Sunday, 12 March 2023

Novas Fronteiras (XI) - Samarkand, Uzbequistão



O que é "Novas Fronteiras"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior deste diário
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Clique aqui para ver um mapa da viagem

13/8/2018

No fim da tarde, no coração de uma das áreas mais turísticas de Samarkand, um numeroso grupo de uzbeques subia vagarosamente uma escada luxuosa de pedra. Nenhuma pessoa parecia ser um turista. Não havia loiros alemães e suecos, não havia dezenas de chineses com óculos liderados por um guia com uma bandeirinha. Alguns, sim, pareciam vir de outras partes do próprio Uzbequistão, do Vale de Fergana, com as mulheres trajando seus lindos vestidos de seda, seus lenços cobrindo a cabeça. Subiam a escada com lerdeza reverente.

No alto dos degraus, ao lado de uma mesquita histórica, um cubo perfeito. Um mausoléu. Mármore branco. Com as paredes trabalhadas com motivos geométricos e escrita árabe com reverências a Alá. As quatro fachadas com detalhes geométricos azulados. E, no teto, uma cúpula-cebola branca.

O sol está radiante.

Passo a passo, a fila alcançava a entrada do cubo e chegava minha vez de olhar. As pessoas à minha frente focavam os olhos no que enxergavam lá dentro: um paralelepípedo de mármore maciço, como uma cama estreita, novamente esculpido com o árabe sagrado. Após o olhar fixo, cada pessoa unia as próprias mãos, lado a lado, com as palmas abertas e viradas para cima, depois as encostavam nos seus peitos. Nesse processo, mexiam os lábios sem emitir qualquer som. E depois traziam para si uma bênção imaginária, lavando o rosto com ambas as mãos, esfregando rapidamente o invisível sobre seus olhos fechados, as testas suadas, os lábios secos.

O andar lento depois as levava para trás do cubo. Ali foi construído um corredor coberto. O teto é lindo, seu interior é um bordado de madeira com detalhes coloridos, concêntricos, hipnóticos. As colunas sustentando o teto, de madeira, foram também trabalhadas pacientemente, cada centímetro é uma obra de arte em alto-relevo. Sob o teto havia bancos para os fieis se sentarem. Se acomodavam, lado a lado. Um mulá acompanhava a chegada de todos e, quando já havia um número razoável sentado, usou um sistema de alto-falantes para entoar uma prece. Todos os presentes colocaram novamente as mãos juntas, com as palmas viradas para o céu, e rezaram.

Tudo diz e repete que, aqui, está enterrado um santo muito querido. Mas quem?

Não é um homem abençoado dos séculos IX ou XII. Não é um descendente do Profeta. Trata-se do primeiro presidente do Uzbequistão independente, Islam Karimov, que morreu em 2016. Um temido líder que não poupava esforços para manter o controle absoluto sobre a população do país. Um líder responsabilizado por um massacre (na cidade de Andijan) em 2005 com dezenas de mortos. Um líder acusado de fechar os olhos para a tortura de seus críticos, para o trabalho forçado e o trabalho infantil na lavoura de algodão, para o desastre ambiental no Mar de Aral. Um líder que reprimia como criminosos os mais devotos ao Islã, que foi considerado um dos mais violentos do mundo, que isolou o país de seus vizinhos.

Tantas críticas, tantos defeitos. E, hoje, é um santo.

