Sunday, 5 March 2023

Novas Fronteiras (IX) - Penjikent, Tajiquistão



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11/8/2018

O mulá se agachou e afastou o tapete. Embaixo dele, havia uma tábua solta cobrindo a terra do chão. "Veja", me disse, retirando a tábua. Só vi escuridão até aproximar a cabeça e iluminar tudo melhor com a lanterna do meu celular. Despidos pela luz branca, um crânio e várias ossadas.

"São cerca de 30 esqueletos. Sufis, provavelmente", explicou o mulá. Um arrepio atravessou minha espinha, aquela sensação que se tem quando o macabro tem com você um encontro inesperado.

O mausoléu de Muhammad Bashoro, perto de Penjikent, é um segredo praticamente restrito aos locais. Havia uma menção extremamente breve em meu livro-guia. Tão breve que a minha ideia de visitá-lo foi quase que totalmente um pulo no escuro. Sabia apenas que no mausoléu, na cidadezinha de Mazor-i-Sharif, poeirenta e vazia no sol da tarde, havia sido enterrado um reverenciado sábio sufi, e que o local era muito frequentado pelos locais. Assim, deixando o mundo de GS, decidi apostar que esse lugar me mostraria uma visão diferente da região. Nenhum dos turistas que eu conhecia na pousada de GS sabia algo a respeito do mausoléu. O americano e a tailandesa seguiam hoje para Khojand, no norte do Tajiquistão. Shackleton e o moleque viajariam para Penjikent e depois para o Uzbequistão (estavam, pai e filho, meio nervosos em atravessar a fronteira e ver o país que, para os dois, era inédito). E eu era o único planejando explorar mais da área das montanhas Fan, sem pressa. Por coincidência, GS estava indo para Penjikent e deu carona a todos, nós cinco, até a estrada principal, na qual desembocava a estradinha que levava aos lagos e que a UAZ galgava com valentia diariamente. De lá, os tchecos seguiriam com GS até o mercado de Penjikent; o casal iria pegar um caro táxi até Khojand, que não era perto, e eu... não tinha ideia do que fazer para chegar a Mazor-i-Sharif.

Na descida pela estradinha, sentei-me na frente da SUV de GS, que ia ao volante. Eu esperava que pudesse ir lhe perguntando como fazer para alcançar meu destino, o lugar quase homônimo da grande cidade do norte afegão, Mazar-i-Sharif. GS, porém, estava bem diferente de sua persona dos dias anteriores. O americano, que havia pagado caro por uma boa cama em sua pousada, lhe havia pedido ajuda para arranjar o táxi para Khojand. Iria pagar, em dólares, literalmente uma fortuna. GS estava dirigindo com uma mão — negociando os buracos, os declives, a poeira e os carros vindo na direção contrária — enquanto que na outra mão segurava seu celular, no qual berrava, falando com um suposto amigo que iria fazer a lucrativa corrida. O sinal de celular era claramente intermitente. GS estava bastante nervoso; parecia que o americano apenas naquela manhã havia pedido ajuda, após o café da manhã, e o dono da pousada não tinha como adiar a viagem para Penjikent. A única possibilidade era negociar a corrida de táxi pelo celular no caminho. GS poderia ter se recusado a ajudar? Talvez, mas dificilmente um centro-asiático, representante de um povo que se orgulha de sua hospitalidade, vai deixar de ajudar um visitante. Ainda mais com tanto dinheiro envolvido. Provavelmente GS ganharia uma comissão também.

Era assustador ver GS dirigindo e gritando no celular. Tudo conspirava para que um grave acidente ocorresse. Distrações infinitas: os tchecos conversando em tcheco, o casal, em inglês, o celular, falando em tajique entrecortado. A estrada era péssima, a luz forte do sol incidia diretamente sobre os olhos de GS. As gotas de suor surgiam em sua testa, desciam, ficavam represadas nas grossas sobrancelhas e pouco depois despencavam como brilhantes. Várias vezes GS ficou repetindo de novo, com raiva, a frase que tinha acabado de dizer a seu contato e que havia se perdido na atmosfera atrás da última curva. Impossível conversar com ele. E, mesmo quando finalmente o telefonema terminou, achei melhor não incomodá-lo até que se acalmasse.

