Tuesday, 17 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (VI): Almaty

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31/8/2012

Como em São Paulo, velhas fachadas descuidadas de prédios passam despercebidas para os moradores da cidade no dia a dia - mas, para um estrangeiro, é mais fácil perceber essas sutilezas, as joias em meio ao concreto. Perto do Parque Gorki, ao leste do centro da cidade, lá estão elas. Algumas fachadas lembram as que eu vi na velha Verni (nome antigo de Almaty, dos tempos do império russo) em abril: janelas de madeira coloridas, frisos de madeira orlando o teto como se fossem bordados de crochê em uma toalha de mesa, com padrões geométricos exóticos. Outras fachadas são gemas soviéticas com a personalidade centro-asiática: os caixotes de concreto com as janelas e balcões trabalhados, ferragens e grades de grande capricho. De vez em quando, um prédio maior, com o detalhe oriental na fachada que faz toda a diferença. Algumas fachadas estão morrendo, tão mal cuidadas que estão; aguardam, agonizando, algum restauro. No sol poente, uma velha casa de dois andares, friamente soviética, funcional, mas com janelas de madeira caprichadas, deterioradas pela velhice. Ainda que triste, a velha casa sorri, percebendo que foi percebida. Em outra, vizinha, os detalhes em madeira do teto e da janela foram recuperados. O teto cobrindo a entrada é sustentado por lindas ferragens fazendo curvas. Quanta atenção aos detalhes.

Espanto-me de não ter conhecido em abril um pouco mais deste lado leste de casas antigas de cossacos que aqui se instalaram no século XIX. Do lado do delicioso Parque Gorki. Nele há um lindo lago que reflete uma vista extraordinária do Kok Tobe, o morro que subi, com um bondinho, na minha vez anterior por aqui. Tudo neste parque me lembra a infância. Voltei a ser criança. Vejo pais e filhos juntos em pedalinhos, fazendo juntos cara de esforço. Brinquedos de parque de diversão - um chapéu mexicano! Barco viking! Tudo tão colorido no anoitecer! Um anoitecer de Sol de ouro. Crianças rindo, crianças chorando. Umas trepam em uma escultura de uma pantera. O pai as dirige para a fotografia que vai tirar - posem! E elas posam para a foto, todas as quatro crianças na pantera, todas de idades diferentes, de uns quatro a uns 13 anos, com os olhos já puxados ainda mais espremidos por causa do Sol no rosto.

Também há um restaurante - bem no meio do lago, em uma ilhota. Lugar perfeito para uma cerveja no fim de tarde. Mas não era esse o espírito, para mim, naquele momento. Preferi tomar um sorvete.

A cerveja eu deixo para mais tarde, para bem perto do hotel. Fico empolgado em voltar a tomar uma caneca gelada de Urso Branco, a loira que marcou minha primeira passagem por aqui, em mesas animadas, com meus colegas de faculdade. A cerveja que as mulheres recebem em canecas com canudinho - sim, assim que servem cerveja às damas por aqui. Mas, desta vez, opto em tomar minha Urso Branco em um lugar em que nunca estive, em um restaurante sem nada especial a não ser a vista para a confusão do mercado central de Almaty.

Com o calor imenso que fez hoje, mergulhei de boca no néctar com grande deleite. Goles longos. Foi quase metade da caneca. Fiquei até com um bigodinho branco.

Compartilhei a mesa com Tagat. Pele bronzeada, barba rala - há três ou quatro dias esperando uma gilete -, olhos vermelhos, meio amarelados, que sugerem noites mal dormidas e dias de muito álcool e tabaco. Dentes tortos e amarelo escuros. Rosto suado e suante, molhando a camisa social bege de mangas longas e arregaçadas, manchada, encardida. Diz ser fotógrafo e que trabalha para um jornal local. Tagat combina com o cenário do mercado no fim de tarde, um cenário extenuado. É um homem gasto, um homem xepa. Mas muito curioso em relação a mim. Quando disse que era brasileiro, instantaneamente perguntou se eu era futebolista. Quis saber como meu país está se unindo para se preparar para a Copa do Mundo e a Olimpíada. Não evitei polêmicas - disse que mais brasileiros preferiam abrir mão dos dois eventos para investir mais em saúde e educação. Olhando para o burburinho no mercado atrás de mim, Tagat concordou com a cabeça. Me copiou, bebendo um longo gole de Urso Branco.

Perguntei se ele gostava de Almaty e do Cazaquistão. "Sim", respondeu. E só. Lancei minhas visões, para tentar estimulá-lo a falar mais. Expliquei que o Cazaquistão me fascinava por ser vários países em um, por sua diversidade de cenários. E o povo, dividido em suas tradicionais hordas, cada região com personalidades distintas. Um imenso país, uma cidade maravilhosa, cazaque e ainda muito russa, a querida Almaty. Ele pareceu não entender nada que eu disse. Balançou a cabeça, grunhiu palavras que não entendi, pelo canto da boca. Eu não precisava entender as palavras. Foi muito claro. O que ele disse foi: "Como alguém pode gostar de meu país, esta bagunça?"

Tagat olhou para o lado, para as barracas, os vendedores, o lixo no chão, a gente chegando, a gente saindo. O Cazaquistão, este grande mercado no fim de um longo dia.

Nos despedimos como se fôssemos velhos conhecidos. Como bom centro-asiático, Tagat apertou minha mão direita com suas duas mãos e sorriu, atravessando meus olhos com os seus. Agradeci o bate-papo. Saindo do restaurante, olhei para trás. O vi triste, acenando para mim. Como se ele não quisesse estar lá, como se eu, o viajante, tivesse sido para ele um alívio temporário, uma defesa contra o calor e o suor que nem a cerveja mais gelada estanca.


* * *

Antes, tive no hotel uma noite infernal, como há muito tempo não tinha. Como previsto, já que a janela não fechou, meu quarto se transformou em um refeitório para mosquitos. No meio da noite, podre de sono, acendi a luz e fui para o tudo ou nada, desesperado. Matei sete. Fui dormir, mas o estrago estava feito. Não preguei mais os olhos até o amanhecer. E quando amanheceu, e finalmente voltei a cochilar, o relógio tocou para a segunda parte do inferno.

A burocracia era um dos pilares do estado soviético e com certeza sobrevive como legado, de várias formas, na Ásia Central. No Cazaquistão, especialmente, há essa exigência ridícula, a de que estrangeiros que entram no país por terra se registrem na polícia migratória até no máximo cinco dias após chegarem ao país. Dá raiva o fato de que, quem chega de avião (como eu em abril), não precisa fazer isso. Só quem vem por terra. Provavelmente, os gênios que criaram a regra pensam que os estrangeiros que chegam do exterior pelo aeroporto são endinheirados empresários que não representam perigo algum. E os que chegam por terra são pobretões ou, pior, refugiados do Afeganistão. Os motivos não importam muito, na verdade. O fato é que lá fui eu perder o que esperava ser um dia inteiro nos corredores burocráticos cazaques.

Cheguei mais de uma hora antes de abrir o escritório da polícia migratória - que, felizmente, não era muito distante do hotel. Madruguei porque esperava que fosse ter fila, e de fato já havia gente esperando quando eu cheguei. Minha preocupação era conseguir o registro no mesmo dia, já que já amanhã eu espero estar longe de Almaty.

