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Friday, 27 April 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (LII): Fim

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15/12-16/12/2012

Um pouco triste hoje. Pouco a pouco, as estrelas da minha passagem por Bishkek vão se apagando. Falta pouco para eu ir embora.

Ontem, me despedi da escola com farta distribuição de bombons a minhas professoras. Dois meses de russo intensivo tiveram o resultado esperado. Meu vocabulário se ampliou um bocado e, mais importante, sinto-me um pouco mais confiante na hora de falar. Mesmo cometendo erros, converso mais, sinto que me faço entender melhor. Mas esse é um esforço permanente, eterno, não posso parar nunca mais. Acho que, se eu tivesse feito o curso antes de minha viagem, os mal-entendidos, como o do Pamir, daquela vez que jurei que aquele lago era muito mais perto do que nosso motorista falou que era, poderiam ter sido evitados.

Despedi-me de uma menina simpática que conheci, Nazik, do Turcomenistão (meu eterno fantasma, o Turcomenistão, tão cobiçado, nunca visitado). Para o último papo, fomos a um café perto do teatro onde fomos assistir a um concerto o outro dia. Fascinante conversar com ela sobre a dor do fim da identidade soviética, sobre o estranhamento que é a busca por uma nova nacionalidade. Com inglês perfeito, vivendo há anos em Bishkek, Nazik insiste que eu não devo chamá-la de turcomana, apesar de ela ter nascido lá, apesar de toda sua família estar e viver lá. O pai é azerbaijano e a mãe é russa e ela está em Bishkek. Que símbolo de um legado que décadas e décadas de fim de URSS não apagam. Senti que eu era um alívio para ela, uma diversão, um ser exótico com preocupações irrelevantes, longe de traumas que sequer percebo existirem em sua vida. Alguém para compartilhar música erudita, balé e cafés. Com prazer, a ajudei a rir e passar o tempo. E ela, fazendo o mesmo por mim, me ajudou a entender mais este mundo.

Além da tristeza de me despedir de pessoas, há a tristeza de dizer adeus a lugares onde encontrei consolo para minha solidão. Os cantos onde carinhosamente me foi permitido deixar o exílio de lado e, por alguns momentos, lembrar das banalidades de casa. Os cafés Vanilla Sky e Cafeteria, o restaurante da loja Beta Stores, a pizzaria NY Pizza, uma confeitaria turca na esquina da rua Moskva com a avenida Sovietskaya, onde tantas vezes parei na volta da escola, onde comi bolo e vi a neve cair do lado de fora, pesada, pesada. E as montanhas não muito longe, visíveis da janela no primeiro andar da escola. Quanta beleza que não vai sair de mim nunca mais.


* * *

Quando você caminha sobre a neve e olha para o chão, às vezes a luz incide sobre os flocos de neve de uma forma que faz com que ela seja refletida diretamente na direção de seus olhos, como microespelhos, milhares deles. Você tem a impressão que está caminhando sobre estrelas. E as estrelas vão se apagando à medida que você caminha. Ou... se apagam repentinamente se você escorregar no gelo criado pela compactação da neve (após tanta gente caminhar pelo mesmo lugar). Outras estrelas se acendem depois do tombo (aí, são estrelas de dor, como nos desenhos animados, girando ao redor de sua cabeça!)

Lembrarei de Bishkek nos dois extremos, o calor imenso de quando comecei minha viagem e este chantili excessivo cobrindo todas as árvores, todas as ruas, todas as casas, todas as pessoas.

Pela avenida Chuy caminhei até um conhecido restaurante, o Jalal-abad, que eu tinha me prometido visitar antes de ir embora. No caminho, o frio ficou ainda mais cortante porque, pela primeira vez em meio a esta onda polar, o vento veio junto. A temperatura deve estar em torno de -20C, mas a sensação deve estar dez graus mais baixa que isso.

