Wednesday, 22 March 2023

Novas Fronteiras (XIV) - Bukhara, Uzbequistão



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16/8/2018

"Se você quiser, te passo o telefone", disse o uzbeque barbado, safado, em russo, me oferecendo uma mulher como se fosse seu proprietário.

Ele estava com dois amigos de infância, acabava de chegar à sua cidade natal, Bukhara, para passar férias, e nela me encontrou. "Esta é minha cidade", disse, "mas moro em São Petersburgo". É um dos milhões de centro-asiáticos que ganha o dinheiro lá para viver o sonho da boa vida nos curtos momentos de férias, quando vem para cá. Os três amigos tinham à frente uma garrafa de vodka que estava sendo esvaziada rapidamente. Eu, sentado à mesma mesa, ficava só na cerveja.

Estávamos todos na Labi-Haus, o lugar mais agitado de Bukhara, jantando ao lado da piscina de séculos de história. Tinham me visto sentado ao lado deles, sozinho em outra mesa, e então insistiram para que eu me juntasse a eles. Pela vodka, pela camaradagem, me senti na companhia de russos. Mas eram uzbeques, inegavelmente uzbeques, na aparência. Por algum motivo começaram a falar de mulheres. E aí me tornei ainda mais o centro dos holofotes.



"Te passo o telefone. Liga para ela! De graça! De graça!", disse o imigrante radicado em São Petersburgo. Todos riram, menos eu. Estava envergonhado. Entendi que aquilo era uma mistura de brincadeira ou piada (queriam ver minha reação) com hospitalidade (o lado mais tipicamente centro-asiático da equação) e talvez interesse (queriam que a mulher em questão casasse com um estrangeiro, aparentemente endinheirado, para ganhar o mundo? Talvez ela fosse parente de um deles?) Ou talvez quisessem simplesmente dividir comigo a "descoberta" de uma triste mulher solitária que costuma se entregar em troca de companhia? Nunca vou saber ao certo, mas não parecia que eles estavam me oferecendo uma prostituta, afinal, era "de graça". Nem me passou pela cabeça aceitar a indecorosa oferta, deixei claro, e, para meu alívio, eles logo pararam.

No grupo, um amigo do imigrante falava um inglês perfeito. Havia morado nos Estados Unidos, em Pittsburgh, Pensilvânia. Logo a conversa fluiu com uma mistura de inglês e russo, com as pausas ocasionais de uzbeque entre os amigos. Falamos de Pittsburgh, disse que conheci a cidade muitos anos atrás, compartilhei minhas poucas lembranças. O sujeito abriu um imenso sorriso nostálgico ao falar da cidade americana. "Mas por que você decidiu voltar? ", arrisquei perguntar. "Você parece ter sido muito feliz por lá..." Ele parou um pouco de sorrir, ficou reflexivo, olhando para a piscina da Labi-Haus. Uns dez segundos se passam. "Minha família, meus amigos. Todos estão aqui. Minha vida é aqui. Seria muito difícil largar tudo e ficar lá de vez, assumir uma nova vida. Ali, o que eu era? Aqui, sou professor de inglês. Amo meu trabalho. Lá, trabalhava em um restaurante. Amava estar em Pittsburgh. Mas quase não via a cidade. Aqui, olha", disse, sorrindo novamente, olhando para a Labi-Haus, agitada, colorida.

Ao redor da piscina que vi pela primeira vez em 2003, os restaurantes estavam agora cheios de neons brilhantes e piscantes. Havia mesas e mais mesas de restaurantes, alto-falantes com música e até um palco, em um dos restaurantes, onde se apresentava naquele momento um jovem com um violino, acompanhando gravações de pop uzbeque. Nos seis anos desde minha mais recente visita, e ainda mais desde a primeira, a Labi-Haus evoluiu rapidamente para se tornar a atração turística que merece ser. Eu nem julgava que isso seria possível na escala que ocorreu. Bukhara tem um centro histórico bem compacto e delimitado. Isso restringe seu crescimento, limita a oferta de hotéis, a chegada massiva de ônibus com visitantes. Mas os anos recriaram o espaço. Prédios antigos foram convertidos em lojas e em hotéis. Restaurantes, pousadas e comércios se estendem além da Labi-Haus, em direção à cidade nova, ocupando agora uma área que há seis anos não tinha nada a não ser moradias. Estou feliz que a economia esteja aproveitando os visitantes, estou feliz com a Labi-Haus. Não me causa tristeza vê-la tão alegre, cheia de gente.