De fato, os sinais de que há um culto à memória de Karimov não estão presentes apenas neste mausoléu. Eu já havia visto, na praça ao lado do Registan, uma estátua do ex-presidente. Naquele caso, me pareceu previsível — afinal, Karimov era de Samarkand e sua importância para o país é inegável. Estátuas são erguidas para homens assim em suas cidades natais, homenagens póstumas são esperadas. Mas a adoração em seu mausoléu me espantou. É diferente, embora tenha semelhanças, com o que ocorreu com Lênin, que até hoje tem seu mausoléu em Moscou. Aqui, existe esse elemento muçulmano muito forte. Claramente, isso me pareceu um sinal de que um aceitação do grande legado negativo de Karimov, um ajuste de contas com esse passado infame, não apenas um reconhecimento de sua influência positiva (manter o país unido e estável após o fim da URSS, criando o Uzbequistão independente, por exemplo), ainda não está ocorrendo no país. Realmente surreal: nas vezes em que estive aqui com ele ainda vivo, o que mais senti em relação a Karimov e seu regime era medo. E, agora, esse temível santo é alvo de orações, de pedidos de bênçãos.

Como brasileiro me sinto especialmente intrigado pelo que vejo. Não consigo me imaginar reverenciando como um santo um atual ou ex-presidente. As mortes de Tancredo e Getúlio causaram imensa comoção, mas ocorreram em circunstâncias muito especiais, sendo completamente inesperadas e eliminando líderes importantes em um certo momento histórico, e nem por isso geraram algo tão messiânico. Além disso, há hoje em boa parte da população brasileira uma antipatia prevalente, um nojo, com a classe política em geral.

Entretanto, por aqui, o Islã, da forma como é observado tradicionalmente nos países da Ásia Central, ajuda a entender esse culto a Karimov. Por toda a região dos rios Amu Darya e Syr Darya há os mazars, os mausoléus de homens iluminados. Foram em geral sábios muçulmanos sufis associados à própria região, pregadores, professores, mestres. Mas, mais do que isso, são representantes de um passado glorioso e, ao mesmo tempo, misterioso. Poucos conhecem bem esse passado. Assim, esse culto ganha força, alimentado pela fé de quem não o conhece. Karimov se foi e ainda é lembrado claramente, mas sua morte o colocou no panteão desses santos, igualando-o a eles. Em seu governo, a verdade permanecia frequentemente totalmente oculta, então seu governo foi, para muitos, um período bom, de estabilidade, de confiança, mesmo que para muitos outros fosse um período de medo. Algo semelhante ocorreu no regime militar no Brasil. Nessas circunstâncias, agora, após sua morte, o governo deveria tomar para si o trabalho de trazer à torna essa verdade aterradora que ficou escondida e tentar curar as feridas. Se isso não é feito, perpetua-se o mito — o santo Karimov, absolvido de seus pecados, ganha força com o tempo já que quem testemunhou suas atrocidades, que conheceu a verdade diretamente, aos poucos vai morrendo também.

Além disso, o adeus do ditador deu um passado pela primeira vez para toda a nova geração no país. Afinal, Karimov foi o primeiro presidente do Uzbequistão, o único líder que os jovens uzbeques conheceram. Antes dele, o passado era o dos líderes da URSS, que cada vez menos gente testemunhou e certamente não os mais novos. A sensação repentina de que o país, também jovem, de repente ficou órfão virou mais um motivo para a força de seu culto. O fato de que a mão firme de Karimov, que para o bem e para o mal guiou o país desde antes de 1991, não mais está presente. Que a identidade criada pelo presidente para um território desenraizado pelo sonho do Homo sovieticus agora está sem sua referência, e tudo está aberto. O mundo entrou num momento de imensa incerteza, de completa insegurança, em que o espelho se estraçalhou. E a fé se impõe como inevitável remédio.


* * *

Muita preguiça.

Decidi me dar um dia de folga da viagem. De manhã, tenho levantado todos os dias às 6h ou 6h30, já que nesse horário o calor ainda é tolerável. Hoje, tomei café às 7h30 e só saí do hotel ao meio-dia. Fiquei conversando com minhas novas amigas portuguesas, escrevendo meu diário, voltando para o quarto para tirar mais uma soneca. Merecido descanso, mas chegou a hora de ir para outro hotel, reservado e pago previamente. Uma pena, este estava ótimo.

