Wednesday, 1 March 2023

Novas Fronteiras (VIII) - Nofin, Tajiquistão



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10/8/2018

Parecia a água do mar das ilhas gregas, turquesa, transparente, convidativa. Mas, aqui, sempre gelada.

Fiquei calculando o volume colossal dos montes de neve que cobrem no inverno as montanhas ao redor e que, durante a maior parte do ano, escorrem para alimentar os lagos, acariciados pela ocasional brisa álgida, mesmo agora no verão. Numa montanha ao lado, vi ainda resquícios do manto branco. A água do sétimo e último lago, diretamente à minha frente, deveria ser puro degelo. No entanto, meus novos companheiros de viagem estavam mergulhando nele, eufóricos, sem pestanejar, aparentemente imunes à temperatura.

Que lugar lindo.

Cheguei ao lago mais alto após uma caminhada de três horas e meia desde o feudo de GS. Pouco depois das 7h eu já tinha tomado o café, basicamente damascos secos e outras frutas. O sol dócil, ainda avermelhado, abraçava o lago mais próximo da pousada. Era uma grande piscina. O vento por aqui é frequentemente inexistente. E, nesses momentos, a superfície da água é um espelho perfeito, criando uma versão transdimensional do panorama. Vem a lembrança, constante, das ilhas gregas, onde o vento sim existe. Onde os turistas são abundantes, enquanto que aqui, nenhum apareceu para me acompanhar nos passos ascendentes pela estradinha de terra. A associação entre os dois lugares não é tão evidente, mas teima em ecoar. Por quê? Por causa da transparência e da cor da água, esse azul maravilhoso que varia dependendo do ângulo da luz.

Fui andando devagar com a mochila grande, e pesada, às costas. Tenho uma mochila menor que levo para os passeios, enquanto a grande cargueira geralmente fica de folga em hotéis e pousadas. Mas, hoje, eu não sabia onde iria passar a noite. Esperava que para cima existissem outras pousadas, perto dos lagos finais. Na verdade, nem sabia com certeza se existiam. Não era importante, eu dormiria onde fosse, à beira de um lago se precisasse.

No caminho, para variar, poucas árvores. Nas orelhas, abelhas rasantes e o canto de pássaros desconhecidos. Cruzei novamente com alguns moradores da região e suas cores berrantes, os seus sorrisos fáceis. Quietos, tímidos. Mulheres com roupas de lã com muito vermelho. Além delas, uma nova atração foi encontrar velhinhos com seus burros: lentamente, a besta vai arrastando o peso do ancião no lombo, enquanto que o velho, cruel e constantemente, vai dando fortes golpes no animal com uma vara curta. Na estradinha íngreme, de pedras soltas, na secura, é quase um milagre que o burro aguente a tortura. Encontrei, separadamente, dois velhinhos assim, carregados por burricos com o pelo embranquecido ao redor dos olhos e do focinho; provavelmente eram também anciões, convertendo seus anos para a idade dos burros. Um deles, coitado, com sangue saindo de uma das narinas, enquanto que o velhinho montado, relaxado, respirava o ar puro e me saudava com orgulho. Os dois anciões eram muito parecidos: com longas barbas brancas, fizeram questão de parar e me olhar, adoraram ser fotografados. Um quê de figuras folclóricas, de lendas locais. Os velhinhos dos burros, descendo das montanhas, passando por aventuras.