Mas há, sim, o lado triste. O mesmo de outras cidades uzbeques. O processo de "sanitização", impulsionado pelo governo, também se faz sentir no coração ancestral de Bukhara. O novo presidente deu sua bênção para a demolição de toda uma vasta área, labiríntica como são os bairros tradicionais uzbeques, entre a Labi-Haus e a antiga fortaleza do emir, a Ark, e a linda madrassa Mir-i-Arab. Onde, em vezes anteriores, eu me diverti tentando encontrar o caminho certo, tirando fotos de portões e me orientando pela visão fugaz do minarete da mesquita Kalon ao lado da Mir-i-Arab, tudo foi ao chão. Um cartaz orgulhosamente informa o financiamento de um banco para a construção de uma área destinada a turistas, basicamente um shopping center ao céu aberto. A história que existia aqui, à sombra de monumentos de sonho, está sendo apagada. Vejo metros e metros de tapumes perto das cúpulas azuis da Mir-i-Arab. Em um trecho lembrei que antes existiam casas e lojas construídas em um nível mais elevado do que o da rua e com varandas incomuns. O teto das varandas era suportado por colunas de madeira. Era peculiar, diferente, a adaptação de imóveis antigos para virarem lojas pareciam ser de muito antes da vinda em massa dos turistas. O que vai virar, não tenho ideia, mas temo pelo pior. Em uma outra parte desta área, perto do trecho em construção, as mudanças já aconteceram. Os tapumes foram retirados e uma rua só com comércios de bugigangas, exclusivamente isso, apareceu do nada. As lojas são perfeitamente arrumadas, com os suvenires à mostra de forma organizada, em tabuleiros, em cabides. Chaveiros na certa fabricados na China. Criaram uma praça nova, nem sei o que havia nesse lugar antes. A mudança foi tão radical que, ironicamente, voltei a me perder como me perdia antes neste mesmo trecho. Se antes era porque ele tinha um labirinto de casas tradicionais, todas parecidas, agora é porque as lojas novas todas se parecem. Nos dois casos, fico igualmente sem referências.

Os turistas que nunca estiveram por aqui antes e vão embora amanhã, claro, se divertem. Estão em toda a parte. Vejo franceses, japoneses.

Os argumentos dos que defendem a destruição desses bairros sempre são os mesmos — que, antes, as casas eram ruins, precárias, intimidavam os turistas, eram sujas, eram velhas. Que o turismo é fonte crucial de divisas para o povo daqui. Que é preciso evoluir, crescer.

Limpando o passado, esteriliza-se o presente.

Me veio de repente um ataque de depressão, uma súbita vontade de chorar. Por que tudo pode e costuma ser sacrificado em troca de dinheiro?

Esses tapumes. Os canalhas estão desfigurando Bukhara.

Então, puxei uma força de mim e me virei. Para ver as cúpulas azuis.

E me convenci que nada, nada, jamais, irá tirar a magia da madrassa Mir-i-Arab, o monumento mais lindo da Ásia Central.

Fui até ela, me sentei à sua frente. Contemplei. Conversei com as cúpulas, ouvi as velhas histórias, as histórias que não mudam. Acho que vou ouvi-las e contá-las ainda muitas vezes, muitas, e se um dia não puder mais é porque já terei morrido. Eu morrerei, Bukhara, nunca.

A vontade de chorar passou. Senti um calor no peito, uma alegria imensa.