Depois da mudança de base, fui visitar mais alguns poucos locais turísticos de Samarkand que eu ainda não conhecia.

Samarkand é uma cidade antiquíssima, cuja data precisa de fundação sequer é conhecida. Quando Alexandre, o Grande, a conquistou em 329 a.C., batizando o assentamento como Maracanda, a cidade já tinha séculos de história como um dos centros da cultura sogdiana, ocupantes da sátrapa da dinastia persa aquemênida (séculos VI-IV a.C). Em 2007, Samarkand comemorou uma data impressionante, mas certamente arbitrária: seus 2750 anos de existência. O que os turistas não deixam de visitar hoje, o Registan ou o mausoléu de Tamerlão, são passos recentes nesta longa trajetória. Até hoje eu julgava que a cidade tinha, sim, surgido entre o Registan e a tumba de Tamerlão. Mas uma caminhada para o norte, seguindo por uma avenida que passa ao lado do mausoléu de Islam Karimov, me trouxe a uma área vasta de ruínas desfiguradas pelo sol, como as de Penjikent. O local das raízes mais antigas de Maracanda recebia o nome de Afrosiab e sobreviveu lá, nessa terra hoje fantasmagórica, desde aproximadamente 500 a.C. até o século XIII, quando os mongóis chegaram. Timuridas e dinastias posteriores ergueriam seu monumentos mais perto do centro histórico atual.

O terreno com as ruínas fica numa área mais alta do que aquela onde ficam os grandes monumentos turísticos atuais, o que indica sua importância defensiva. Samarkand recebeu, nos tempos sogdianos, um influxo considerável de viajantes que seguiam pela Rota da Seda, sempre tirando deles seu sustento. Foi uma cidade rica, imponente. Nas ruínas, de montes de terra e buracos sem placas de informação e qualquer sentido para os não familiarizados, é difícil imaginar isso, mas, novamente como em Penjikent, a simples dimensão do terreno por onde estão espalhados seus restos (uns dois quilômetros quadrados) e a riqueza arqueológica, revelada a partir do século XIX e em particular a partir de escavações na década de 1920, confirmam sua grandeza e orgulho subjugados por Gengis em 1220.

Ainda que obliterando sua face, nem sequer os mongóis foram capazes de destruir alguns de seus tesouros, como testemunha o museu que fica ao lado do sítio. Há muitos artefatos interessantes e enigmáticos, alguns com cruzes (mostrando a presença muito antiga de cristãos em uma terra tão distante), e a maior de todas as joias do passado sogdiano — um mural de afrescos, reconstruído em uma sala, que mostra, em cores vívidas, cenas de representantes de povos asiáticos prestando homenagens ao rei sogdiano de Samarkand. Nesse sentido, finalmente, surge uma diferença crucial em relação a Penjikent: em Afrosiab, o mural, sua lembrança mais celebrada, permanece no local da ruína ancestral, onde justamente deveria ficar. Inclusive, os dois, o mural de Penjikent levado para o Hermitage de São Petersburgo e este, se parecem muito, com seu tom azul dominante.

O mural de Afrosiab data do reinado do monarca sogdiano Varkhuman, que reinou na cidade-estado na metade do século VII. Nessa época, os sogdianos estavam ainda sob o domínio do primeiro império túrquico a dominar a Ásia Central, o dos "turcos celestiais" ou azuis (gökturks em túrquico), que teriam vindo da região no sul da Sibéria, Mongólia ou norte da China atual. Os gökturks (e por conseguinte os sogdianos), em decadência, ainda no século VII tornaram vassalos da dinastia Tang, da China. Independentemente disso, os sogdianos sempre tiveram uma grande autonomia que sem dúvida refletia sua habilidade diplomática e suas excelentes relações comerciais com os povos vizinhos. Varkhuman se vangloria disso no mural, que é dividido em quatro partes. A mais bem preservada é certamente uma grande peça de propaganda voltada a seus súditos, que poderiam bem acreditar que o monarca era um deus na terra. Mostra filas de dignatários estrangeiros, incluindo chineses, oferecendo presentes ao rei. O segundo mural, que chegou a nossos tempos em estado pior de conservação, mostra o que seria uma procissão funerária liderada por Varkhuman, possivelmente para a despedida de seu antecessor. Ainda são exibidos os restos de dois outros afrescos integrantes do mesmo conjunto, mas deles quase nada sobrou. Um mostraria uma cena de caça centrada em um imperador chinês, talvez uma homenagem aos susseranos, e o outro possivelmente uma cena na Índia, o rico vizinho de onde vinha boa parte da riqueza de Afrosiab.