A tensão não tirou meus olhos dos lagos mágicos dos quais estávamos nos despedindo. Naquele momento, a luz da manhã atravessava perfeitamente a água. Que diferença da tarde, quando subi a estrada e caminhei à beira deles. Os lagos 1, 2 e 3 estavam completamente diferentes, verde-azulados, eram joias líquidas, um capricho divino, me deixaram com uma vontade louca de sair correndo do carro, arrancar minha roupa e mergulhar. Não fui o único a pensar nisso. O moleque leu meus pensamentos e, sim, tomou uma atitude. Sugeriu seriamente a GS que parasse e que todos fôssemos tomar um banho. GS riu, entendendo o pedido como uma piada. "Tentador, tentador, de verdade", disse. E continuou dirigindo, correndo para encontrar o taxista a tempo na estrada principal (parecia que havia apenas uma pequena janela de oportunidade para entregar a ele o americano e sua namorada, de acordo com o combinado na conversa pelo celular).

Em determinado momento, já faltando pouco tempo para a estrada principal, notei algo que não tinha percebido na ida, durante a aventura a bordo do UAZ. A estradinha naquele trecho curto e específico estava muito melhor, asfaltada com perfeição. Achei intrigante. Também, nesse trecho, passamos a encontrar muitos caminhões basculantes. Não consegui identificar o que carregavam. Entre as teorias que me vieram à cabeça uma era que por lá ficava alguma fábrica, na certa uma estatal de propriedade da elite local fiel ao presidente, ou talvez uma mina. Pensei, também, que seria uma ótima pergunta (mais uma, além de como chegar a Mazor-i-Sharif) para fazer a GS.

E o momento perfeito veio quando chegamos, finalmente, à estrada. A pressa de GS nas curvas havia sido excesso de cautela. Ficamos uns 20 minutos no acostamento esperando o taxista, que logo ligou para avisar que estava atrasado. Após a chamada dele, GS pareceu muito aliviado e relaxado.

— O que é essa estrada asfaltada no final, GS? Por que está tão boa aqui embaixo e lá para cima, tão ruim? O governo está asfaltando aos poucos?
— O governo? Não, não! — me respondeu com veemência, com raiva. — O governo não tem nada a ver com isso. São chineses mesmo.
— Chineses?
— Sim. Eles estão por toda a parte. Estão tomando o país. Eles controlam duas minas aqui embaixo. Uma delas é de ouro. Fizeram a estrada para eles mesmos. Exploram e levam, levam tudo! Em troca, só fizeram a estrada. Não ganhamos nada além disso. Devem estar ganhando um bom dinheiro! E a gente, nada, claro.

Eu já tinha testemunhado o discurso antichinês na Ásia Central, mas não de forma tão veemente. Tudo começou a fazer sentido. Em Penjikent, de fato, eu havia visto algumas máquinas de construção (escavadeiras, por exemplo) chinesas, mas não sabia se eram importadas para serem usadas pelos próprios tajiques ou se aquele era um sinal da presença de obras conduzidas pelo país vizinho. Em seus projetos na Ásia Central, os chineses geralmente trazem tudo — máquinas, operários, engenheiros. Têm controle completo. Em troca, fazem melhorias na infraestrutura, como o asfaltamento da estrada nas montanhas. Mas frequentemente a percepção é de que o que dão em troca é muito pouco. Que as riquezas locais estão sendo pilhadas. GS claramente via assim a questão. Por outro lado, perguntei, não estava feliz com o fato de que havia mais facilidade para que os turistas chegassem a sua pousada, com a boa estrada pelo menos em um trecho?