* * *

Linhas de Nazca. Círculos de pedra no interior da Inglaterra. Comparações esdrúxulas vieram à minha cabeça durante um passeio logo de manhã numa área desértica perto de Nurata, a caminho de Bukhara.

Eu e um suíço, ambos hóspedes da mesma pousada de Nurata, fomos guiados pelo dono da pousada em pessoa, Q. Nosso anfitrião vive com sua família dentro do próprio estabelecimento, que fica perto da fortaleza de Alexandre e da fonte sagrada das trutas, e aluga os quartos sobressalentes para os visitantes, que se beneficiam da excelente localização. Além da pousada, ele também organiza passeios, entre eles uma expedição para o lago ao norte, o Aydarkul. Segundo Q, é um passeio muito popular, especialmente entre os interessados em ter a experiência surreal de aproveitar uma praia no meio da Ásia. Q me lembrou GS, o dono da pousada onde fiquei nas montanhas Fan. Olhos cansados, cerca de 40 anos, simpático e educado, mas sempre parecia estar escondendo algo, como que eternamente tentando calar seus pensamentos e opiniões sobre os turistas, muitas vezes arrogantes, muitas vezes sem nenhum interesse em conhecê-lo ou mesmo conhecer melhor sua Nurata. Não era meu caso. Pareceu extremamente contente de conversar comigo. O cobri de elogios sinceros principalmente pela sua habilidade incrível em falar outras línguas. Não apenas as centro-asiáticas, com exceção do tajique todas parecidas, mas as línguas europeias. Dizia falar inglês, francês, russo, além de uzbeque e um pouco de cazaque e tajique. Testei seu inglês e era muito bom. Foi quando surgiu o convite para ir ao Aydarkul, que lamentavelmente tive que recusar por falta de tempo, e para a visita às incomuns marcas na terra perto da cidade.

Antes de sair da pousada, por volta das 8h, Q nos ofereceu uma breve explicação sobre o que ele definiu como um sistema muito antigo de captação de água. Segundo ele, o sistema foi crucial para que, antigamente, Nurata pudesse enfrentar os verões horrorosamente quentes que sempre teve. Nos mostrou fotos aéreas, pouco úteis, pois era difícil imaginar exatamente como aquelas linhas de círculos na terra eram na realidade, suas dimensões. Disse isso a ele, e ele concordou. Arranjou um motorista com um carro e partimos em seguida.

Descemos do veículo uns 15 minutos depois em uma área de mato rasteiro não longe de um braço das colinas por onde eu tinha caminhado no dia anterior após ver a fortaleza de Alexandre. Nada de mais, à primeira vista. Alguns montes que pareciam ser de terra escavada e acumulada. Então, fomos nos aproximando, olhando para o chão perto da terra acumulada. E lá estavam. À frente, um grande buraco, de uns 5 metros de diâmetro por uns 3 de profundidade. Parecia uma pequena cratera. Ao lado dele, alinhado rumo às montanhas, outro buraco muito parecido. Depois, outro, depois, outro, depois, outro, fazendo um caminho até perder de vista de buracos subindo a montanha. E, do outro lado, seguindo a linha reta, muitos mais após o buraco perante do qual estávamos. Nessa direção seguiam em direção a Nurata. Uma impressionante sequência de dezenas ou centenas, separados com precisão matemática a cada dez ou quinze metros. E, não muito longe, paralelamente, era possível ver outras linhas de buracos semelhantes descendo das montanhas. Uma vasta rede cuja construção deve ter demorado anos, exigindo um esforço imenso para ser concluída.