Lembrei de, talvez, a maior lenda do mundo túrquico, a de Hoja Nasreddin (também chamado de Naceradim Coja), um divertido velhinho que ia com seu burrico visitando cada canto entre a Anatólia e a Ásia Central por volta do século 13. Dizem que ele de fato existiu, mas é difícil saber onde começa e termina a verdade. Muitas anedotas, inicialmente passadas por via oral, são associadas a ele. Sua origem divide os povos: para os turcos atuais, ele nasceu e morreu na Turquia após muito viajar. Para os uzbeques, porém, ele nasceu em Bukhara e é conhecido também como Efendi. O que é inegável é que seu legado simbólico marca profundamente estas terras. Suas divertidas histórias canalizam ensinamentos profundos, associados ao sufismo e até mesmo à sabedoria pré-islâmica. Todos sabem quem é o Efendi no Uzbequistão; os pais e avós contam as histórias dele para filhos e netos. Tanto é o carinho por ele que há até uma estátua de Hoja Nasreddin erguida ao lado da piscina da Labi-Haus, em Bukhara, em um local em que ela está bem visível e onde sua lenda pode ser constantemente relembrada, especialmente quando as legiões de turistas perguntam aos locais quem é aquele sujeitinho eternizado no alto de seu burro. Eis então a desculpa perfeita para eles ouvirem histórias e mais histórias sobre ele, histórias de humor, boa educação, sabedoria e astúcia.

Uma delas: certa vez, o Efendi estava no mercado vendendo mel. Um homem, mal-intencionado, quis testar o quando o velhinho era esperto. Se aproximou e pediu um pouco de mel. Enquanto Hoja Nasreddin pesava o produto, o homem disparou um monte de perguntas para distrair o velhinho. Quando finalmente o Efendi lhe entregou o pote com o mel, o homem lhe disse: "Eu já lhe dei o dinheiro, enquanto conversávamos!". Então o velhinho pegou o pote, devolveu todo o mel para o pote maior onde guardava todo o resto, limpou o pote menor e o deu para o homem, que não entendeu nada. "Então... Eu acho que você comeu todo o mel enquanto conversávamos..."

Em outra ocasião, Hoja Nasreddin estava voltando do mercado e encontrou no chão um saco cheio de dinheiro. Mostrando o saco para todos ao redor, ele perguntou: "Quem perdeu este saco de dinheiro?" Um homem claramente pobre viu e respondeu: "O dinheiro é meu!" Depois, um outro homem, claramente rico, bem vestido, respondeu: "Não, o saco é meu". O Efendi olhou para o homem rico. "Tem certeza que este saco é seu?". "Sim, sim!" disse o homem rico, com um sorriso no rosto. Então, Hoja Nasreddin esvaziou o saco, deu ao homem pobre o dinheiro e o saco ao homem rico.

Mais uma: Hoja Nasreddin descansava no campo embaixo de uma nogueira. Ao seu lado, no chão, enquanto relaxava, notou um pé de abóbora com lindos frutos, grandes, cheios, carnudos. Mas lhe chamou a atenção como a planta, em si, era frágil, com seu caule retorcido e fino, espalhado pelo solo, sem forças para se erguer. Então, olhou para cima. A nogueira estava carregada. A árvore forte e alta estava cheia dos frutinhos desproporcionalmente pequenos para tal colosso vegetal. "Quão estranha é a mãe natureza", pensou o Efendi, "faz grandes abóboras crescerem em uma planta rastejante, tão frágil, e faz pequenas nozes crescerem em uma planta tão forte e impressionante". Nesse momento, uma noz se desprendeu do alto da árvore e caiu na cabeça de Hoja Nasreddin. Enquanto alisava o local do impacto para aliviar a dor, ele olhou de novo para as grandes abóboras. "Ah", disse então, sorrindo. "Mãe natureza, como você é sábia!".

Bom, não existem pés de jaca na Ásia Central...

Há muitas outras histórias, e esses contos são ouvidos em muitos países, mesmo na Europa em locais que não têm mais hoje uma maioria muçulmana, mas estiveram no passado entre os domínios otomanos. Frequentemente, as histórias também são mudadas, às vezes incluindo elementos religiosos, às vezes sendo modernizadas. O velhinho pode ser um vendedor de artigos eletrônicos, por exemplo. Mas, por aqui, os Efendis das montanhas do Tajiquistão estão longe de querer atualizar a lenda. Apenas passam, com um sorrisinho de quem tem muito para falar, mas não vai falar, porque, afinal, em boca fechada não entra mosca... Param, olham, se deixam fotografar e lá se vão sei lá para onde.