Quando finalmente as portas se abriram, fomos conduzidos a uma sala circundada por dez guichês diferentes com avisos exclusivamente em russo e cazaque explicando para que serviam - registro de estudantes, registro provisório de estrangeiros e assim por diante. Mais uma coisa que não fazia nenhum sentido para mim: num lugar onde estrangeiros são forçados a ir, não havia sequer uma plaquinha em inglês. Nenhum funcionário falava inglês. Não há como orientar os estrangeiros. Mesmo sabendo um pouco de russo, fiquei perdido, sem saber qual fila pegar para falar com qual guichê. Afinal, em uma sala circundada por tantas janelas é de se esperar que as filas se misturem e tudo vire um grande prato de macarrão.

Um cazaque simpático, com um bom inglês, me apontou a fila para a janela certa. Ainda demorou alguns minutos até que o burocrata cazaque chegasse e abrisse o guichê. Aí, foi rápido. Eu tinha tido o máximo de cuidado de trazer copias de tudo que eles pudessem querer, além dos originais. O burocrata pegou as fotocópias e os originais, os colocou de lado e disse para eu voltar às 15h. Ficou com meu passaporte. Então, das 10h30, quando saí de lá, até as 15h, quando voltaria, se um policial me parasse na rua e pedisse meus documentos, eu estaria com um grande, grande problema nas mãos.

Mas não aconteceu nada. Zanzei pela avenida Tole Bi e pelo Parque Panfilov, aproveitando o lindo Sol e buscando banquinhos na sombra para aliviar os pés. Voltei pontualmente às 15h e recebi o passaporte registrado. Nada de carimbos no documento, só um mísero papelzinho anexado ao passaporte com um clipe. Bem fácil de perder.

Planejo algo bem diferente para amanhã.

Grande Lago de Almaty, 1/9, 10h50

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Sunday, 15 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (V): Almaty

Adentrando as estepes, me afastando das montanhas, rumo ao reencontro com Almaty

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30/08/2012

A estrada atravessa estepes douradas. De um lado, à direita, o sul: um mundo rasteiro e seco, povoado por um único cavalo solto, sem mestre, galopando paralelo à estrada, lá longe, perto das montanhas. Do outro lado das montanhas, invisível, o lago Issyk-Kul, lembrando de mim. À esquerda da estrada, o norte: mais secura que reflete o Sol. Às vezes, um poste com cabos de energia. Em geral, nada, apenas imensidão. Apenas estepes.

A viagem para Almaty foi, como esperado, uma pequena aventura. A divisa internacional fica a apenas 30 minutos de carro de Bishkek. Até Almaty, negociei o preço de 600 soms (cerca de US$ 9) com o motorista, que levava mais 3 passageiros, além de mim, em seu carro coreano. Todos bem apertados.

Inevitavelmente, o posto de fronteira era uma imensa bagunça; sujeira, gente carregando volumosas sacolas e crianças, velhinhos aguentando os ossos, todos em fila para tudo. Também policiais por toda a parte. E medo por toda a parte - o medo de todos de terem suas bolsas abertas pelos guardas, de não saber explicar por que vão atravessar a fronteira que separa países com povos e línguas tão parecidos e, principalmente, separa famílias. Respiro fundo na espera. Na janelinha, entrego o passaporte ao mandarim com seu uniforme militar. Primeiro, o guarda quirguiz, depois, em outra janelinha, o guarda cazaque, que foi muito mais cortês. Até lhe fiz uma pergunta. Sim, confirmou, em Almaty não escaparei da burocracia de ter que me registrar na polícia migratória, um transtorno que por aqui na Ásia Central só os cazaques proporcionam aos turistas - felizmente, só a aqueles que atravessam as fronteiras do país por terra, o que é exatamente o meu caso. Em teoria, só para me registrar vou ter que gastar um dia inteiro em Almaty. Bom, não será um grande suplício. O problema é a lógica disso. Basicamente, irei pegar fila em um órgão do governo para confirmar que estou no Cazaquistão - algo que o governo já sabe, ou deveria saber, pois carimbaram meu passaporte. Ouço a explicação do guarda. Não entendi a burocracia, mas, é claro, isso sim, entendi que não adianta reclamar.

Para passar pela alfândega e pelo controle de passaporte, por uma hora me separei e perdi contato visual com meus companheiros de carro. Um pouco de tensão. Aperto os olhos para ver à distância - sim, uns dez carros adiante, na fila de veículos para entrar no Cazaquistão, encontro eles, um sentado numa mureta, outro agachado, outros de pé. Era um grupo bem heterogêneo - um uzbeque, dois tajiques e um quirguiz (o motorista), além de mim, usando um chapéu cazaque comprado em abril em Almaty. Ou seja, eu era o cazaque honorário do carro-lotação. Consegui conversar um pouco em russo com o tajique, que me perguntou se eu ia a seu país (disse que sim) e se eu achava, como ele, que o futebol brasileiro ia mal das pernas (concordei, mas disse para ele ficar de olho no Neymar, e o convidei a vir ao Brasil para a Copa).

Cruzando as estepes, bateu um sono. Acordei com o carro parando à beira da estrada, ao lado da barraquinha de uma velhinha miúda vendendo bebidas típicas da região. Entre as delícias que oferecia estava o tal do kumiz que não ousei provar em Bishkek. O leite de égua fermentado típico do verão cazaque e quirguiz se mostrou uma grande tentação. Pedi para provar, imaginando que a velhinha tivesse ela mesmo feito a bebida, ordenhando uma égua em seu humilde curral. Eis que ela some para sua casa, do lado da barraquinha, e volta com uma garrafa do líquido branco industrializado, com rótulo e tudo - que espanto, nem sabia que existia kumiz industrializado! Ela abre a garrafa e sai tanto gás de dentro que a espuma explode, molhando a mesa e a mão da dona. Fecho os olhos e deixo o líquido entrar em mim.

Kumiz foi, com certeza, melhor do que aquela asquerosidade, o maksym, que provei em Bishkek. Lembra um refrigerante bem gasoso, mas com gosto de iogurte salgado, meio ácido... um pouco azedo. Também um pouco alcoólico (de fato, os nômades das estepes tradicionalmente tomam porres de kumiz). Gostei, mas decidi não repetir... não por ora. O motivo é simples: se precisar ir ao banheiro por causa dos efeitos indesejáveis do líquido sobre minhas tripas, que o banheiro esteja bem perto. E não à beira do asfalto.


* * *

Almaty. Diferentemente da primeira vez em que estive aqui, em abril, os canais nas calçadas, sulcos para levar água às plantas e árvores, para tirar um pouco a poeira do ar, viraram verdadeiros rios. A cidade me recebeu verde, cheirosa, cheia de flores, especialmente no centro. Entendi o encanto verde de Almaty como não havia entendido antes, quando a poeira e os carros falaram mais alto, quando as árvores estavam cinzentas no fim do inverno. Agora, nas praças, as fontes criam lindos prismas com o Sol poente, tudo colorido pelos arco-íris que incidem na vista. Os velhinhos conversando nos bancos. As gotículas entrando pelo nariz, que alívio num dia seco!

Reencontro o parque Panfilov - aquele perto da universidade KBTU que tanto frequentei há quatro meses, o que guarda a linda catedral da Sagrada Ascensão. Uma simpática muçulmana de meia idade, rosto enrugado, ao me ver com meu chapéu cazaque - a partir de então meu companheiro inseparável de viagem - me elogia, diz que o chapéu ficou muito bem em mim. Me pergunta se sou muçulmano - geralmente, quem usa o chapéu é muçulmano praticante, de ir na mesquita todo dia. Digo que não, mas ressalto o quanto gosto do chapéu, chamado em russo de tubeteika. Ela sorri, muito, e parece muito sincera. Nos despedimos. Em outra vida, provavelmente eu a convidaria a ir à mesquita. Mas neste mundo, nesta vida, minha oração por ela se faz em longos goles de refrigerante gelado, de uma latinha suada, sentado num banquinho do parque, fechando os olhos para não ser ofuscado pelo Sol, por Alá.