Trata-se, na verdade, de algo que eu havia ouvido falar em minha visita ao Irã em 2005. A rede, um eficientíssimo sistema de gerenciamento de água em climas desérticos, chama-se qanat ou kariz. No Irã, eu não havia visto os buracos e tudo me pareceu muito abstrato, enquanto que, em Nurata, finalmente tudo fez sentido. A ideia do criativo sistema é que um primeiro túnel, extremamente profundo e em algum ponto no aclive das colinas, encontre um veio d'água no subterrâneo. A partir desse ponto, é construído um "aqueduto subterrâneo", levando a água daquele ponto até o ponto de saída do sistema, aproveitando a gravidade da colina descendo. Os buracos adicionais além do inicial dão acesso à galeria, permitindo alcançar a água corrente e fazer reparos no aqueduto, se for o caso. É um sistema muito bom em desertos porque a água é transportada por longas distâncias sem o risco de evaporação, já que não está exposta ao sol infernal. Além disso, a água chega ao seu destino fresca e pura. O sistema teria tido sua origem na Pérsia espantosamente ainda antes de Cristo; ao Uzbequistão, ele poderia ter sido trazido pelo próprios persas antes de Alexandre, o Grande, pelo próprio Alexandre ou mesmo pelos invasores árabes do século VIII, juntamente com o Islã. Mas, enquanto que no Irã os qanats ainda são razoavelmente comuns, no Uzbequistão existe apenas uma rede conhecida, a de Nurata.

Muitos dos túneis que vi pareceram completamente abandonados, tomados por terra, apenas pegadas na areia onde, outrora, havia um caminho profundo até a água subterrânea. Fui andando de um buraco a outro, analisando-os e me afastando do suíço e de Q. Nas paredes das crateras, ainda é possível ver outros orifícios onde antigamente ficavam fixadas toras de madeira para ajudar as pessoas a chegar ao túnel lá embaixo. Pergunto a Q se os buracos e todo o sistema de transporte de água estão ligados a uma cisterna como a sardoba que vi ontem perto de Navoi. "Não. São ideias diferentes", explicou. "Aqui, a água flui permanentemente, sendo coletada diretamente da saída, sem um reservatório." Não me pareceu ser possível que, após tanto tempo em uso, o sistema ainda forneça água a Nurata. Mas, segundo Q, até hoje os locais se aproveitam dele.

Que sensação estranha a de caminhar ao lado dos buracos do qanat de Nurata. Sensação de visitar um campo de pouso de naves extraterrestres, que usariam os buracos como referência como nos aeroportos os aviões se guiam por luzes piscantes na pista.

Hora de ir. Nosso motorista passou rapidamente na pousada para deixar Q e o suíço. Eles iriam agora para o lago Aydarkul. Depois de nos despedirmos, o carro, só comigo e o motorista, foi enfrentar o sol da estrada para a Labi-Haus.

O motorista, que já era uma pessoa calada, com um russo limitadíssimo, se fez ainda mais mudo. Q havia pedido a ele que me deixasse em um certo ponto da estrada onde um primo do próprio Q passaria mais tarde com um táxi compartilhado levando gente para Bukhara. Um assento estava reservado para mim. Mas, antes, o motorista também tinha combinado com Q de me levar a outro local incomum e pouco conhecido dos turistas. Um vilarejo num pequeno desvio da estrada principal, a um terço do caminho entre Nurata e Navoi.

Logo na entrada da vila deu para imaginar parte do que viria a seguir. Ao lado do asfalto havia grandes escavadeiras. "Kamen", disse o motorista. Era a palavra para pedra em russo. "Pedras e mais pedras", completou. O russo do motorista, falado em palavras que saiam bruscamente de sua boca e mal pronunciadas, soava como algo animalesco, primitivo. Da idade da pedra, combinando com o substantivo. "É tudo por aqui. Pedras. É a riqueza de Gazgan. Mas não tem água."