Continuei subindo à beira dos lagos.

Encontrei a seguir umas casas da vila de Marguzor, às margens do sexto lago. Um velho e um jovem descansavam em cadeiras ao lado de um varal envergado, contendo um pesada carga de acolchoados coloridos, geralmente usados nas mesas-camas de chá como colchões. Estavam conversando com dois mochileiros como eu, um pai e o filho. Os forasteiros falavam em russo com algum sotaque que me pareceu alemão. Pediam orientação sobre como seguir para o sétimo lago, exatamente para onde eu ia. Os cumprimentei e imediatamente passamos a ser um único time.

O pai devia ter pouco mais de 50 anos. No rosto, barba branca rala, a pele excessivamente curtida pelo sol, enrugada, vermelha; levava uma bandana vermelha cobrindo a cabeça e a mochila, aparentemente pesadíssima, bem maior que a minha, indo da nuca às nádegas. Tipo calado, nada sorridente, compenetrado. Roupas que já haviam visto muita coisa, bermuda e camiseta, ambas com camuflagem militar. Olhar fixo. Tudo nele passava um ar de aventureiro experiente, de ser habituado aos domínios selvagens, de explorador do desconhecido, de destemido desbravador. Do tipo que era mais fácil encontrar quando os mapas ainda não eram tão completos. Ele me fez lembrar de Ernest Shackleton, de Roald Amundsen, ambos exploradores dos polos — homens que não se detiveram frente às mais rigorosas provas da meteorologia, do relevo, da natureza, do bom senso. Na minha cabeça, e reconheço que de forma um tanto aleatória, dei a ele o apelido de "Shackleton".

Seu filho, um garoto de uns 18 anos, quase sem barba, pele bem branca, um pouco vermelha na testa e nos braços, camiseta e boné aparentemente comprados especialmente para esta viagem. Era quem liderava a conversa com os locais. O menino estava claramente tendo muito prazer em ouvir e ser ouvido, em se mostrar um elemento essencial de sua miniexpedição à sombra de Shackleton. Sorriu imediatamente ao me ver e me ouvir, sem que eu fosse convidado, enfiando frases no meu russo limitado em sua conversa com o idoso morador de Marguzor. Na minha cabeça, o passei a chamá-lo apenas de "o moleque".

Logo entendi que, mais do que pedir informações sobre como chegar ao lago — o caminho parecia evidente, era só seguir a estrada — Shackleton e o moleque queriam combinar com o velho de deixar suas pesadas mochilas em algum local protegido em Marguzor enquanto seguiam, mais leves, para o sétimo lago. Conseguiram; o velho aceitou abrir as portas de um pequeno celeiro e lá ficou a carga. Seguimos pela estrada. O moleque parecia prestes a flutuar após se livrar dos quilos que envergavam suas costas.

O caminho do sexto lago para o sétimo era diferente dos anteriores. Havia campos gramados cercando o rio, e o aclive agora era bem suave. Nos campos desse trecho, havia rebanhos de cabras. Se até agora o cenário lembrava o Pamir, neste trecho me lembrou os Alpes. Havia uma serenidade diferente, uma sensação boa de estar menos enfrentando um desafio físico e logístico e mais simplesmente passeando ao léu. Certamente essa era a energia que vinha dos meus colegas de caminhada. Iniciei minha conversa com eles em inglês, com o moleque se mostrando muito falador, enquanto que Shackleton, meio distante, apenas sorria, confirmando com a cabeça tudo o que o filho falava. Julguei que era apenas tímido. O garoto logo revelou que eram tchecos e estavam passando 40 dias viajando sem parar, mas apenas no Tajiquistão. Fiquei muito curioso; afinal, 40 dias em toda a Ásia Central já seria um tempo razoável para exploração. Mas 40 dias apenas no Tajiquistão permitiriam, calculei eu, conhecer excepcionalmente bem até mesmo os cantos mais isolados do Pamir. Quis entender a decisão de eles se concentrarem no país e dirigi minha pergunta a Shackleton. O moleque então interveio: "Ele não fala inglês. Você pode tentar seu russo... ou espanhol".