Tenho uma reserva. O hotel Turkistan tem lados negativos e positivos. Os negativos: fica exatamente em frente ao mercado (ou bazar, como eles são chamados em todos os países da Ásia Central, geralmente uma mistura de barracas em espaço coberto e feira ao ar livre) mais importante da cidade. Muita gente passa por aqui, há muito barulho, muita confusão, tenho até medo de ser assaltado. Além disso, é bem perto da mesquita central, exposto aos cantos do muezim (o homem que faz o chamado para as orações) às 5h da manhã. É um prédio mal preservado por fora e por dentro. No meu quinto andar, um corredor cavernoso, assustador, com luz fraca demais para o meu gosto, tudo gasto, desbotando. Tudo vermelho: tapete, o papel de parede descolando. No quarto, a janela não fecha direito, a cortina velha não cobre todo o vidro, a luz passa forte durante todo o dia. Acho que a noite vai ser barulhenta e cheia de mosquitos. As paredes são finas, e meus vizinhos aparentemente não estão muito preocupados com os ouvidos dos outros hóspedes. Pontos positivos: barato (3000 tenge por noite, aproximadamente US$ 9). O quarto é limpo e, algo inesperado, tem até TV. E, analisando friamente, o fato de ser perto de tudo, bem central, é também uma vantagem. Espero conseguir dormir para poder passear bastante amanhã.

Almaty, 30/8, 21h34

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Wednesday, 11 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (IV): Bishkek

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29/08/2012

Comecei o dia novamente praticando o "esporte" que deve se tornar o mais comum nesta viagem. Com o Sol tostando o meu rosto, às 8h30, me posicionei à beira da estrada, acenando para cada carro que passava em direção à capital quirguiz. Após perguntar na pousada, de antemão sabia qual preço era justo pagar pelo transporte de van ou táxi compartilhado de Tamchy a Bishkek. Ônibus quase não passam. Até aceitaria pegar um, são muito mais baratos - e muito mais desconfortáveis. Mas nenhum sequer desacelerou ao me ver.

A demora em conseguir encontrar transporte me deixou angustiado. Demorou 15 minutos até parar o primeiro veículo - a maioria deles já vinham cheios de Cholpon-Ata ou mesmo de Karakol, que é grande em comparação com outras cidades às margens do Issyk-Kul. Outro problema foi, com meu russo, negociar o preço justo. Acabei aceitando pagar 300 soms (aproximadamente US$ 4) por um lugar em uma van. O preço justo teria sido 250, mas eu já havia passado uma hora derretendo no acostamento.

Na viagem de volta, pelo mesmíssimo caminho da ida, percebi quão próximo eu estava da fronteira cazaque. Da janela da van, eu contei pelo menos dois postos de fronteira diretamente à direita da estrada, saindo da via só alguns metros. Na divisa internacional, fica o rio Chuy (que dá nome a esta região quirguiz). Boa parte da estrada depois do Desfiladeiro do Cadarço segue paralela ao Chuy, que por sua vez segue à beira de duas cercas altas. Fiquei imaginando se as cercas de arame são eletrificadas ou patrulhadas - elas parecem ser fáceis de passar por quem tiver ferramentas para cortar o arame.

O rio Chuy é verde e rápido. No Desfiladeiro do Cadarço, ele forma corredeiras perfeitas para o rafting. No trecho, ele deve ter quatro ou cinco metros de largura e, se esfregando nas pedras, forma um pouco de espuma branca. Parece limpo. Convidativo. Como seria dar uma mergulhada nele? Com o suor acumulado e as camadas de bloqueador solar, o devaneio me vinha como um consolo nas três horas até Bishkek.


* * *

Anoitecer na praça Ala Too. Um grupo de umas 200 pessoas se reúne no local para um ensaio final da apresentação que farão na comemoração do Dia da Independência do Quirguistão, comemorado em 31 de agosto. De crianças aparentando não mais que oito anos a adolescentes, elas fazem uma elaborada coreografia ao som de uma música patriótica, entoada por alto-falantes em uma van. Pulam, bate palmas, dão voltinhas e sorriem - sorriem muito. Uma das orientadoras não parece muito satisfeita com o ensaio, mas provavelmente não há tempo suficiente até a festa de independência para melhorar muito mais do que isso.

Os jovens na Ala Too são a perfeita representação da variedade étnica do país e da Ásia Central como um todo: há as crianças loirinhas de origem russa, as de olhinhos mais puxados, as mais branquinhas, provavelmente do norte, as mais morenas, provavelmente do sul. Os jovens mais velhos são fortes, mas não muito altos. Um grupo deles balança sem parar bandeiras vermelho-amarelas, as cores nacionais. Ao lado, alta e imponente, a estátua de Manas, o herói de um poema épico de séculos atrás que foi adotado pelo estado quirguiz como o centro da identidade do país - como o conquistador do século XIV Tamerlão (1336-1405) foi adotado no Uzbequistão e Ismail Samani (849-907), emir da dinastia persa samanida, no Tajiquistão.

Bishkek foi novamente rápida, para resolver problemas. Não me preocupou muito não conhecê-la bem. Eu sabia que, no final da minha viagem, estaria de volta por aqui. Meu plano é voltar em outubro para meus dois meses estudando na cidade, para tentar melhorar meu russo. Encontrei uma escola perfeita em minhas pesquisas pela internet, um lugar onde há muitos estrangeiros como eu tentando avançar no idioma. Resolvi o primeiro problema - fui até lá e paguei o meu depósito. O pessoal da secretaria me recebeu falando bom inglês e me senti muito bem-vindo.

Em segundo lugar, precisei comprar uma câmera. Optei pelo mesmo modelo de celular que eu perdi. Foi necessário muito esforço para encontrar uma loja na capital onde pudesse achar o aparelho e na qual eu pudesse pagar com cartão de crédito. E foi caro, mais de US$ 400, uma fortuna na moeda local. A ajuda do pessoal da escola foi imprescindível para achar a loja, que ficava em um prédio bem na Chuy, uma das avenidas centrais. O lugar era tão escondido que parecia que eu estava indo comprar drogas. Ia por perto perguntando às pessoas na rua. Muitas não sabiam onde era. Outras, respondiam cochichando e apontando para o edifício. Vou até o quinto andar, encontro uma salinha comercial. Sim, aqui mesmo. Felizmente, deu tudo certo.

Outro problema que tive que resolver foi arrumar de vez a mochila para a viagem. Em meu pulinho até o Issyk-Kul, permaneci sem dar check-out do meu "apartamento" no hotel em que me hospedei ao chegar a Bishkek. Assim pude deixar lá minhas coisas mais pesadas e ir passear tranquilo. Meu plano para o resto da viagem é deixar uma mala maior com roupas neste mesmo hotel e recolhê-la na volta. Me hospedarei aqui mais uma noite antes de me mudar para uma casa de família para o meu período como estudante. O hotel topou. Fiquei mais leve, mas praticamente sem espaço sobrando na pequena mochila. De roupa, levarei cuecas, meias, duas camisetas, um casaco e uma jaqueta para chuva, mais nada. Além disso, meu guia de turismo e um pequeno espaço sobrando para água, para colocar algo de comer e o que eu for comprando pelo caminho - como coleciono chapéus, sei que até o final da viagem vai faltar espaço.