Fomos entrando com o carro, devagar. A quentíssima, sequíssima cidadezinha é um lugar que dizem ser único no Uzbequistão. O modelo de casa uzbeque é com grandes pátios sombreados escondidos atrás de muros sem nenhum atrativo externo, geralmente com fachada de concreto, tijolos ou barro nos locais mais pobres. Em Gazgan, porém, o padrão é modificado. A pedra mais valiosa encontrada por aqui é o mármore, mas outras pedras ornamentais, ardósias e granitos, são também tão comuns e de tão boa qualidade que casas no centro da vila têm suas fachadas todas cobertas com elas. As lâminas de pedra são fixadas como um quebra-cabeça, criando mosaicos para onde quer que se olhe. Não está claro quem começou com isso ou quando começou. Mas o que se vê hoje é um conjunto de moradas que me lembrou uma vila do norte do País de Gales, descontando o tempo úmido e instável de lá. Surreal, mas Gazgan guarda um quê de cidadezinha fria de montanha, com seus abrigos de pedra, ainda que estando no meio do deserto e sendo sufocada pela poeira e pela secura.

Nas ruas, em meio às casas de mosaico, pouquíssimas pessoas enfrentavam o sol. E essas eram velhos. O lugar parecia estar morrendo. Casas de vila galesa, realidade de povoado do sertão nordestino.

As moradas com as pedras na fachada foram ficando mais comuns à medida que avançamos pelas ruas, pelo coração de Gazgan.

Uma hora, o motorista parou. À nossa frente, estava o que parecia ser a entrada de um cemitério. Havia uma entrada, uma casinha com detalhes em mármore no mosaico de sua fachada e uma inscrição em cima da porta — Shohimardon, que identifico com sendo uma inscrição de origem persa significando Rei (shoh, xá) dos homens. Senti que já tinha visto esse nome antes.

"É aqui. Vamos entrar", disse o motorista. Surpresa para mim. Pensei que iríamos apenas visitar a vila.

Gazgan não é singular apenas pelas fachadas de pedra. Há algo mais, também interessante e incomum.

Atravessamos a entrada. Um curto caminho levava a uma mesquita e um mausoléu. O taxista se apresentou a dois guardiões, velhos com seus chapéus típicos uzbeques e rostos muito sérios, de pessoas que há décadas se dedicam aos estudos religiosos. Lhes perguntou algo. Responderam em russo: "Sim, é aqui. Ali..." e apontaram. Ali, neste caso específico, não é um advérbio de lugar.

Diz a lenda solidificada na crença local em Gazgan que lá está a suposta tumba de Ali, o genro do Profeta Maomé, o quarto califa dos sunitas e o nome mais santo para os muçulmanos xiitas. Mais uma tumba para Ali, das inúmeras que se espalham pela Ásia Central, misturando sua força com a de crenças locais ancestrais usando o sufismo como elemento unificador. No Pamir, em 2012, encontrei uma pequena tumba do Imã Ali em um lugar extremamente remoto, em Ishkashim, perto da fronteira afegã. Os locais acreditavam piamente que o local de descanso final do genro do profeta estava de fato lá, e que a crença da maioria dos xiitas, de que está enterrado em Najaf, no Iraque, era uma elaborada farsa destinada a enganar os inimigos do Islã. Não tão longe do Pamir, mas já no próprio Uzbequistão, fica outra suposta tumba de Ali. Tudo se encaixa ao me lembrar dela. Ainda não a visitei, mas li a respeito e lembrei que ela ficava na localidade de Shakhrimardan, um enclave do Uzbequistão no Quirguistão, no Vale de Fergana. Shohimardon, Shakhrimardan. É o mesmo nome.

Em Gazgan, a origem da tumba seria a lenda de que Ali teria vindo para a região de Samarkand enfrentar um mítico dragão. Nada que se possa ver nas escrituras.

Trata-se de um mausoléu simples. Em minha visita, estava vazio, completamente às moscas, embora limpo e com manutenção atenta. Do lado de fora, é uma casa de pedra, parecendo uma pequena igreja. Um conjunto de mastros vermelhos erguem bandeiras verdes, a cor associada ao Islã, indicando que, neste local, um ser iluminado está descansando. Dentro, uma câmara com paredes e teto sem decoração alguma. O caixão, como acontece no caso de tantos santos por aqui, têm uns dez metros. Na cabeceira, foi colocado outro mastro com uma bandeira verde.