— Espanhol? E nada de inglês? Você está brincando! Eu também falo espanhol!
— É verdade, ele fala. Mas aí temos um problema.
— Qual?
— Se conversar com ele em espanhol, eu não vou entender... eu não falo nada de espanhol!

Virei-me para Shackleton, que acordou, abrindo os olhos em espanto, quando eu lhe fiz uma pergunta em espanhol. Imenso sorriso. Havia aprendido espanhol na juventude, após ter morado na Espanha. As lembranças dos dias perdidos entre cervejas e mulheres no sol de Valência repentinamente o sequestraram e o trouxeram de volta ao cenário das montanhas Fan.

Enquanto o garoto seguia na frente, agora isolado, o pai gesticulava com seus espanholismos saudosos. Explicava que já havia explorado o Tajiquistão antes, mas quis trazer seu filho para conhecer. A decisão de passar 40 dias por aqui se devia à facilidade de conseguir o visto por um período mais longo e por ser barato. Logo confirmei a primeira impressão que ele havia me passado, de ser um aventureiro calejado e sem frescuras, adepto a longos períodos de privações e limitado (talvez por puro prazer) pelo orçamento.

— No Pamir passamos umas duas semanas.
— O que você fez por lá?
— Caminhamos.
— Caminhadas longas? Vocês tinham transporte?
— Não, no Pamir não tínhamos transporte.
— Então como se deslocaram? É uma região grande e é difícil se deslocar.
— Isso mesmo! E nós caminhamos!

Em resumo, haviam passado duas semanas atravessando o planalto e as montanhas do Pamir a pé, pedindo caronas, buscando acomodação nas aldeias ou acampando, cozinhando sua própria comida trazida nas mochilas. Num dos locais mais inóspitos da terra.

Vendo o moleque distante, me dirigi a ele em inglês e perguntei o que estava achando do Tajiquistão nesta sua primeira visita. Estava adorando, disse, tudo muito bonito. O pai estava criando um grande aventureiro, pensei, mas o menino ainda mantinha aquele ar virginal, de deslumbramento fácil, de descoberta constante. O que provavelmente tornava a experiência de viajar por aqui inesquecível para ele. Em seguida, vendo Shackleton se distanciando, fiz um gracejo em espanhol. Ele riu com um canto da boca, retribuiu com outro gracejo, ao qual o filho reagiu em tcheco, provavelmente me perguntando o que eu havia dito. E conversaram um pouco, e me distanciei. E assim fomos andando, subindo à beira do rio e das cabras pastando, ocupados em um surreal tangram linguístico: eu e Shackleton, falando apenas em espanhol; eu e o moleque, apenas em inglês; o pai e o filho, apenas em tcheco, e, com as pessoas que encontrávamos no caminho, todos nós falávamos apenas em russo, idioma em que nenhum de nós três tinha fluência suficiente a ponto de podermos usar confortavelmente como a língua franca do trio.