Cruzo com um vendedor de peixes na rua. O carrinho dele está na esquina de duas avenidas, colocado sobre o asfalto, perto da calçada. É uma visão surreal - os peixes estão lá, no carrinho, ao ar livre, congelados em cima de papelões. Parecem esculpidos, com os rabos virados para a direita e para esquerda, como se alguém tivesse interrompido de repente seus esforços para subir um rio contra a corrente, tirando-os da água, e logo em seguida eles tivessem ficado petrificados na mesma posição que estavam dentro do rio. São verdadeiras armas. Pegar um deles pelo rabo e dar com ele golpes na cabeça de alguém poderia matar facilmente a pessoa.

Continuo caminhando, pego meu celular, olho rapidamente a meteorologia no Brasil. Neste momento, em São Paulo, 28C, amanhã, 32C e subindo. Aquele calor de fundir a cuca dentro dos ônibus lotados. Nada poderia ser tão distante. E estou voltando para lá.

Uma lufada de vento ainda mais forte na Chuy, em frente à árvore de natal na praça Ala Too. Meu rosto queima nos locais onde não tenho barba. E onde os pelos protegem a pele, eles estão endurecidos. A sensação de congelamento da barba é muito estranha. Passando a mão sobre ela, tenho a impressão que alguém colou ela ali. Não parece minha. Puxo, puxo, não sinto nada até puxar muito mais forte.

Finalmente chego ao Jalal-abad. Um restaurante evidentemente bem turístico, com uma entrada com arco de madeira todo esculpido, a poucos metros do Palácio Presidencial. Mas, claro, no inverno não há turistas. Entro em seu salão e só encontro mesas com pessoas falando em quirguiz e russo. Num canto, parcialmente escondida atrás de biombos, há uma festa acontecendo. Há uma grande e baixa mesa redonda ao redor da qual mulheres estão sentadas, diretamente no carpete, sem cadeiras. No centro, uma grande travessa redonda, de proporções épicas, com uma montanha de um cheiroso plov. Que aroma de arroz com especiarias. Minha fome aumenta mais e não posso esperar nem mais um minuto. Peço o beshbarmak, o famoso prato quirguiz que eu já havia provado em Osh.

Carne de carneiro cozida, desfiada, embebida em caldo da carne e jogada sobre uma massa estilo talharini. Chegou bem quente e aromática à mesa, saindo vapor suficiente para defumar o ambiente à minha volta. Trazem um pão nan típico, redondo, fino e borrachudo, com os seus detalhes decorativos, circulos desenhados com furos que parecem feitos com garfos e sementes de papoula encravadas na crosta. Além disso, trazem um pequeno bule de chá. Um último brinde com chá preto, o que tomei em toda a viagem. Talvez o componente mais importante desta despedida. Claro, como também não poderia deixar de acontecer, queimei a língua.

Rasguei o pão, enfiei os dentes na carne desfiada, sorvi as tiras de macarrão, voltei a fazer tudo de novo. E de lá do outro lado do salão, por uma porta distante, entrou outro forte sopro de inverno. Estou bem defendido pelo movimento das mandíbulas, pelo garfo voador, pela xícara evaporante.

De volta à rua. Passo, indo para a minha última noite no apartamento de Ekaterina Vladimirovna, por uma casa de apostas. Cheia, lotada de homens fumando. Dezenas de TVs ligadas ao mesmo tempo, mostrando jogos de toda parte do mundo. Paro um pouco do lado de fora para reconhecer os times nas telas me sentindo totalmente excluído daquele ambiente, sem amigos, sem conhecidos, sem saber a língua e por isso sem poder me enturmar, sem ser fumante, sem ter dinheiro para gastar com apostas. Os times são os esperados, Chelsea, Inter, Real Madrid. Algum time russo, provavelmente, naquela tela em que jogam uniformes que não conheço. E, de repente percebo, em uma das TVs principais, bem à vista da rua, um uniforme bem conhecido. No Brasil, a nação corintiana acorda cedo para acompanhar no Japão seu time conquistar seu primeiro mundial. Em Bishkek, já é noitinha. E os quirquizes acompanham atentos e erguem os braços e gritam - gol!

