Sob a cúpula, uma fachada elegante com uma porta simples de madeira e acima dela, três arcos com frisos de caligrafia árabe mesclada a ramos de plantas, numa composição que me lembrou as fachadas dos lindos mausoléus kharakanidas de Özgön, a cidade quirguiz que visitei em 2012. Il-Arslan foi o pai de sultão Tekesh, avô de Mohammed.

Por fim, após encontrar F pelo caminho, chegamos juntos a outro enigmático monumento, um ponto de interrogação como o Templo dos Pombos. Trata-se de um portal, uma entrada feita apenas de tijolos, sem nenhum detalhe em caligrafia árabe, nenhum azulejo. Novamente, como o mausoléu Il-Arslan, parecia ter sido reforçado ou reformado recentemente, mas, mesmo se não tivesse sido, estaria claro que é uma estrutura sólida, forte, praticamente impossível de se derrubar. Pela sua posição, tive a impressão de que era uma das entradas originais da velha Urgench.

À distância, me pareceu, na verdade, algo alienígena. Na superfície perto do portal não havia nada, ele estava isolado no descampado. Porém, ao seu redor, escavações mostravam que algo, na verdade, estava sim conectado à estrutura no passado. Um poço exibe, no subterrâneo, paredes com intrincadas linhas de azulejos. A decoração sugere luxo, riqueza. Mas o que existiu aqui? Não se tem ideia. Os arqueólogos não encontraram indícios convincentes identificando de forma definitiva o portal e o que está visível no poço. Teorias, há muitas. Talvez a mais interessante seja a de que o portal teria sido a entrada do palácio de Mohammed, e, por isso, essa teria sido uma estrutura que certamente os mongóis teriam feito questão de demolir. Talvez tenham deixado só o portal para que todos pudessem lembrar do horror que trouxeram. Ou talvez simplesmente não tenham conseguido destruí-lo.

Ao lado dele, uma placa dizia, em turcomeno, inglês e russo: "Portal de edificação desconhecida (séculos XII-XIV)". Mostrava um mapa esquemático da construção. Mais nada.

Olhei para trás. Um casal jovem entrou no portal, se sentou sob a sombra. Olharam na minha direção, depois olharam para o outro lado, para as escavações vizinhas, marolas num mar de perguntas.

Queriam namorar. Nada ao redor era importante para eles, viam apenas as ruínas que conheciam, na certa, desde que eram crianças. Para eles, não havia mar de perguntas nenhum. Era só um deserto e, o portal, um esconderijo.

Cheguei a perguntar a F o que achara de Konye Urgech. Ele estava procurando a melhor resposta, mas, nisso, ouvimos o ronco do motor do nosso carro. T estava chegando, esbaforido. "Estamos atrasados, subam!", disse.

O portal da edificação desconhecida foi desaparecendo, ficando para trás. Em pouco tempo nem mesmo o minarete gigante era visível.

Lá estive, um lugar que não existe mais.

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog uma vez por semana, aos domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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