O bate-papo acelerou o tempo; o lago sete chegou sem avisar. Novamente, um local lindo, mas, diferentemente do que havia à beira dos outros, neste encontramos uma área com grama perfeita para camping (e, claro, para cabras). Quando chegamos, havia um carro estacionado ao lado de um grupo de uns dez turistas que pareciam (pelo que ouvimos à distância, em gritos alcoolizados) estar falando em russo. A maioria deles eram homens na faixa dos 30 anos, mas havia algumas poucas mulheres e velhos. A algazarra, claro, vinha dos homens jovens. Entre eles e nós, no meio do caminho à beira do lago, havia uma casa em construção, apenas com as paredes de tijolos cinzas e o teto. Tirei a mochila, encostando-a no lado de fora da estrutura. Shackleton e o moleque não perderam tempo nem precisaram conversar entre si. Ao chegar, simplesmente se despiram, jogando as roupas no gramado, ficando só de cuecas, e foram correndo para o lago. Quando estava quase com os pés na água, o moleque parou, olhou para trás e acenou para mim, me convidando a fazer o mesmo. Eu tinha outros planos. Tirei da mochila maçãs e um pão comprados em Penjikent e me sentei numa pedra para descansar e apreciar o cenário. O sol estava forte; apesar da ânsia dos meus amigos, não fazia calor, e o vento constante, mais presente que à beira dos outros lagos, deixava a ideia de sair da água após um mergulho pouco atraente para mim. A água era de um turquesa irreal. À direita, seguindo o corpo d'água em direção aos ruidosos vizinhos, o lago adentrava um vale, montanhas altas e peladas dos dois lados. Porém, não havia parecia haver mais aclives nem estrada. O vento vinha daquela direção, encanado pelos colossos de pedra.

Dez minutos se passaram, e o sol já estava torrando minha pele. Levantei-me para ir pegar o bloqueador solar na mochila. Me entristeci ao perceber, pelo chão, os resquícios desprezíveis da humanidade. Latas de cerveja, alguns restos de sacos plásticos, latas de comida enferrujadas. E, da casa em construção, percebi então que exalava um fedor característico de urina e fezes. Nisso, vi que pela estrada que chegamos vinha um outro carro. Mais visitantes. Um deles desceu do veículo antes mesmo dele parar completamente e correu em minha direção com as mãos na barriga. Tualet?, perguntou em russo, como se eu fosse o dono da casa em construção. Disse que não sabia se havia um banheiro por perto, mas que ele podia usar a casa... suando, talvez sem entender direito, voltou em direção ao carro que o trouxera. O turista foi a deixa perfeita para que eu saísse de lá, para continuar andando para fugir da algazarra, da bebedeira, da diarreia, da banalização. Nessa altura, Shackleton e o moleque já haviam saído da água, se vestido e se despedido de mim. Tinham sentido a mesma aversão que eu pelo menos uns dez minutos antes do turista me abordar com a dor de barriga. Haviam me indicado que iriam caminhar por uma trilha que seguia à beira do lago. Me arrependi de não ter ido com eles antes. Vesti minha carga e acelerei o passo para alcançá-los.

O caminho era deslumbrante. Os gritos dos turistas logo ficaram para trás, e ganhei como trilha sonora apenas o barulho do vento. Em trechos, a trilha estava literalmente a centímetros da água turquesa. Eu poderia simplesmente jogar a mochila de lado e mergulhar de cabeça, pois a profundidade parecia segura para um pulo mesmo a pouca distância da beira. Só algumas curvas e, então, não só os gritos, mas também a visão dos turistas, à distância, desapareceu completamente. Um ambiente de absoluta paz e isolamento. Sol, água, vento, as montanhas peladas e o eventual morador local conduzindo seu burrico carregado de feno, cruzando comigo, rumo a Marguzor.



Encontrei Shackleton e o moleque no que parecia ser o fim natural da trilha, o outro extremo do lago, meia hora depois. Era o ponto exato em que um rio desembocava no corpo d'água, formando um pequeno estuário de pedras. O moleque estava deitado, dormindo, sem camisa, totalmente exposto ao sol mais forte do dia até então, um clarão tão intenso que eu simplesmente não conseguia permanecer um segundo sem óculos escuros. Estava deitado em uma pedra maior entre as pedras do estuário, entre os caminhos que o rio usava para chegar ao lago. Sua pele branquela já estava avermelhada antes e dava sinais de enrubecer ainda mais agora, mas preferi pensar que era tolice minha e ele que estava bem protegido por um bloqueador solar poderoso. Shackleton havia saído para caminhar, na certa entediado após meros dez minutos de preguiça. O vi à distância e acenou para mim. Seguia o rio, que galgava umas colinas baixas para o que calculei ser o sul. Não seguia uma trilha, seguia seu instinto de aventura, apenas trepava nas pedras e avançava. No minuto seguinte após me saudar, desapareceu.