Fico uns bons 20 minutos no frio olhando para a TV lá dentro. Primeiro torço ferrenhamente contra os corintianos, como exige meu coração santista. Depois, a simpatia dos quirguizes pelo time desconhecido do distante Brasil me contagia. Não importa que muitos provavelmente só estivessem assistindo ao jogo porque apostavam dinheiro. Muitos outros pareceram genuinamente torcer para o time da minha cidade. Me sinto como se os quirguizes estivessem torcendo para mim. Quem diria: por fim, sim, sorrio e torço pelo Corinthians. Me junto a eles, ficamos eu e os quirguizes, juntos, vibrando. Eles lá dentro, eu, aqui fora.

Volto para o meu velho edifício soviético - sinto mais frio ainda agora, talvez por eu ter ficado tanto tempo na rua. Que alívio entrar, voltar à velha paisagem do meu quarto, minha caminha no chão. Tudo velho aqui dentro, o cheiro eterno de sopa na cozinha no andar de baixo. Tamanha nostalgia antecipada. Nostalgia de Bishkek, do Quirguistão, do Tajiquistão, do Uzbequistão, do Cazaquistão, dos amigos, dos desconhecidos, das línguas infinitas que sei e desconheço, de panoramas que sequer cheguei a tocar direito. Dos desertos. Das montanhas.

Apago a luz, deito na cama, puxo as cobertas.

O vento uiva alto de novo lá fora. Uma lufada de neve.

Confortável, doce aqui dentro. Mas enlouqueço pensando em tudo que está lá fora e não conheço, tudo o que está lá fora e quero traduzir, descrever, pintar, imaginar, reimaginar e sonhar.


Fecho os olhos.

Bishkek, 16/12, 22h35






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Sunday, 22 April 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (L): Diário de Bishkek

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13/11/2012

Ontem nevou pesado em Bishkek. Em outubro, eu já havia visto neve por aqui, mas ela se acumulou nos carros e nas ruas por pouco tempo e logo derreteu. De qualquer forma, foi um grande espanto - o outono mal começava e já havia branco caindo do céu! Agora, porém, foi bem mais. Uns 20 centímetros. Nas árvores, uma decoração natural de Natal.

Vi hoje em um jardim perto da escola, na avenida Sovietskaya, uma rosa vermelha com uma grossa cobertura de neve. Aquilo, estranhamente, me deu apetite. Parecia um morango com chantili. Nas ruas, o gelo negro, neve suja, pisada e compactada, começa a se formar - e com isso, cresce o risco de escorregões. Novamente, como no Pamir, o problema de ter um único calçado, o meu pobre tênis de corrida, me torna completamente despreparado para me proteger do gelo liso e seus efeitos. O solado está totalmente gasto. Ando pelas ruas com a lentidão de um velhinho. Pé ante pé.

Atrás da estátua gigante de Manas, na praça Ala Too, um prédio em estilo futurista guarda algumas das mais importantes relíquias soviéticas desta linda cidade. Nunca vi tantas estátuas com temática comunista juntas. Aqui Lênin está vivo, triunfal como sempre. Mas não é apenas isso - o museu se propõe a contar a história do Quirguistão desde a antiguidade, incluindo, inclusive, eventos mais recentes (como a revolução que afastou do poder o presidente Kurmanbek Bakiev em 2010). Interessante que o Quirguistão, diferentemente de outros países que pertenceram à União Soviética, não tenta apagar seu passado comunista. Enquanto a Ucrânia elimina as estátuas de Lênin e busca nomes ucranianos para as cidades com nomes da era soviética, na capital do Quirguistão ainda há estátuas de Lênin e de Marx em um dos principais parques da cidade. A foice e o martelo estão integrados a outros fatos da história do país, como deveriam ser todos, e não escondidos ou apagados do coletivo, como se isso fosse possível.