O mural só foi descoberto em 1965 durante a construção da rua que dá hoje acesso às ruínas e ao museu. Foi restaurando com investimento francês em 2014 e é hoje, juntamente com o mural de Penjikent, um dos poucos exemplos da arte sogdiana que restam. Ele prova a importância regional de Samarkand como centro dessa misteriosa civilização, cuja influência perdura até hoje (há aldeias no Tajiquistão onde ainda se fala um dialeto do sogdiano). O que não fica claro ao admirar a obra é a importância relativa de Afrosiab em relação a outros centros sogdianos, especialmente Penjikent.


* * *

Depois do museu, visitei a tumba de Karimov e uma pequena mesquita ao lado, uma mesquita antiga que, embora no centro do afã turístico da cidade, me havia passado despercebida nas minhas visitas anteriores. Consta que a mesquita Hazrat Hizr foi originalmente erguida no século VIII, ou seja, pouco depois da chegada dos árabes e do Islã a Afrosiab. Teria sido, claro, demolida por Gengis no século XIII. Só em 1854 foi reconstruída. Nos anos 1990, graças ao financiamento de um rico fiel de Bukhara, foi toda restaurada e se transformou em uma das mais bonitas da cidade, mas cerca de 30 anos de turismo evidentemente têm seu impacto. Durante minha visita, estava sendo restaurada.

O interior, embora atraente, me trouxe de novo a nada bem-vinda impressão, frequente em Samarkand, de exagero no trabalho de restauro, a ponto de deixar o prédio histórico com uma cara de recém-construído, tirando-lhe todas suas valiosas rugas. O que mais me impressionou, na verdade, foi o preço que tive que pagar pelo ingresso, 17 mil soms — pouco com o câmbio, algo em torno de US$ 2, mais ainda assim muitíssimo levando em conta os preços em geral no país, e também considerando que a decoração da mesquita estava parcialmente encoberta por andaimes. Do lado de fora, um grupo de operários reformava o prédio e fazia um barulho infernal com uma serra de cortar azulejos. De diferente e memorável, apenas a sacada da mesquita, algo bastante incomum, descortinando uma linda vista para a mesquita Bibi Khanoum.

Minha quarta despedida de Samarkand. Mais uma vez, foi no Café Labigor. Hoje, ainda mais do que em noites anteriores, a cozinha estava um desastre. De todo o cardápio, apenas duas opções estavam sendo servidas: salada e o churrasquinho, shashlik. Sequer laghman, o macarrão em uma sopa, que sempre costumam ter. Peço dois espetos de carne bovina, que me surpreendeu por estar muito apetitosa e, claro, a cerveja, o real motivo de voltar e voltar e voltar.

Noite tranquila, observando o vaivém na rua. No andar de cima do restaurante, perto da sacada, hoje havia cantores, interpretando músicas típicas uzbeques. Fiquei embaixo, em silêncio. Escutando. Que bonito.

Como você é bonita, Samarkand. Foi e será bonita, não precisa de nenhuma maquiagem.

Karmana, 19h16, 14/8

Clique aqui para ler o próximo capítulo



Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

Clique aqui para ler o primeiro capítulo deste diário
Voltar para o topo desta página
.

No comments:

Post a Comment