O complexo fica à direita de uma pequena mesquita com a fachada em mosaico de pedra típica de Gazgan. Estava sendo fechada, mas os guardiões me deixaram entrar por um par de minutos. Arcos de pedra e extremos de luz e sombras. A luz intensa, branca, celestial, penetrando por janelas no teto, em contraste extremo com a escuridão entre os arcos. A impressão é que eu não estava em uma mesquita, mas em um templo grego, com pilastras lembrando colunas dóricas. Fresco, calmo, isolado.

Um desejo de me sentar no chão e perder meus pensamentos. Quando estava prestes a fazer isso, um guardião, com sua barba e olhar frio, me chamou. Tirou-me para fora e passou a corrente na porta. Invocou em silêncio as forças do seu Olimpo. Zelava para que seu Ali não fosse perturbado por mim, um infiel. Entendi.

Apontou para os mastros vermelhos. Me disse que estavam associados a uma crença de dar às mulheres fertilidade. A interessada deveria passar por entre os mastros; assim, seria abençoada com filhos saudáveis. Algo imemorial, bem anterior ao Islã e, novamente, sem nenhuma justificativa nos textos sagrados.

Ao ver as bandeiras verdes nos mastros, lembrei, pela segunda vez no dia (após a visita ao qanat de Nurata), do Irã, a maior nação de partidários de Ali, os xiitas. Os seguidores desse ramo do Islã são minoria nesta parte da Ásia Central, mas eles existem, muitos deles vindos do sul séculos atrás e conhecidos como Ironis, ou seja, do Irã. Segundo historiadores, o momento crucial que explica a presença dessas comunidades é uma ofensiva do emir de Bukhara contra a lendária cidade de Merv, cujas ruínas ficam no atual Turcomenistão, em 1785; a cidade pertencia aos persas e, após a vitória do invasor, ficou inabitável. Então os sobreviventes foram forçados a emigrar para o norte.

As comunidades xiitas estão espalhadas pelo Uzbequistão, onde preferem priorizar a discrição. Não duvidaria que Ironis frequentem este mausoléu, mas é difícil confirmar isso. Um artigo divulgado em uma publicação acadêmica em 2009 estimava que naquela época existiam cerca de 100 mil xiitas em Bukhara e 200 mil em Samarkand, embora não houvesse cifras oficiais. Os seguidores de Ali são obrigados a praticar sua fé na maior parte das vezes isoladamente, dentro de suas próprias casas. Em 2009, apenas três mesquitas para xiitas estavam registradas no país, duas em Samarkand e uma em Bukhara, e a comunidade se queixava de estar sob pressão das autoridades para desaparecer de vez, particularmente nas datas de celebração dos xiitas como a Ashura, o dia em que a comunidade lembra o martírio de Hussein, neto de Maomé e filho de Ali. Há registros de que repetidas vezes as autoridades negaram pedidos para que os xiitas abrissem mais mesquitas ou mesmo pudessem fazer a peregrinação a Meca. Os xiitas são vistos com um elemento de influência do Irã e são associados aos tajiques (que falam persa, mas são naturais da Ásia Central e em sua maioria, sunitas, com exceção dos moradores do Pamir). No nacionalista Uzbequistão, onde a questão da aceitação da identidade tajique de boa parte da população ainda não tem resposta, convém que a caixa de pandora do xiismo continue bem fechada. Seria uma surpresa, mesmo na fase de distensão capitaneada pelo novo presidente Shavkat Mirziyoyev, que o tema seja tratado com a transparência que merece e que os Ironis sejam reconhecidos e aceitos como é a maioria sunita e uzbeque da população.

O guardião desapareceu. Sou acordado de minhas reflexões pelo motorista. Hora de ir.

Local incomum, Gazgan.

Deixamos para trás a cidade, entramos na estrada e corremos para os turistas de Bukhara. Abri a janela do carro, o ar fervente do deserto veio me estapear. Ele levava para longe as pedras e o que nunca vou saber.

Char Bakr, 17/8, 15h45

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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