A parte sobre o afastamento do sulista Bakiev é bem proeminente no museu. Há muitas fotos dos protestos em 2010. Muitas fotos dos cartazes dos manifestantes contrários ao presidente. Presente, uma clara mensagem política contra a divisão do país, o perigo que levou ao levante, alimentado pelo nacionalismo agressivo (que também, evidentemente, têm ligação com os conflitos étnicos de anos atrás na região de Osh). Com a chegada ao poder de Roza Otunbayeva (presidente após o afastamento de Bakiev) logo após a saída de Bakiev, o país ficou mais calmo. Mas a ameaça dos nacionalistas continua, com protestos frequentes na capital. Essa dinâmica dita a política quirguiz e aparentemente está longe de acabar. Além de Bakiev, a tensão interna levou à queda também de Askar Akayev, o primeiro presidente do Quirguistão independente, afastado em 2005 em meio à chamada Revolução das Tulipas (na qual, ironicamente, Bakiev e seu movimento político tiveram participação).

* * *

17/11/2012

Continua nevando. A nevasca de 13 de novembro nunca chegou a derreter e, desde então, o branco voltou a dar o ar da graça com frequência - tudo isso ainda a um mês do inverno. Divertido ir "patinando" pelas ruas até a escola com este tênis.

Com a barreira da língua, busco alternativas para me divertir nos momentos de folga. Uma tradição por aqui, que vem de antes da era soviética, me encantou: os espetáculos de música erudita e balés de alta qualidade por preços populares. O primeiro que vi foi há uns dias: fui ao Teatro Nacional de Ópera e Balé, um prédio de arquitetura clássica lindíssimo, no centro, com suas colunas sólidas e estátuas de pedra. Em cartaz, O Lago dos Cisnes.

Por 900 soms (aproximadamente US$ 13), recebi a entrada - um pedaço de papel de péssima qualidade (parecia papel higiênico dos ruins, cinza, áspero) em que estava escrito "República Socialista Soviética do Quirguistão" e o preço antigo, circa 1990, ainda impresso em rublos e copeques. Na certa, nos tempos comunistas o governo mandou fazer tantas entradas para abastecer o teatro estatal que até hoje elas são emitidas para os interessados. Fiquei espantado em ver mais esse pedaço do passado comunista ainda presente no dia a dia de Bishkek e, ao mesmo tempo, em perceber que ninguém parece se importar com isso. É algo normal. Se um teatro no Brasil vendesse hoje entradas dizendo "governo Fernando Collor", obviamente seria algo estranho. Não aqui.

Os espetáculos, pelo que pude ver até agora, são realmente incríveis. Era de se esperar uma perda de qualidade desde os tempos soviéticos, com as dificuldades econômicas e políticas enfrentadas por este país. Obviamente, não tenho parâmetros de comparação, mas eles me parecem no nível de qualquer um do tipo em Londres. O salão do Teatro Nacional de Ópera e Balé aparenta ter sido restaurado recentemente, com detalhes históricos mantidos - como a foice e o martelo sutilmente integrados à decoração do teto. Hoje, pelos US$ 13, recebi um dos melhores lugares da casa, na segunda fileira. Foi um belíssimo O Lago dos Cisnes.

Em outro dia, fui a outro teatro imponente, descendo a avenida Chuy. Este local era especializado em concertos eruditos e, nele, vi um recital de violino. Em vez de linhas clássicas, com colunas, este teatro fora construído com linhas modernas, vanguardistas, no melhor estilo soviético-futurista. Porém, frisos decorativos trazem padrões que evocam a cultura quirguiz, ecoando a decoração de carpetes, das iurtas e dos chapéus ak kalpak. Do lado de fora, outra estátua do herói mitológico Manas, como a da praça Ala Too, guardando a entrada.

Passado, presente, futuro.


* * *

21/11/2012

Bishkek tem uma origem muito humilde, tendo surgido como um ponto de parada para as caravanas da rota da seda que vinham pela serra do Tien Shan. Por volta de 1825 veio o primeiro registro de importância acerca da cidade: por ordem do monarca de Kokand, no local seria construído um forte de barro, há muito desaparecido. Esse mesmo forte seria tomado pelos russos alguns anos depois, em 1862, durante seu irrefreável avanço pela região. Como base do Exército, foi refundada em 1878 como Pishkek, se tornando um destino atraente para colonos russos, que, com sua colonização agrária, elevavam a tensão com os locais e os forçaram a deixar o estilo de vida nômade que adotavam há séculos.