Cruzando o estuário, vi que uma trilha aparecia, marcada, provavelmente para dar a volta completa no lago. Mas, como o lago era imenso, calculei que demoraria muito mais para voltar por ela do que pelo mesmo caminho pelo que chegamos. Pensei se valeria a pena arriscar. De qualquer forma, não era o momento de pensar nisso. Decidi seguir, ao menos em parte, o exemplo de moleque. Deitei-me em uma pedra e fui tirar uma pestana. Mas com prudência: camisa de manga longa e calça, óculos escuro, chapéu e muito bloqueador nas partes expostas.

Acordei uma hora depois com o moleque (nessa altura, um pimentão), procurando o pai nas pedras a montante do rio. Shackleton apareceu do nada, nos reunimos e começamos o caminho de volta. Eles decidiram a rota por mim. Pretendiam voltar pela mesma trilha que tínhamos usado para vir, dada justamente a incerteza sobre a distância de seguir pela outra. Estava me afeiçoando a eles, queria caminhar e conversar. Shackleton estava exultante e me contaminava com sua empolgação. Elogiava a natureza, disse que teria seguido horas pelas pedras do rio, teria até acampado ou bivacado. Enquanto andávamos, olhávamos à nossa volta, quanta beleza para se explorar. Ficamos lembrando de nossas vidas urbanas e ao mesmo tempo mantínhamos os olhos nas montanhas e no lago. Risadas. Sonoras risadas. Pena que, da parte do moleque, elas logo se transformaram em gemidos. Nunca vi um sujeito tão queimado de sol em toda a minha vida.

Em Marguzor, meus companheiros pegaram suas mochilas cargueiras. A esta altura, eram umas 15h30. Pensei em passar a noite no povoado e no dia seguinte pegar a UAZ em sua viagem de volta a Penjikent, mas não encontrei nenhum tipo de hospedagem no povoado e ainda achei que era cedo demais para me recolher. Quis continuar caminhando. Meus amigos concordaram comigo, mas discordamos sobre até onde iríamos naquele mesmo dia. Eles queriam andar muito mais pela estrada, passar de Nofin e chegar até Shing. Achei um plano arriscado porque, obviamente, o tempo passava depressa e logo a noite estaria chegando, por volta das 18h. Após uns bons dez minutos de conversa, os convenci de que não era factível. Shackleton concordou, meio a contragosto, em dormir no sítio de GS. Era teimoso, mas também, e quiçá, principalmente, não queria gastar dinheiro. Disse a ele que talvez GS aceitasse cobrar um preço mais baixo para ele e o filho.

Encontramos a meio caminho entre Marguzor e Nofin o casal, americano e tailandesa, com quem eu havia jantado na noite anterior no sítio de GS. Iam no mesmo sentido que nós. Durante o dia não haviam sequer chegado ao lago sete, tinham acordado tarde e passado o dia não muito longe de Nofin. Percebi que não eram muito de explorar — ou seja, tinham um perfil diametralmente oposto ao de Shackleton. Como com o americano e a tailandesa só se podia falar em inglês, a partir de então Shackleton ficou completamente isolado. Eu, o moleque e o casal conversávamos trivialidades, enquanto ele seguia na frente, mochila imensa, braços cruzados, olhos constantemente no horizonte. Um transe. Uma ou duas vezes, me desvencilhei dos outros para lhe fazer companhia. Minhas trivialidades não arranharam seu semblante. Fechou-se e respondeu em grunhidos. Fui seu coadjuvante, com prazer, em seu silêncio, por uns bons minutos. Algo em mim estava em completa sintonia com aquele velho explorador. Ele me fez lembrar muito de meu irmão mais novo, sempre afeito, durante sua vida inteira, à exploração das montanhas, à contemplação dos horizontes. O silêncio foi quebrando quando descobri sua outra paixão, cerveja — novamente, outra paixão de meu irmão. "Quando voltar a Praga", disse ele em tom sonhador, sempre sem tirar os olhos das montanhas, "quero sair do aeroporto e parar em uma cervejaria que eu conheço que fica no caminho para a cidade. A cerveja lá é cara, mas, caramba, é boa demais! Adoro o Tajiquistão, mas aqui a cerveja é tão ruim..." Foi o primeiro momento desde que o conheci que ele mostrou saudade da vida normal. Solidarizei-me. Realmente, o Tajiquistão não é o local ideal para sair em busca de boas loiras geladas.