— Sim, claro — concordou. — Mas o que vai melhorar mesmo vai ser quando vierem ônibus de excursão de Samarkand para cá. E isso não tem nada a ver com os chineses.
— Mas tem tudo a ver com a reabertura da fronteira com o Uzbequistão!
— Sim, sim! — falou, extremamente empolgado, claramente um homem de paixões, quase um latino, meu amigo GS. — Sim, a fronteira abrir, mudou tudo! Temos agora muita possibilidade de receber mais gente! É uma maravilha! Nos tempos soviéticos, os turistas vinham de Samarkand toda hora. O passeio combinava visitar o Registan e as nossas montanhas. Depois, quando a fronteira fechou, vir para cá ficou um inferno! E não só para os turistas. Se eu quisesse comprar uma TV, como eu fazia? Tinha que ir para Khojand ou Dushanbe. Ficam a horas daqui! E Samarkand, menos de uma hora! Tudo mudou agora!
— Mas os turistas já estão vindo, não? Olhe o meu caso...
— Nada ainda como antes. Mas é questão de tempo. Eu estou recebendo mais e mais ligações!

Nesse momento, de repente, sem nenhuma explicação, numa completa antítese do semblante empolgado que tinha encarnado até então, GS ficou quieto. Deixou de olhar nos meus olhos com o olhar mais brilhante do mundo. Passou a olhar para o chão. Uns dez segundos de silêncio. Algo que não podia ser falado.

— Não temos muito por aqui. Tomara que comecem a vir de novo, como antes. Me ajude. Avise seus amigos! E venha de novo! — Nisso, voltou a me olhar nos olhos, levantando a cabeça. Sorrindo um pouco. O olhar menos brilhante, mais opaco. Meu amigo parecia ser atormentado por fantasmas.

Chegou o taxista. Antes de me despedir de GS, fui abraçar Shackleton e o moleque. Combinei de tomar com eles uma cerveja em Samarkand no Café Labigor. Lhes passei rapidamente as coordenadas. Expliquei que não era difícil encontrar o café. Combinamos a data e a hora. Prometi que a cerveja era boa. Shackleton deu uma gargalhada. O moleque me abraçou com força.

GS veio a seguir. Não ia me abraçar, mas eu o abracei. Um pouco constrangido de início, senti em seguida que ele retribuía em dobro meu carinho.

— Volte, volte por favor!
— Voltarei, GS. E tudo vai melhorar por aqui!

Acenei e lá se foram os tchecos e meu amigo das montanhas Fan. Não tive tempo para nostalgia instantânea. O americano e a tailandesa nesse momento também se despediram de mim, colocaram as malas no carro do taxista e entraram no veículo. Lembrei, de repente, que por fim não perguntei a GS e ainda não sabia como chegar a Mazor-i-Sharif e seu mausoléu. Como o casal iria passar no caminho para Khojand por um vilarejo que ficava mais perto de Mazor, pedi ao taxista carona até essa vila. De lá, acreditava, eu poderia conseguir uma outra carona. O motorista aceitou. Literalmente dez minutos de estrada e fui devolvido ao asfalto. Agora, sim, sozinho novamente.

Estava então em um ponto de vans onde, logo descobri, várias pessoas estavam esperando transporte justamente até a vila. Me disseram que ela ficava a mais ou menos dez quilômetros, novamente em direção às montanhas. Seria inviável caminhar até lá por causa do calor. De qualquer forma, uma das pessoas com quem conversei no ponto já tinha praticamente me convencido a esperar por uma van. Era um sujeito com uns 45 anos, parado com sua bicicleta, esse meu novo amigo instantâneo. As feições típicas uzbeques, cabelo preto, olhos brilhantes e fixos, nada do rosto meio chinês ou mongol que se vê mais e mais a caminho do Quirguistão e do Cazaquistão. E também nem sequer um traço dos olhos claros dos russos ou do semblante um tanto mais europeu de alguns tajiques que se orgulham de repetir a crença de que são descendentes de Alexandre, o Grande. Meu novo amigo era um perfeito uzbeque. Mas seu detalhe mais chamativo era que usava um chapéu de caubói, algo bastante incomum por aqui. "Não, não faça isso, não vá a pé. Eu te mostro exatamente qual van pegar", disse ele. Senti nele uma genuína vontade de ajudar e de conhecer um pouco alguém de longe.