Fui dormir ainda sem sono. Acordei cedinho com mais um dia lindo de sol. Estou particularmente feliz - vou rever Almaty.

Bishkek, 30/8, 8h30

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Na jovem república, a festa de independência é uma importante manifestação de orgulho

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Sunday, 8 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (III): Tamchy

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28/08/2012

Minha decisão foi ir a Tamchy, uma cidade a uns 30 minutos de carro de Cholpon-Ata, também à beira do lago, também um balneário, para ter uma outra visão da "riviera quirguiz", com menos gente e agitação. Antes, porém, decidi iniciar um longo passeio a pé por ruas perdidas de Cholpon-Ata, em direção às montanhas. O ar seco, a poeira e o calor sufocante me acompanharam pelas ruas sem asfaltar. O lugar me lembrava uma periferia qualquer, sem nenhuma casa ou construção mais chamativa.

De repente, encontro, à minha direita, um guarita na frente de um descampado amplo com um aclive progressivo, no pé da serra. Vejo lá pedras arredondadas, todas grandes, umas maiores, outras menores. Nelas, os fantasmas da pré-história.

Encontro nas rochas muitas inscrições, fracas e desaparecendo. Pinturas rupestres datando de a partir da era do bronze, aproximadamente do segundo milênio antes de Cristo. A essas pinturas, outras foram sendo agregadas, cortesia de povos que passaram pela região. Vieram os sakas (ou citas), os ancestrais habitantes da Sibéria, citados por Heródoto em suas crônicas, que ocuparam a região do Issyk-Kul e deixaram seus rastros entre os séculos VIII e III antes de Cristo. E os povos túrquicos, antepassados dos turcos, que em uma primeira leva de invasões vindos do que é hoje parte da China e Sibéria dominaram uma vasta área ao redor do lago por volta do século VI depois de Cristo.

Decepcionei-me. Esperava mais quando me disseram que este tesouro estava exposto aqui. Tirando um ou outro rabisco mostrando bodes selvagens e leopardos-das-neves, os demais são pequenos demais e estão quase invisíveis. Como se não bastasse, há poucas indicações no local sobre onde encontrar as inscrições, e a quantidade de pedras não é pequena. Passei mais de uma hora "caçando" inscrições, tentando entender o que elas significavam (em muitos casos, não é fácil sem um estudioso explicando), como se eu fosse um observador do céu noturno que tenta desenhar com os olhos as constelações sem ter nas mãos uma carta celeste. O lugar todo parece meio abandonado. Na guarita na entrada, onde supostamente alguém estaria vendendo entradas, não encontrei ninguém. Não há nada protegendo as pedras dos elementos. Assim, não é de se estranhar que as linhas vão se apagando, cobertas por sujeira e então lavadas por chuvas infinitas.

Mas nada de chuva neste momento. Caminhando e olhando os desenhos, tive que parar umas duas vezes para recobrar o fôlego, tomar água e reaplicar bloqueador solar, tamanho era o sol das 9h30 da manhã. Quase não conseguia me concentrar para ver a arte rupestre, gotejando suor nas pedras.

Retomei a caminhada, indo dali até a estrada principal, lá embaixo, a mesma que vai até Bishkek. Totalmente distraído, quando olho ao redor vejo que estou no meio de uma vasta pista asfaltada, basicamente uma longa reta refletindo o sol. Ela surge do nada e não é a estrada. Não vi nenhuma placa explicando onde eu estava, não enfrentei cercas, nada. E, de repente, vejo um carro a milhão me ultrapassando, passando a uns três metros de mim. Me pergunto se estou em uma pista de corrida. E continuo com essa teoria até que, finalmente, quase chegando à estrada principal, vejo um helicóptero estacionado ao lado de uma casa, os dois tripulantes à beira da pista. Estou no aeroporto de Cholpon-Ata. Sim, estava andando no meio da pista, correndo o risco de ser atropelado por um avião pousando! Pelo jeito o pessoal aqui não liga muito para segurança e usa a pista para se divertir (daí o motorista que passou com seu carro ao meu lado) ou se deslocar para casa, como se esta fosse uma avenida como qualquer outra.

De qualquer forma, o lugar não deve receber muitos voos. Novamente, como no campo das pedras, ele me pareceu às moscas.

Continuei descendo. À minha frente, exatamente à minha frente, um sol imenso iluminando o lago cintilante. Azul e calmo.

Na estrada principal, penei horrores para conseguir parar um táxi coletivo que topasse me levar a Tamchy por um preço honesto. O transporte por lotações e táxis compartilhados é muito mais comum de que o por ônibus na Ásia Central, e aqui não é exceção. No entanto, os motoristas encontram um turista e só enxergam cifrões. Pechinchar é fundamental. Dois carros pararam, e os motoristas propuseram me levar pelo mesmo preço que eu havia pago pela viagem inteira de Bishkek para cá. No final, um grupo, incluindo dois velhinhos simpáticos usando o tradicional chapéu ak kalpak, topou me levar por cem soms (aproximadamente US$ 1,5). Mas tive que me virar com meu russo limitadíssimo para explicar como estava viajando com tão pouco dinheiro e assim precisava de um desconto na corrida.

Foi a primeira vez que pude ver de perto o ak kalpak. No meu dia caminhando em Bishkek, encontrei muitos homens usando-o, mas não a uma distância que me permitisse ver seus detalhes. Adoro chapéus, especialmente os centro-asiáticos, e o ak kalpak é, entre eles, provavelmente o mais exótico: branco, com detalhes pretos bordados com padrões tradicionais quirguizes, e alto - como se fosse uma cartola feita de feltro branco. Para terminar, de sua ponta, lá no alto, despenca um rabicho, uma linha que termina em um nó e um pequeno pincel. Muito bonito. O senhor quirguiz abriu um imenso sorriso de dentes de ouro quando elogiei sua indumentária.

Em Tamchy, tive minha primeira experiência de turismo comunitário no Quirguistão, uma ideia muito interessante para impulsionar a economia local. As comunidades em lugares pobres, mas com potencial turístico, se mobilizam para criar um centro para turistas em que os visitantes são conduzidos a pernoites nas casas dos locais e podem contratar guias para passeios. Uma associação nacional surgiu para dar apoio aos quirguizes interessados em empreender, ajudando na organização, explicando como converter casas em pousadas e o que oferecer ao turista. O esquema é bem-sucedido, trazendo divisas valiosas para comunidades de baixa renda, ajudando a desenvolver a infraestrutura e impulsionando mais e mais o turismo. No caso, em Tamchy, uma senhora com bom inglês me recebeu em uma pacata casa à beira da estrada. Era o escritório da associação local de turismo comunitário. Fui tratado com muito carinho. Logo ela me arranjou um lugar para ficar em uma propriedade próxima, pertencente a uma outra senhora, nos fundos de um terreno com árvores frutíferas. Havia lá duas casas - uma, a da mulher e sua família, e, a outra, o "hotel" - com salas espaçosas e tapetes cobrindo o chão de madeira e uma dez camas espalhadas em três cômodos. Do lado de fora, uma casinha com um chuveiro morno e outra com uma privada - um conforto a mais depois da pousada em Cholpon-Ata com o buraco no chão, para se agachar. Tudo, 500 soms (aproximadamente US$ 7), com café da manhã.