— Eu tenho que voltar logo para Praga — disse Shackleton após um silêncio de uns dois minutos.
— Por causa da cerveja?
— Sim, claro. Mas tem outro motivo. Minha carreira.
— O que você faz?
— Sou violinista. Da Filarmônica de Praga.
— Uau! — vibrei com absoluta sinceridade — É uma tremenda orquestra, conhecida em todo o mundo!

Shackleton sorriu e, num raro momento, olhou para mim, sem falar nada. O perfeito semblante de orgulho.

— Mas uma pergunta. Noto que você está sem seu instrumento na mochila. Após ficar uns 40 anos isolado na Ásia Central, só caminhando, sem praticar, como ficam seus dedos? Não vai ser difícil quando você voltar?
— SIM! — deu uma risada deliciosa — Nossa, vai ser MUITO difícil! Mas eu não quero nem pensar nisso agora!

Minha visão de Shackleton mudou novamente. Agora, nos momentos de silêncio, já no crepúsculo, não mais o imaginava sendo absorvido de corpo e alma pela natureza muda, pelas belezas das montanhas Fan, pelos lagos nas sombras longas dos gigantes de pedra. Eu passei a imaginar que, em sua cabeça, o silêncio não existia. Caminhando contemplativo, ele era o palco, em seu íntimo, de execuções sublimes de peças de Dvořák. Ele era a personificação das notas afinadas, dos grandes hinos eruditos da Morávia e da Boêmia. A personificação das claves do sol e do turbilhão de notas prestíssimas de um supremo violino, liderando o exército musical no Rudolfinum de Praga, à beira do Rio Moldava, à sombra das estátuas da ponte Carlos. Você pode tentar tirar férias da música, mas ela não tira férias de sua cabeça. A introspecção de Shackleton passou a fazer ainda mais sentido.

Chegamos ao mundo de GS em quase completa escuridão. "Claro que temos uma cama para você", recebeu-me novamente de braços abertos o anfitrião, com seu carinho paternal. Ele se espantou com Shackleton, que deu um show particular antes mesmo de se apresentar a GS. Seu cantil havia secado horas antes. Estava com tanta sede que, ao ver no chão a água abundante que saía de um cano para alagar o jardim de flores e frutas do sítio, fez uma concha com as mãos e já ia beber. Foi parado imediatamente pelo moleque e pelo próprio GS. "Não faça isso", advertiu o dono da pousada, apontando para a origem da água, um charco cheio de vacas, cabras e estrume numa área alta do terreno. Ainda assim, meu amigo insistiu que não se importava e só com muita insistência do filho desistiu de beber a água imunda.

Trocamos de roupa e fomos todos para a janta. Água pura e mesa farta. Plov, o arroz à moda uzbeque. Frutas com um sabor inesquecível: damascos doces a ponto de parecer que alguém havia injetado açúcar neles. Melancias, de novo, sempre.

Olhei para Shackleton. Havia comido mais rapidamente que todos nós, se lambuzado como eu, e agora estava calado. Olhando para o nada, para o escuro. Com uma sinfonia na cabeça. Quem sabe, agora, uma sinfonia tajique.

Penjikent, 11/8, 20h41

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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.

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1 comment:

  1. Um pouco distante das terras (águas) de Shakleton... Belas paisagens remotas!

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