Encontrada a van, negociou um preço justo para mim. Agradeci efusivamente. Não estava claro quando o transporte iria sair — o motorista estava esperando que a van ficasse completamente cheia antes de dar a partida, como é o costume na Ásia Central. Quando ia me despedindo do caubói uzbeque, ele ficou em silêncio, me olhando. "Não. Espera!", disse. "A van ainda deve demorar para sair. Também vou ao mausoléu com você. Faz tempo que quero ir. Vou só até casa me trocar!" Nisso, deu meia-volta e saiu em velocidade com sua bicicleta.

Passou-se uma hora até que ele voltasse, banho tomado, camiseta e jeans limpos, mas o mesmo chapéu de longas abas. E, depois que ele reapareceu, esperamos juntos mais uma hora até a van sair. Sentamos apertados no fundo da lotação, do popularíssimo modelo Damas da Daewoo, e logo pegamos uma via que saía da estrada principal em direção às montanhas, mas em um cenário bem menos bonito que o do vale do rio Shing. O sol da tarde e a poeira davam a tudo, combinando com o chapéu do meu amigo, um quê de faroeste. Em volta da estradinha, algumas casas, terra seca, arbustos, pedras. Os passageiros foram descendo aos poucos e nós só saímos no ponto final: uma espécie de bolsão de estacionamento com espaço para alguns ônibus ao lado de uma pequena edificação, o ancestral mausoléu de Muhammad Bashoro de Mazor-i-Sharif ("mazor" sendo uma grafia alternativa de mazar, santuário, mausoléu, e "sharif" a palavra de origem árabe para designar "nobre"). O caubói uzbeque comentou que, em dias santos do calendário muçulmano, o local fica pequeno para tantos carros de fiéis que vêm visitar o local.

O mausoléu teria sido erguido entre os séculos XI e XII, o que pode, na verdade, colocá-lo como obra de três impérios muçulmanos que dominavam partes diferentes da Ásia Central na época e que por aqui devem ter se sobreposto: o dos turcos seljúcidas centrados no atual Turcomenistão, o dos kharakanidas com centro mais ao norte e o dos gaznévidas, com base no Afeganistão. Difícil dizer. Sabe-se que originalmente era uma estrutura muito simples, sem o atual e elaborado portal de terracota, que teria sido adicionado apenas no século XIV, provavelmente durante os tempos em que Tamerlão e seus descendentes eram os senhores. Em uma região tão pobre, é um tesouro que certamente é mais valorizado pelos locais, especialmente pelos que ligam para religião, do que o famoso sítio arqueológico sogdiano de Penjikent, que espero visitar amanhã. Isso levou as autoridades a fazer a inscrição do mausoléu como candidato a reconhecimento da Unesco como patrimônio da humanidade, o que foi feito em 1999, mas sem sucesso até agora.

Seguimos por uma curta escadaria através de uma porta de madeira que já sugeria ser bem antiga, entrando em definitivo no terreno do mausoléu, de cara com o portal. O caubói foi na frente, aproveitando-se de que o local estava vazio para logo entrar e rezar, enquanto eu fiquei do lado de fora verificando os detalhes da fachada e fazendo amizade com o mulá, um senhor jovem e que pareceu extremamente feliz ao ouvir que eu era um visitante estrangeiro. A fachada inteira havia claramente passado por reconstruções, com partes em que, para garantir a preservação, acrescentou-se um reboco pintado de branco, cobrindo buracos nos painéis de terracota, riquíssimos em detalhes. A mistura da escrita árabe com galhos de plantas me fez lembrar dos três mausoléus kharakanidas de Özgön, cidade perto de Osh, no Quirguistão, que visitei em 2012. Em vários pontos, os azulejos azuis prestavam tributo aos timuridas. Particularmente interessante era o símbolo sobre o portal — um quadrado formado por linhas retas mais longas, algo com significado desconhecido para mim. No interior, a grandiosidade decorativa fora substituída pelo branco simples do reboco nos tetos e nas paredes, ainda circundando detalhes sobreviventes de grande beleza. Uma beleza ainda maior por ser apenas minha, do caubói e do mulá naquela tarde ensolarada.