Em Pishkek nasceria o general soviético Mikhail Frunze (1885-1925), o líder militar bolchevique responsável pela conquista de Bukhara e Khiva durante a guerra civil (1917-1922). O general faleceria cedo, aos 40 anos, e sua cidade natal passou a receber o seu sobrenome. Assim ficou Bishkek, chamada de Frunze, até a independência, em 1991 - quando o novo Parlamento decidiu trazer de volta o nome original, mas com a mudança de letra no início.

No museu dedicado a Frunze no centro da capital, me irritei. Como em outros museus, há uma "ordem correta", recomendada, cronológica, para visitá-lo (por exemplo, no museu de história da praça Ala Too é assim). Mas eu nunca havia ouvido falar de uma ordem obrigatória para apreciar de um museu. Ao chegar, eu quis dar uma olhada rápida na casa (ou melhor, recriação da casa) onde Frunze nasceu, que fica no primeiro andar. Contudo, quando eu estava entrando, uma bedel veio para cima de mim insistindo para eu subir as escadas, discutindo comigo. Insistia que eu deveria ver primeiro o resto do acervo e aí sim, no final, a casa. Vendo minha teimosia, acabou desistindo.

Foi uma irritação passageira. Eu sabia pouco da história de Frunze, uma história que se confunde com todo o processo de gênese da URSS. Nascido de um pai de origem moldava, paramédico do exército, e mãe russa, seguiu seus estudos primeiro em Vernyi (antigo nome de Almaty) e São Petersburgo. Na efervescência do início do século, participou do famoso congresso do Partido Social Democrático Trabalhista russo realizado em Londres em 1903, no qual ocorreria a cisão entre os bolcheviques de Lênin e os mencheviques de Julius Martov. Frunze ficou do lado de Lênin, um líder que não esquecia os amigos fieis a suas ideias.

Chegou 1907, e Frunze agora trabalhava em uma fábrica no interior da Rússia na qual liderou uma greve. Preso, foi exilado na Sibéria, onde ficaria até 1917, quando conseguiu escapar. A seguir, liderou grupos armados participando das revoluções de fevereiro e outubro. Suas liderança foi bem recompensada por Trotsky, que se tornaria o responsável pelo Exército Vermelho na Guerra Civil, e Frunze seria nomeado para comandar todas as forças no fronte leste. Retomaria o controle do seu nativo Turquestão lutando não apenas contra o exército branco de antibolcheviques como contra os rebeldes islâmicos Basmachis. Por sorte, morreu cedo. Certamente não resistiria à fria eliminação de todos os velhos bolcheviques por Stálin durante o Grande Terror da segunda metade dos anos 30. De forma que manteve inabalada sua aura mítica, de herói soviético.

Boa parte das explicações do museu estão em russo, e um russo que um iniciante no aprendizado da língua como eu muitas vezes não consegue destrinchar. Mas o que não precisa de tradução já fez a visita valer a pena: as fotos. Fotos históricas fantásticas, de vários momentos seminais da história da URSS, da guerra civil e até de antes, da conquista da Ásia Central pelo Império Russo. Outro destaque são os cartazes da era soviética, alguns em caracteres árabes, incitando os centro-asiáticos a participar do esforço da Guerra Civil contra as forças tsaristas, a se unir à utopia.

No tocante a Frunze, concluo que certamente ele foi um militar astuto, com grande habilidade política e a frieza necessária no campo de batalha. Ao conhecê-lo, em seu museu, fiquei seu amigo - seu olhar e bigode nas fotos me inspiraram simpatia, como se ele fosse um velho conhecido me dando as boas-vindas para uma visita a sua casa, me oferecendo chá.