Cheguei a Tamchy às 15h30. Depois de me registrar no "hotel", o resto do dia se desenrolou muito como em um dia de verão numa praia brasileira. Fui para o lago. Havia muita gente na areia aproveitando o tempo bom e a água azul, mas bem menos do que em Cholpon-Ata. Em Tamchy, a extensão da praia também era maior. Andando descalço na areia, depois de alguns poucos minutos encontrei um espaço desocupado e me deitei. Cochilei no sol.

Uma hora depois, me emocionei ao, finalmente, entrar no Issyk-Kul pela primeira vez. Enfrentei os seixos pequenos e dolorosos sob meus pés nos passos para o fundo. Foi estranho sentir a temperatura. Fiquei instintivamente esperando uma água bem fria, mas já sabia que não era assim. Estava tépida, agradável, quase que uma extensão da temperatura do meu corpo. Muito transparente, sem nenhuma onda. Meus pés permaneceram visíveis, mesmo estando eu mergulhado até o peito. A água é salobra, mas não muito - um gosto parecido com o da água mineral engarrafada que havia comprado mais cedo.

Novamente, como em Cholpon-Ata, lixo na praia. E, aqui, camelos para turistas tirarem fotos. Já vi mais camelos por essas bandas do que em qualquer outro lugar na Ásia Central em que estive anteriormente. Mas sempre conduzidos por gente procurando conseguir uns trocados dos visitantes com dinheiro para jogar fora. Se existem livres na natureza os famosos camelos-bactrianos descritos por viajantes antigos, esses camelos naturais do coração da Ásia estão bem escondidos. Também encontrei umas vacas na areia, tranquilíssimas, totalmente no espírito do verão.

Mais tarde, a caminho do anoitecer, saí da praia para caminhar pelas ruas de terra do vilarejo. Foi quando uma legítima tempestade de areia transformou o panorama. Ela veio do nada, de repente. O forte vento levantou a areia da praia e a poeira das ruas, que chicoteavam minha pele e me impediam de abrir os olhos direito. De repente, me encontrei em uma cidade fantasma, quase um cenário de filme de faroeste: 17h30, o Sol ainda forte, o ar intransponível e amarelado, pouquíssimas pessoas ao meu redor, portas e janelas batendo, um homem com um cavalo passando apressado, tentando proteger o rosto. Nessa altura, pelo menos a temperatura do vento estava agradável. Mas o Sol teimou em não enfraquecer até muito pouco antes do anoitecer. Voltei brevemente à pousada para me proteger.

De noite, o vento se acalmou. Eu e um casal de turistas hóspedes na mesma casa decidimos enfrentar as ruas novamente para comer alguma coisa. No único restaurante que achamos, houve uma queda de energia. Na escuridão só iluminada por um lampião na cozinha, vi o casal europeu atacar dois apetitosos espetinhos de carne bovina, cheirosos, com uma salada de cebola ao lado. Eu fiquei sem o lagman (talharim estilo asiático, grosso, achatado) que pedi, o cozinheiro esqueceu de cozinhá-lo quando a luz acabou. Apesar da graciosa oferta do casal, não quis comer carne - nem sei porquê. Fui para casa comendo um pedaço de pão com pimenta, restos da janta dos dois. Fiquei satisfeito.

Mais uma vez, me espantou a pobreza e falta de infraestrutura dos locais. Estamos numa região turística, o dinheiro dos visitantes flui. Eu esperaria que o governo investisse aqui. Mas, aparentemente, não há coleta de esgoto. Na casa onde fiquei, por exemplo, não há, apesar de ela ser grande e confortável. Notei que a privada, com a qual me empolguei mais cedo, simplesmente cobre um buraco profundo na terra (novamente, como na pousada em Cholpon-Ata). A água vem de poços - trazida para a superfície por bombas manuais. A falta de saneamento acaba impulsionando todos a manter o hábito tradicional de ferver água e tomar chá quente, mesmo no calor. Além disso, nenhuma rua, a não ser a estrada principal para Bishkek, é asfaltada. Muitas casas aparentam estar largadas, precisando desesperadamente de uma reforma. São de alvenaria. As mais bonitas estão próximas à praia, onde está sendo construído um hotel chamado "Old Castle", assim mesmo, em inglês. Basicamente, a réplica de um pequeno castelo, com uma torre. Será que atrai turistas?

Apesar da riqueza de frutas - novamente vi árvores carregadíssimas, de maçãs e damasco, e encontrei geleias maravilhosas à venda -, toda a economia local parece depender exclusivamente do turismo. Muitos alugam quartos, outros têm pequenos empórios ou bares, todos apostando nos meses de sol. Não imagino quão deprimente seja esta região no inverno, com o vento desta tarde igualmente forte, mas gelado, com o tempo nublado, sem um turista sequer. Mas a beleza do Issyk-Kul serve de consolo.

Tamchy, 29/08, 7h

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Wednesday, 4 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (II): Cholpon-Ata

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27/08/2012

As montanhas da serra Ala Too, sem árvores, bege esverdeadas, coroadas com neve nos pontos mais altos mesmo neste auge do verão, cercam Cholpon-Ata. Este é um dos locais mais surreais da Ásia Central. Aqui funciona um movimentado balneário frequentado por famílias de russos, cazaques e quirguizes. Os cazaques até alguns anos atrás ainda podiam vir por trilhas atravessando as montanhas - logo ali, do outro lado delas, fica a Almaty que visitei em abril.

Todos vêm para cá para ficar hipnotizados com o lago Issyk-Kul, um leviatã de águas azuis e verdes, muito transparentes, alimentadas por rios, pelo degelo e por fontes termais. À distância, vindo de Bishkek, o lago aparece no horizonte de repente, após minha lotação passar por uma serra. Aparece como uma grande faixa azul. Em vários trechos, não há nada à beira dele a não ser vegetação rasteira. O Issyk-Kul, o segundo maior lago de montanha do mundo (só perde para o lago Titicaca na Bolívia), fica a cerca de 1,6 mil metros de altitude e chega a uma profundidade de quase 700 metros. Estende-se por quase 180 km, ocupando o nordeste do Quirguistão. Curiosamente, mesmo no mais tenebroso inverno, jamais congela. Trata-se do resultado de sua alta salinidade e das fontes termais que o alimentam. Daí seu nome: "lago morno", a tradução literal de Issyk-Kul.

Testemunhou séculos de violência - mongóis a caminho de suas conquistas, chineses, tribos turcas. Esse seu passado de envolvimento em guerras contrasta com a paz que todos sentem ao vê-lo hoje. Nenhuma onda, só marolinhas, uma superfície de poucas rugas, a água até quase a perder de vista, só muito distante, em dias muito claros, talvez você consiga ver as montanhas do outro lado.

Há outros balneários, mas sem dúvida Cholpon-Ata é o mais movimentado. Há dezenas de barraquinhas vendendo comida e artesanato a caminho da praia; casas alugando quartos, hotéis e restaurantes ao redor da estrada - que liga Bishkek a Karakol, a maior cidade no leste, quase na China. Também há lojas vendendo boias coloridas. O estilo de todo local praiano, uma paulista Praia Grande, em escala menor. A areia é disputada. Talvez a principal diferença em relação às praias do Brasil seja a falta de corpos malhados. Os gordinhos e gordinhas se divertem sem frescura, com roupas de banho nada reveladoras. Apenas olho, apenas olho. Ainda vou tomar banho nesse azul.