O mulá nos ofereceu uma excursão detalhada pelo lugar, falando um russo rápido demais para minha completa compreensão. O que entendi foi a importância dada pelos sufis ao local, que se tornou um importante centro de peregrinação para eles nos anos pré-soviéticos. No mausoléu há um abrigo para os sufis, onde permaneciam por dias isolados em jornadas de olhos fechados em busca da comunhão com Deus. Os tempos soviéticos representaram um duro golpe contra o tradicional sufismo centro-asiático, os ascetas desaparecerem, e não apenas em Mazor-i-Sharif. A prática voltar a ter força em vários locais apenas após o fim do comunismo, quando as comunidades se lançaram em busca de suas identidades ancestrais visto que a soviética não se aplicava mais. Porém, esse renascimento não ocorreu de forma igual em todas as partes da Ásia Central. Ele foi mais forte no sul do Cazaquistão e na região de Bukhara, onde há ordens sufis com milhares de seguidores, que se reúnem para praticar seus rituais transcendentais.

Continuando, o mulá nos levou a uma estreita escada dentro da câmara principal do mausoléu, câmara essa usada como mesquita. A escada, bem ao lado da porta de entrada, subia e desembocava em uma sala minúscula, cujas paredes foram todas pintadas de branco. Não deve ter mais que dois metros quadrados. O local é como uma caverna; fresco, isolado da existência, inundado pelo silêncio absoluto. "Aqui os sufis vinham antigamente se retirar", explicou o mulá. "Passavam 40 dias rezando; apenas saíam para fazer suas necessidades. Praticamente não comiam. Eles vinham nos tempos antigos, antes da revolução comunista. Agora, praticamente não há mais sufis no Tajiquistão. Estão mais no sul, nas regiões das cidades de Kurgan Teppa e Kulob." Essas cidades ficam mesma região onde o grupo de ciclistas estrangeiros foi atacado em julho, o ataque sobre o qual falavam os estrangeiros na pousada onde passei a noite em Samarkand. Notei no mulá um certo tom de desprezo ao fazer o comentário, como se tivesse citado as cidades de propósito para indicar que sufis radicais islâmicos possam ter alguma relação com o ataque (na verdade, os radicais fundamentalistas, como os wahhabistas da Arábia Saudita, consideram os sufis usurpadores da religião).

Na mesma sala, encontrei um detalhe bastante inusitado. Em uma das paredes, vi marcada, quase invisível, uma Estrela de David. As linhas retas dos triângulos foram estragadas por riscos fortes sobre ela, sinal de vandalismo, mas sobreviveram. "Ah, isso", disse com um sorriso o mulá. "Não, este lugar nunca foi uma sinagoga. Há outros lugares por aí assim, lugares antigos que foram igrejas, sinagogas e mesquitas. A explicação aqui é simples: o arquiteto do mausoléu era judeu e quis deixar sua marca. Ele inclusive está enterrado aqui, logo aqui embaixo, nas tumbas ao lado da sala principal do mausoléu", explicou. A revelação, feita de forma tão leve, tão absolutamente banal, contrasta com a terrível animosidade que emana do Oriente Médio. Durante séculos, judeus, cristãos e muçulmanos viviam lado a lado em paz e harmonia. Cada um tinha um papel na sociedade, eram amigos, se ajudavam, trocavam conhecimento. Construíam os templos uns dos outros. Veio o convulso século XX, com a chaga do Islã Radical e a arrogância de certos sionistas, com os milhares de palestinos sem poder voltar para suas terras ancestrais. Tanto sangue derramado e dor, ressentimento infinito. Na Ásia Central, onde o Islã nasceu tolerante, sinto sempre os ecos nostálgicos dessa sinergia entre as comunidades. O mulá não mostra nenhum interesse em apagar a estrela, não mostra raiva, não mostra rancor. O símbolo está aqui, ele o mostra com orgulho: a Estrela de David, o sinal de um tempo em que as coisas eram mais simples. Pena que esse tempo passou; os riscos sobre a estrela dizem muito. Quase todos os judeus, temendo os vizinhos muçulmanos, deixaram a Ásia Central, onde eram numerosíssimos, e se assentaram em Israel. Lembro das visitas que fiz ao bairro de judeus de Bukhara, aos poucos que sobrevivem, que vão morrendo e, um dia, desaparecerão por completo. Enquanto isso, em Israel, a comunidade judaica de Bukhara e seus descendentes vai esquecendo suas orgulhosas raízes.