* * *

23/11/2012

Bishkek, como não poderia deixar de ser, tem vários mercados. O mais conhecido deles é o mercado Osh, que fica seguindo a avenida Chuy direto, passando a praça Ala Too, o palácio presidencial e indo mais uns dois ou três quilômetros. Lá, entre policiais desconfiados que pedem aos estrangeiros seus passaportes (mais de uma vez fui vítima disso), comprei um magnífico chapéu típico especialmente para o inverno, chamado pelos quirguizes de tebete. Imenso, marrom, de pele. Usando ele, do jeito que ele é grande, eu pareço um palito de fósforo.

Isso foi há alguns dias. Hoje, fui a outro mercado, o Dordoi, a uns dez quilômetros ao norte da centro.

Foi uma experiência interessante. O Dordoi ficará na minha cabeça não por ser o mais bonito que já vi na Ásia Central (não é mesmo), nem o mais colorido (também não é), ou mesmo o mais típico, tradicionalmente centro-asiático (longe disso), mas sim por ser o maior. Um monstro. Impressionante ver ruas e ruas feitas de contêineres, empilhados dois a dois, vendendo infinitos artigos industrializados trazidos da China. Roupas, têxteis, bugigangas, sapatos. Atacado e granel. Anda-se muito, é muito fácil se perder. É um lugar para quem já sabe onde quer ir e o que quer comprar.

O mercado é a prova viva da importância de Bishkek no ambicioso projeto chinês de estabelecer uma nova rota da seda para inundar ainda mais os mercados europeus com seus produtos. Dordoi vende para os locais, mas também é um lugar a partir do qual os produtos são despachados e exportados novamente, para mais longe, seguindo o caminho para o oeste, até chegar ao velho mundo. Tal atividade foi espertamente promovida pelo próprio governo quirguiz, mas agora corre risco devido à pressão dos nacionalistas, que odeiam ver o país sendo tomado pelos chineses de uma maneira tão agressiva. Entretanto, é realmente difícil imaginar o que tantos e tantos comerciantes fariam da vida se não tivessem acesso a essa enchente de produtos chineses. A economia quirguiz já depende demais dos chineses. A nova rota da seda, para todos os efeitos, já é uma realidade por aqui.


* * *

25/11/2012

Vivendo por aqui, você vê referências constantes ao herói mitológico Manas. Nas ruas, estátuas de Manas substituíram as da era comunista. O que eu não sabia, e achei curiosíssimo, é que há até um "parque temático" de Manas na capital quirguiz. Precisava ver isso.

Minha investigação para chegar lá começa em casa. Pergunto para Ekaterina Vladimirovna se ela já esteve no lugar. Ela mostra um pouco de curiosidade. "Não. É no sul da cidade não é? Eu poderia ir com você". Aí vem a preguiça: Ela poderia, mas no fim não vai poder. É longe do centro.

Pego informações no meu livro-guia, que não tem muita coisa - só um endereço e um mapa da cidade com uma seta indicando para onde é que eu tenho que ir. Sim, porque o parque fica fora do mapa. É necessário pegar uma avenida que passa pela embaixada americana e continua muito, muito além, rumo aos campos e montanhas.

Pego uma van em parte do caminho e, no restante, vou a pé para apreciar melhor a paisagem. O dia está ensolarado e frio, uns 15 graus, e as árvores à beira da avenida estão todas já sem folhas, aguardando a chegada do inverno. No caminho, encontro um maravilhoso mosaico da era soviética, colorido, preservado, mostrando pessoas bem diferentes unidas sob a grande bandeira vermelha. O mais lindo mosaico soviético que já vi. Fotos, fotos.

Ando por quilômetros, mais de uma hora. E o que descubro pedindo informações às pessoas na rua são apenas indicações. Todos sabem mais ou menos onde é, mas ninguém parece saber exatamente onde é. A impressão é que nenhuma das quatro pessoas que eu abordei na rua para perguntar sobre o parque esteve alguma vez lá. Todas demonstram a mesma reação que Ekaterina: têm até curiosidade, mas ir até lá... quem sabe um dia, mas não conte com isso.