* * *

Isso foi ontem. Hoje, acordei às 7h e vim à praia escrever. Optei por começar o dia bem cedo, sacrificando, em troca, qualquer agito na noite anterior para dormir o suficiente e acordar disposto. A estratégia me deu hoje a praia quase vazia. Alguns velhinhos já se banham, acarinhados pelo solzinho leve, enquanto mochileiros dormem com seus sacos de dormir na areia. Apesar do número de pessoas que aqui fazem veraneio, o balneário mantém sua magia. As montanhas ao redor são lindas demais. Na Serra do Mar do litoral paulista ou fluminense, as montanhas perto da orla são de uma mata densa, barulhenta de grilos e pássaros. Aqui, elas são silenciosas, são areia, são pedra, mato rasteiro, pouco mais que alguns insetos desconhecidos as usam como lar. Na curta planície entre elas e o lago-mar, álamos crescem juntamente com macieiras. Sentado em uma das mesinhas de madeira plantadas na areia, lembro-me de Parati: a mesma tranquilidade do porto da cidade. Mas estou a milhares e milhares de quilômetros do oceano mais próximo e ainda mais do Rio de Janeiro. Isso fica se repetindo como um mantra na minha cabeça.

Ontem, em Bishkek, o dia começou com uma surpresa bem ruim - longas viagens são inevitavelmente cheias delas, e concluo cada vez mais que são elas que nos ensinam as coisas mais valiosas. Perdi meu celular, que eu usava como despertador e, principalmente, como câmera fotográfica. Perdi em uma lotação, ele escorregou do meu bolso quando me deslocava do hotel para a rodoviária, onde peguei outra lotação para Cholpon-Ata. Estou à beira do Issyk-Kul sem poder tirar uma foto. Já me martirizei o suficiente pelo que ocorreu, e agora tenho a missão de comprar outro celular-câmera assim que voltar a Bishkek. Custe o que custar. Depois, no fim da viagem, volto para fazer novas fotos.

No caminho para cá, a estrada parece recapeada recentemente e boa parte dela cruza áreas desabitadas, de colinas e picos, novamente um terreno muito seco, sem árvores. Em dado momento, o asfalto passa em meio a duas colunas de montanhas, o chamado de "Desfiladeiro do Cadarço" - um nome curioso que ninguém conseguiu me explicar de onde vem. Lá encontrei pela primeira vez algumas iurtas - as tendas de forma circular dos povos nômades e seminômades da região. Até então, só as havia visto em um museu em Almaty, o que não conta. Na estrada, são usadas como moradia para vendedores de kumiz, o tradicional e popular leite de égua fermentado, que ainda não provei.

Em Cholpon-Ata, mesmo com o dinheiro dos turistas, falta infraestrutura. Na pousada onde fiquei, o banheiro é uma fossa, um buraco no chão, se enchendo de excrementos, poluindo o solo e a água subterrânea. Não sei quão regular é a coleta de lixo, mas em alguns locais perto da praia parece que isso não é uma preocupação. Garrafas de vidro quebradas ficam espalhadas pela areia. Não importa. Nada tira o deslumbramento deste lugar, nem isso. Ao lado da fossa da pousada, uma macieira e uma pereira tortas de tão carregadas de frutos me deixaram boquiaberto nesta manhã, e uma maçã vermelhíssima quase caiu em minha cabeça! Por pouco tive meu momento Newton.

A noite por aqui foi difícil. Ouço do quarto: como em uma boa cidade praiana, os jovens fazem seus luaus com pés na areia. Som altíssimo, um eletrônico bate estaca, bem anos 80. Desmaiei de cansaço e uma hora depois acordei espantado com a bizarrice, na parte final da balada: uma versão em russo de The Lady in Red, de Chris de Burgh. Em seguida, Hello, aí sim em inglês, a versão original de Lionel Richie. O momento dos casaizinhos se amassarem, talvez? Depois de Hello, por fim, tudo ficou em silêncio. Acabou por volta da meia-noite. Acho que no Brasil as festas de praia não terminam exatamente assim...

De volta ao presente. Estava me preparando para sair da praia, e um casal ficou curioso comigo e me abordou. A moça, bem simpática, russa com um inglês decente, me recomendou que hoje eu vá a Karakol, a umas três ou quatro horas daqui. Muito bonito, ela diz. Sou um rebelde. Me recuso a decidir até daqui a pouco.

Cholpon-Ata, 28/08, 7h30

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Sunday, 1 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (I): Bishkek

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26/8/2012

Fecho os olhos.


A imagem surge. O verde intenso da Inglaterra. Em arbustos e árvores de verão, molhados, encharcados, gotejando de chuva.

O verde desaparecendo aos poucos. Entra o ocre. A poeira. O calor. O deserto, arbustos rasteiros, uma luz intensa.

E depois, vejo as montanhas, altas, altíssimas, lá no fundo, além da poeira do deserto.


Abro os olhos.


Duas pessoas checaram meu passaporte durante a longa jornada Birmingham-Londres-Berlim-Istambul-Bishkek, que me devolveu à Ásia Central em quase 24 horas de viagem. As duas checagens ocorreram no aeroporto de Tegel, em Berlim. Os dois funcionários da Turkish Airlines fizeram a mesma coisa, procuraram meu visto quirguiz. Folhearam lentamente o documento. Um deles enunciando, em voz alta, cada visto que encontrava. "Cazaque"... breve silêncio. "Uzbeque"... breve silêncio. "Tajique"... breve silêncio. "Ah, quirguiz!"

Me senti orgulhoso em ambos os casos. Foi um sufoco conseguir cada visto, em Londres. Longos meses indo e vindo de consulados, contatos telefônicos, tirar fotos, gastar dinheiro e mais dinheiro. Enfim! Todos no passaporte! Vê-los só pode ser um presságio de coisas boas. De novas aventuras. De um medo bom, gostoso, do desconhecido.

Cheguei a Bishkek, capital do Quirguistão, no mesmo horário das duas vezes que visitara o Uzbequistão: de madrugada, 3h da manhã. Boa impressão - pouca burocracia. Cheguei, peguei uma fila, mostrei meu passaporte a um policial, ele carimbou, peguei minha mala e saí para o saguão do aeroporto Manas. Nada de formulários malucos para preencher ou comprovantes para guardar durante minha estada. Não quiseram olhar dentro da minha bagagem! Abri um largo sorriso. Que se foi rapidamente.

No saguão, procurei pela motorista que eu havia combinado previamente que iria me receber e me levar para o hotel. O saguão de desembarque - também como ocorrera em minhas viagens anteriores à Ásia Central - estava lotado de taxistas farejando o cheiro de dólares dos turistas. Me assustou bastante o fato de eu ter ficado à mercê daquela corja. Cansado da viagem, cansado por causa do horário. É traumatizante, ainda mais sem saber falar a língua local. Lembrei-me do caso de minha visita a Bukhara, em 2003, quando o ônibus me deixou em uma estrada no meio do nada no romper do dia e fiquei cercado de taxistas agarrando meus braços. Os taxistas te abordam várias vezes, falam russo e inglês, tentam te vencer pelo cansaço e quase me venceram. Estava com a mão no dinheiro quando minha motorista - uma calma e simpática senhora de uns quarenta anos - apareceu se desculpando, dizendo ter se atrasado para sair de casa. Fomos correndo para o carro deixando os taxistas resmungando.

Deixamos o aeroporto e seguimos em direção ao centro num Lada. A capital quirguiz me recebeu em um breu quase completo. Atravessamos um trecho - que julguei eu ser um campo agrícola - completamente às escuras, apenas com a luz dos faróis do carro. Já na cidade, postes com luz amarelada acenavam uns aos outros de grandes distâncias. Saímos de uma avenida mais larga, entramos numa ruela novamente sem iluminação e com asfalto irregular. Dando pulos no banco do carro, chegamos ao hotel, que me pareceu um perfeito esconderijo. No escuro, ficamos tocando a campainha até uma moça abrir o portão. Nada de letreiros coloridos indicando que se tratava de um hotel. Era uma casa como qualquer outra.