Descemos as escadas e encontramos os esqueletos dos sufis escondidos sobre o chão da câmara principal, a macabra coleção de ossos que o mulá fez questão de exibir. A cada passo do nosso recorrido pelo mausoléu, o prédio me parece maior e maior. Grande por dentro, tão pequeno por fora. E a cada passo, aumenta o tom de orgulho na voz do religioso.

O coração do mausoléu veio em outra sala — lá ficava a tumba de Muhammad Bashoro, que era um missionário da cidade iraquiana de Basra que teria vivido entre os séculos VII e VIII, logo nas primeiras décadas do Islã, e que teria ajudado na primeira onda de propagação da religião pela Ásia Central. Trata-se de um quarto estreito e largo onde jaz um caixão. Como na conhecida tumba do Profeta Daniel em Samarkand, o caixão é espantosamente imenso, com uns dez metros de comprimento. Acredita-se por aqui que santos continuam crescendo, mesmo após a morte. Este caixão é coberto por um tecido com estampa semelhante ao do carpete sobre nossos pés. A sala é bem iluminada por duas janelas. Ao lado de uma delas, na cabeceira do caixão, há duas inscrições na parede, escritas com pincel e tinta preta: à direita da janela, alguma frase em árabe e, à esquerda, uma enigmática flor. O miolo da flor é familiar: trata-se de um símbolo muito parecido com o do centro da bandeira do Irã, uma forma estilizada da palavra Alá. No caso, nenhuma relação com o Islã xiita iraniano, apenas o nome do Deus. Ainda assim, bastante incomum. Me entristeceu o estado de outras paredes, brancas e simples, cuja tinta está descascando. Disse o mulá que está tentando juntar o dinheiro necessário para uma reforma. Ele, porém, rapidamente mudou de assunto, destacando mais motivos para seu orgulho, mais detalhes originais da construção.

Comovido com o detalhado passeio e pelas explicações, ofereci ao mulá uma ajuda em dinheiro para a reforma. Ele nada havia me pedido, mas abriu um imenso sorriso ao aceitar minha oferta. E convidou: "Agora, vamos tomar chá?" Claro, respondi. Ele esfregou as mãos, ajeitou seu chapéu e nos conduziu para fora do mausoléu, para uma casa do outro lado do estacionamento inundado pela luz do sol.

Na casa, invadimos um banquete feminino. O numeroso grupo, de meninas de uns oito anos a avós de mais de 60, estava se esbaldando de conversar e comer. As mais idosas estavam todas sentadas ao redor da mesa baixa coberta de pedaços de melancia, uvas, chá, refrigerantes. Nos receberam com imensa alegria. "Sente-se, sente-se", me pediram, insistindo. "O que quer? Chá? Melancia?" Melancia é a escolha, claro.