Para minha sorte, depois de andar e andar e andar finalmente encontrei uma placa me orientando a sair da avenida.

O lugar se chama Manas Auyl, ou vila de Manas. Trata-se de um grande praça com esculturas estranhíssimas, feitas de metal e concreto. Logo do lado de fora já se vê algumas torres de metal estilizadas formando uma muralha que cerca o parque. Entra-se por um portão e se chega a um área central, de concreto, cercada pelas esculturas.

Elas não são representações de pessoas, nenhuma delas é. Vejo mais torres estilizadas de concreto, um chifre gigante de metal e uma torre mais alta e diferente, com um crescente no topo, que parece saída de algum filme de fantasia. As torres estilizadas menores têm diferentes formatos, algumas, parecendo barracas, têm pintados nelas padrões decorativos em estilo quirguiz. Há uma escada de concreto em cor verde-água levando a lugar nenhum, é apenas uma coleção decorativa de degraus. Há uma estátua que representa uma águia ou pássaro no alto de um pilar. O resto é todo abstrato para mim.

O lugar, me dizem depois, foi inaugurado em 1995 para marcar os supostos mil anos do poema épico de Manas, e hoje é usado para celebrações especiais. Por exemplo, no feriado do início da primavera, chamado Navrus, aqui se faz uma festa. As esculturas, todas, teriam a ver com as histórias de Manas - assim, se eu fosse um daqueles velhinhos que sabem todo o poema de cor, os estimados manaschis, certamente tudo faria muito sentido. Mas, como não há nenhuma placa explicando nada, o lugar é para mim simplesmente uma salada bizarra de concreto e metal.

O que o parque despertou em mim logo de cara foi apenas curiosidade lúdica. Tive vontade de ficar escalando tudo e brincando de pular, como uma criança. Nem sei se podia fazer isso, já que não havia nenhum funcionário do complexo por perto. Aliás, o lugar estava completamente vazio, salvo por uma iurta montada em um de seus cantos, uma barraca grande onde um grupo aparentemente comemorava um casamento. Lá, bebiam e conversavam ouvindo Michel Teló, popularíssimo na Ásia Central.

Qual a importância de um lugar como este? Difícil entender. Certamente as esculturas estão aqui para lembrar o povo de Bishkek de sua cultura, de sua identidade. Para ensinar às novas gerações (e, claro, aos turistas que se aventurarem a vir aqui) a essência dessa história tão importante para os quirguizes. Na prática, entretanto, temos um lugar mal preservado (há rachaduras pelo chão, a pintura está se desgastando); não há sequer um funcionário para explicar nada, e não há uma mísera plaquinha sequer, mesmo em quirguiz, para ajudar o visitante a se localizar. Talvez eu tenha tido azar. Talvez, em outros fins de semana e em dias quentes de verão, este local esteja fervilhando. Ou, ao menos, em dias de aula, ônibus com estudantes descarreguem seus pequenos curiosos com seus professores faladores por aqui. Mas, neste momento, neste domingo de Sol e friozinho, o Manas Auyl primeiro desperta meu lado lúdico e, depois, minha tristeza. Mesmo ouvindo o alegre e brasileiríssimo Teló da iurta de casamento.

Volto para casa e passo o longo caminho de uma hora de van me perguntando se valeu a pena a viagem. Fico também lembrando do Brasil, do desperdício de dinheiro em obras que, em muitos casos, são inúteis e sequer são terminadas. O Manas Auyl, esquecido, mal preservado, não sei se posso chamar de inútil. Certamente um parque nunca é inútil. Nem, é claro, posso afirmar nada sobre desperdício de dinheiro neste caso. Mas o que sim posso dizer é que ele é estranho para um brasileiro, não tem nada a ver com todas as referências culturais e visuais às quais estou acostumado. Só por isso, já valeu a pena. Só não sei se eu voltaria...

Bishkek, 25/11, 22h

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