Lá dentro, a moça confirmou minha reserva e me deu algo mais do que eu esperava pela fortuna de US$ 35 por noite. Esperava um quarto de hotel três estrelas. Ela me deu praticamente um apartamento: sala de estar com sofá, quarto, banheiro, piso laminado de madeira novo em folha e uma deliciosa cama de casal. Tudo impecavelmente limpo e cheiroso. Praticamente um palacete. Liguei o ventilador para driblar o calor de 27 graus. Dormi como um anjo.


* * *

No dia seguinte, acordei às 11h, tomei meu café da manhã com dois ovos fritos e chá preto e fui caminhar. O hotel do lado de fora era uma linda casa - mais para um casa de subúrbio americana do que para qualquer coisa centro-asiática - escondida atrás do portão. Abri a porta de metal, fechei, respirei fundo vendo a rua esburacada e as árvores. Fui dar meu primeiro passo, olhando para o Sol que me ofuscava.

Tropecei feio, torcendo o tornozelo e ralando o meu joelho direito. Sangue.

Levantei-me, ignorei a dor, deu preguiça de voltar para o quarto e para o kit de primeiros socorros. Pensei rapidamente na possibilidade de uma infecção ou mesmo tétano abreviarem minha viagem (ou minha vida). Concluí que não podia perder um segundo e aquilo era só uma raladinha. Duas gotinhas vermelhas escorriam em direção a meu pé.

Vermelho. Comparando com outras cidades da ex-URSS que eu conhecera, Bishkek me espantou. Logo a três ou quatro quadras do hotel: eu nunca havia visto tantos resquícios da era Comunista. Após todas as viagens a esta parte do mundo, finalmente encontrei uma estátua de Lênin. Uma estátua imensa, imponente, de metal prateado, com o Lênin em sua postura tradicional de professor, apontando para um caminho perdido há 20 anos. Depois descobri. A estátua estava antes na principal praça da cidade, a praça Ala Too. Hoje, está atrás dela, parece que tentaram esconder um pouco. Mas foi um esforço tímido. O líder ainda está bem no centro de tudo na capital quirguiz, em uma praça em frente a um prédio do governo.

Bem perto, na mesma praça, encontro também pela primeira vez uma estátua de Marx e Engels. Curiosamente, os dois cientistas políticos conversam sentados em frente a um prédio que, ainda guardando sinais da arquitetura soviética - uma foice e martelo na fachada e um mastro com uma estrela no seu teto - , hoje é ocupado por nada menos que a Universidade Americana da Ásia Central. O que as antigas autoridades do PC achariam disso?

O dia foi de um Sol glorioso e de calor beirando o insuportável. Tentei aproveitar ao máximo as sombras, o que não foi difícil. O centro é bem arborizado, um oásis cheio de praças. Uma delas, para minha alegria, tinha um fantástico bebedor com água gelada jorrando sem parar, e uma fila constante de cinco ou seis pessoas. Fiz duas visitas durante o dia. Nas duas, praticamente tomei um banho - água na nuca, no peito, no rosto.

Não comi nada a não ser o café da manhã no hotel. E a bebida foi a água da praça e umas duas latas de Coca-Cola. Durante o dia, porém, fiquei curiosíssimo em relação a uma bebida vendida praticamente em todas as esquinas por senhoras entediadas com guarda-sóis. A bebida industrializada da empresa Shoro, chamada maksym, custava a miséria de 8 soms (cerca de US$ 0,10) um copinho pequeno. Cor de café com leite. Pensei: se eu não gostar, jogo fora, não será nenhum prejuízo.

De fato, beber aquilo foi uma das piores experiências que já tive na Ásia Central, e acabei jogando metade na sarjeta. O maksym, salgado, feito com malte, me fez imaginar que eu estava degustando uma poção à base de algum tipo de secreção digestiva. Do lado positivo, me lembrou, por ser salgado, o ayran turco, o doogh persa. Mas só me lembrou, porque o gosto é bem diferente e repugnante. Talvez eu tenha tido azar e tomado um estragado. Já planejei dar uma segunda chance à bebida numa futura oportunidade - quando voltar para Bishkek, em outubro, para os meus dois meses de estudo de russo.

Pelas esquinas, entre os parques, nas avenidas longas, há vários locais vendendo deliciosas samsas (folhados triangulares com recheios de carne, frango, queijo) como as que encontrei em Almaty, churrasco grego e outras bebidas locais que, por ora, decidi deixar de lado: bozo, kumiz. Há muita coisa diferente por aqui. Até os pássaros. Cantam alto com trinados que nunca ouvi antes.

Amanhã, vou à praia. Uma praia a milhares de quilômetros do mar.

Bishkek, 27/08/2012, 7h53

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Wednesday, 27 September 2017

Nos Desertos, nas Montanhas: Prefácio

Uma viagem que foi escrita e reescrita, se repetiu, se repetiu de novo, e em retornos e relembranças durou nada menos que cinco anos.

Nos Desertos, nas Montanhas é o diário de uma viagem feita entre agosto e dezembro de 2012 a quatro países da Ásia Central - Quirguistão (onde morei por dois meses, na capital, Bishkek), Cazaquistão, Uzbequistão e Tajiquistão. Aos amigos que conhecem meu trabalho, trata-se de uma continuação do longo projeto, incluindo diários passados e futuros, que visa apresentar o desenvolvimento paralelo e conjunto de dois universos: o meu, puramente pessoal, com as mudanças da minha vida e todas as diferenças que se tornam claras com o envelhecimento (mudanças de valores e conceitos, o impacto de lembranças e a inevitável e constante busca da própria identidade), e o universo dos ex-países soviéticos da Ásia Central - sua incomensurável bagagem cultural e histórica, sua traumática ruptura com eras passadas e a sua imensa incerteza futura, fruto, novamente, da procura constante pelo que representam. Seguindo a linha estabelecida pelos diários anteriores, Nos Desertos, nas Montanhas procura ser uma obra única, construída na longa tradição desse tipo de literatura, mas tornando-se algo mais: o retrato de uma pessoa comum que se espelha e se vê em mudança concomitante a um destino que volta a visitar entre os anos. Quiçá o próprio destino mude simplesmente devido à visita do viajante. Ou quiçá o próprio destino sequer exista a não ser na visão única do viajante, em seu contexto temporal específico. Sendo certeza apenas que ambos, viajante e destino, compartilham a mesma busca por si próprios.

Dessa forma, este diário só pode ser compreendido no contexto de longo prazo, como uma etapa de uma longa jornada. A primeira versão de Nos Desertos, nas Montanhas foi escrita durante a própria viagem, mas só começou a assumir forma final em 2013, após a publicação do Diário de Almaty, um relato curto, de oito partes, que narra as três semanas que passei na cidade cazaque em 2012. A demora na publicação de Nos Desertos, nas Montanhas reflete o longo e lento trabalho de redação, edição (repetidas vezes, cada uma delas uma nova viagem) e revisão, e a ambição inédita do trabalho. Diferentemente de Diário de Almaty e do diário anterior sobre a mesma região, Um Brasileiro no Uzbequistão (2003), este novo diário é muito mais longo e não mais adota um limite de palavras por capítulo. Além disso, inclui muito mais fotos, um mapa interativo e vídeos, que, espero, tornarão a experiência muito mais agradável a todos os companheiros que me acompanharem nessa viagem.