Conversamos; o mulá desapareceu dentro da casa, enquanto que meu amigo caubói relaxava sob uma sombra, perto o suficiente para ouvir nosso diálogo, longe demais para participar. As mulheres me disseram não morar lá — haviam vindo passar o dia, relaxar com as crianças, após receberem um convite de uma parente do mulá, a dona da casa. Me esforcei para fazê-las rir, fazendo caretas para as crianças e falando um pouco das minhas aventuras, gerando infinitas perguntas. Notei a melhor definição do panorama linguístico da Ásia Central nos dez minutos em companhia daquelas senhoras. As mais velhas falavam russo bem e tinham que ficar traduzindo algumas de minhas frases para as mais novas, enquanto que uma menina, com seus 14 anos, se dirigiu a mim falando um inglês básico. "Converse com ela, queremos ver se ela fala mesmo", disseram as mulheres. A menina e eu ficamos meio tímidos, mas aceitamos. Perguntei se tinha alguma noção de russo. "Não, nada", explicou, "só os mais velhos sabem. É muito difícil". Esse pequeno diálogo desencadeou uma algazarra orgulhosa da mãe da menina e de suas amigas, todas falando em tajique. Na certa, falando sobre como a menina era esperta, falando essa língua tão estranha, o inglês.


* * *

O Tajiquistão é essencialmente um país de migrantes. A fuga deles para outros países começou logo após o fim da URSS com o estouro da guerra civil (1992-1997) e continuou após o fim do conflito, alimentada pela péssima economia, pela ditadura, pela falta de perspectivas.

De acordo com o Banco Mundial, em 2013, cerca de metade do PIB tajique vinha das remessas de dinheiro dos imigrantes. Com o colapso do rublo russo em 2014, a proporção de participação das remessas no PIB diminuiu (30% em 2018), mas concomitantemente veio um encolhimento da economia do país, o que demonstra claramente sua dependência dos russos. Por sua vez, Moscou se aproveita claramente desse fato. Os tajiques representam uma fonte farta de mão de obra barata nas grandes cidades russas; Qualquer tentativa do governo tajique de se desviar do roteiro geopolítico estabelecido por Moscou leva a medidas que prejudicam o fluxo migratório, restringindo a vinda dos tajiques à Rússia ou a permanência dos milhares de ilegais. É um dos mecanismos mais conhecidos do Kremlin para manter sua influência na região. A mesma estratégia é usada em países vizinhos do Tajiquistão, principalmente o Quirguistão.

Logo pude ver um pouco do lado humano do fenômeno migratório que tanto marca os tajiques.

De volta à vila à beira da estrada onde peguei a van para Mazor-i-Sharif, me despedi do meu companheiro caubói com muita alegria e saudade instantânea — a mesma sensação que já havia tido no mesmo dia tantas vezes, com GS, com Shackleton e o moleque, com o mulã, com as senhoras e suas melancias. O caubói me colocou num táxi compartilhado a caminho de Penjikent.

O motorista, um jovem muito falador, era o arquétipo do imigrante tajique. Com uns 30 anos, olhos que lhe atribuíam mais carga genética mongol ou chinesa que os demais companheiros da mesma idade no carro, explicou que acabara de voltar da Rússia, onde havia morado alguns anos, tentando economizar para se casar aqui na sua terra e ter uma vida melhor. Parecia muito amargo e até mesmo desesperado. Uma metralhadora de perguntas, em um russo ótimo, mas com um forte sotaque. "Me diga, como eu posso imigrar para a Inglaterra? Qual o salário médio por lá? É fácil conseguir o visto? É fácil imigrar? Certo, mas o que eu tenho que fazer para imigrar? Posso comprar uma casa lá com o salário que se ganha? A viagem é longa? É muito caro viajar para lá? O visto é caro?" Em determinado momento da viagem de meia hora, não apenas eu, mas todos no carro pareciam cansados de tantas questões sobre dinheiro e imigração, que eu me esforçava para responder da melhor maneira possível.

Por fim, o jovem transbordou em um resumo de sua vida atual. "Aqui nosso salário é baixo demais. É baixo demais! Não tem como ter uma boa vida. É claro, é melhor do que na Rússia porque este é o meu país, minha terra. Mas ganho só para viver, fazendo este trabalho, táxi, e o que puder. Ganhar só para viver é muito ruim. Eu quero sair. Eu tenho que sair. Não tenho outra escolha."

Lembrei do velhinho que me recebeu no primeiro dia em Penjikent mostrando, com orgulho, a foto do presidente.

Samarkand, 13/8, 10h

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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