Inevitavelmente, a longa demora para a publicação de Nos Desertos, nas Montanhas fez com que muitos trechos ficassem desatualizados. Na esfera econômica, a desaceleração econômica chinesa e a queda nos preços internacionais de commodities como o gás natural tiveram um impacto claro em todos os países da região, aumentando o risco de instabilidade e favorecendo a adoção de medidas de repressão política. Nessa esfera, num mundo que parece em mutação rápida e frenética, refletindo a conjuntura pós-11 de Setembro e Primavera Árabe, era de se esperar que as mudanças chegassem também ao longínquo Turquestão. Apesar de ainda viver de forma clara e palpável o legado dos anos soviéticos (o que ficará bastante claro no decorrer da viagem), os países da região passaram nos últimos anos por significativas mudanças políticas, em menor ou maior grau dependendo do país.

A mais significativa foi no Uzbequistão. A morte do primeiro presidente do país, Islam Karimov, em 2016, trouxe ao poder Shavkat Mirziyoyev, um líder espantosamente progressista. Em seu primeiro ano de poder, o novo presidente promoveu mudanças que pareciam mentiras aos mais otimistas analistas - defendendo publicamente a liberdade dos meios de comunicação, reaproximando-se de rivais regionais há muito ignorados por Karimov, adotando medidas para eliminar o trabalho infantil e a muito esperada mudança no câmbio fixo (que alimentava um vigoroso mercado negro de troca de moedas estrangeiras) e até mesmo indicando que pode tolerar algum tipo de oposição política (o que ainda não aconteceu). Apesar de todas as mudanças, optei por manter minhas reflexões sobre o Uzbequistão de Karimov neste diário intactas, acreditando que se tratam, acima de tudo, de um retrato e uma reflexão históricos que ajuda a entender o Uzbequistão atual e suas mudanças mais recentes.

Se o Uzbequistão seguiu um caminho certamente positivo, o mesmo não se pode dizer do Tajiquistão. O único país da região a viver uma guerra civil (1992-1997) e o mais pobre entre os ex-soviéticos, o Tajiquistão testemunhou desde 2012 o recrudescimento do regime do presidente Emomali Rahmon. Certamente não é coincidência que foi justamente em 2012 que o país viveu um sério conflito na região do Pamir, envolvendo milicianos armados e forças do governo, o que trouxe à tona o fantasma da volta da guerra civil e quase me impediu de visitar a região. Após o conflito, Rahmon reforçou seu controle sobre as elites locais, usando todas as armas necessárias para banir aqueles que representassem algum tipo de risco à sua hegemonia. Isso se traduziu na punição ao Partido do Renascimento Islâmico do Tajiquistão, que foi banido em 2015. A existência do partido, o único de cunho islâmico em toda a Ásia Central, havia sido um dos pilares do acordo de paz de 1997. Em flagrante desrespeito ao acordado há 20 anos, Rahmon eliminou o partido. Minha visita em 2012 mostrou um Tajiquistão sombrio, assustador, nas mãos implacáveis de um déspota que estampa seu rosto nos principais prédios. O Pamir, com sua identidade própria, respira com alívio sua relativa autonomia, refletindo talvez o isolamento físico das montanhas. Mas, como ocorreu em 2012, a qualquer momento o Tajiquistão pode voltar a explodir, e o Pamir certamente é um dos prováveis cenários para que isso ocorra de novo.

Cazaquistão e Quirguistão seguem basicamente os mesmos caminhos de 2012, com alguns desdobramentos que podem ter importantes implicações no futuro. No Quirguistão, o presidente Almazbek Atambayev conseguiu aprovar mudanças na constituição que foram severamente criticadas pela oposição e até mesmo por ex-aliados, como a ex-presidente Roza Otunbayeva. As mudanças, segundo a oposição, aumentaram os poderes do primeiro-ministro. Impedido de buscar a reeleição em outubro de 2017, Atambayev deve se manter muito próximo do poder com a esperada eleição de um aliado para a presidência e a sua própria provável indicação para, justamente, o cargo de primeiro-ministro. A reforma constitucional e a provável continuidade de Almazbek nas esferas de poder colocam em dúvida o único experimento de democracia ao estilo ocidental em toda a Ásia Central. No Cazaquistão, Nursultan Nazarbayev é o grande sobrevivente - o último presidente da era soviética ainda no poder na região. Embora mantenha controle absoluto do país e um genuíno apoio especialmente em cidades grandes, o presidente, de 77 anos, parece cada vez mais olhar para seu próprio legado e a transição após sua morte. Embora tenha enfrentado um inesperada onda de protestos em 2016, forçando-o a mudar um projeto de lei que pretendia liberalizar a venda de terras para estrangeiros, o presidente em 2017 apoiou uma nova lei que reduz seus próprios poderes e aumenta os do parlamento. Para críticos, a mudança ainda significa pouco, já que não há oposição de verdade no país. Mas ela pode ser um sinal de que o presidente espera ver um novo universo político no Cazaquistão, mais pluralista, num futuro em que não esteja mais presente.

Se houve mudanças no universo centro-asiático, evidentemente também houve mudanças no meu próprio universo. Se em 2012 eu comemorava o fim de meu mestrado, com o inevitável retorno ao Brasil e a meu antigo emprego em 2013, hoje vivo um retorno à Inglaterra, onde vivi entre 1999 e 2006, assumindo novamente residência em 2014. Sinto que sou um ser mais pragmático e talvez menos aventureiro, mas quando as conversas me levam para o meu amado coração da Ásia, tudo muda de figura. O exercício de escrever Nos Desertos, nas Montanhas me levou de volta a algumas das grandes referências literárias de minha vida - autores que, certamente, um leitor atento poderá encontrar em vários trechos do meu trabalho. Em primeiro lugar e sempre, Ryzchard Kapucinski, em particular por seu trabalho em Imperium (1993), o livro em que o polonês vasculha o universo soviético. Em segundo lugar, o lirismo de Colin Thubron. E a seguir, muitos, muitos outros, desde os cronistas da antiguidade até os modernos, passando por Marco Polo e Ruy González de Clavijo. Com todos, tenho uma dívida imensa. Espero que as citações de seus trabalhos façam juz à qualidade de suas linhas e atraiam muitos mais viajantes a suas aventuras.

Londres, 27/09/2017

Leia aqui o primeiro capítulo: Bishkek

NOTA SOBRE TRADUÇÕES, CITAÇÕES E ORGANIZAÇÃO DOS CAPÍTULOS

Nos Desertos, nas Montanhas contém uma infinidade de termos nas línguas locais e em russo. Procurei padronizar a forma como são escritos de acordo com a grafia que, em primeiro lugar, me pareceu a mais comum para o termo em português brasileiro ou, em segundo, a forma como aparece dicionarizada. Dessa forma, por exemplo, usei termos como "gaznévidas" (em inglês, "Ghaznevids") em vez de "ghasnávidas" ou mesmo "gasnávidas"); "Iurta" em vez de "yurta" ou "yurt"; ou "Genghis Khan" em vez de "Gingis Khan" ou outras variantes. Termos não dicionarizados, em língua estrangeira, aparecem grafados em itálico.

Todas as citações de outras obras no texto foram traduzidas por mim. Mantive os títulos das obras no idioma ao qual tive acesso às mesmas, não necessariamente o idioma em que foram escritas originalmente.

Por fim, cada capítulo começa com data a que o mesmo se refere e termina com a data e o local em que a entrada no diário foi escrita - não necessariamente a mesma abordada no capítulo.