21 e 22/4
Voltei à região do bazar para dar uma nova olhada na mesquita central, com sua grande cúpula dourada. Ela foi construída em 1999 no lugar de uma antiga mesquita, do final do século XIX. Tão nova e brilhante, com seu mármore branco, me parece ainda um objeto meio estranho em meio à paisagem bagunçada do bazar. Como se ainda estivesse tentando se adaptar ao seu ambiente.
O Islã chegou tarde aos Cazaquistão e sofreu transformações, se misturando às tradições locais dos pastores, dos mongóis. Xamanismo. Animismo.Apenas nos oásis do sul, onde se fixou uma população sedentária, o Islã surgiu com maior firmeza. Aí se construíram madrassas, se construíram mesquitas. Bukhara, no Uzbequistão, foi durante séculos um dos maiores centros do Islã no mundo. Mas nas estepes mais para o norte, entre os cazaques e seu estilo de vida tradicionamente nômade, foram os sufis os grandes responsáveis por espalhar o Islã.
The only real contact that most Kazakhs had with Islam seems to have been through Sufi Holy Men who travelled the steppes (...) Eighteenth-century observers note the complete absence of Mosques and Madrassas in the Steppes, while those in Semirech’e (sudeste do Cazaquistão) and southern Kazakhstan do not seem to have been rebuilt after the Mongol devastation of the cities.
- Martha Olcott, The Kazakhs
O sufismo é o lado espiritual do Islã, um caminho pelo qual o fiel busca uma relação mais direta e íntima com Alá. Na Ásia Central, os sufis absorveram essas tradições locais. Há um sincretismo. O profeta caminha de forma diferente.
Tudo isso precisa ser visto sob a sombra de décadas de comunismo, quando a religião era no melhor dos casos tolerada, quando não reprimida. E em cidades russificadas como Almaty, essa herança de a religião não ser tão forte, tão importante, é mais presente. Ainda que a independência tinha jogado os cidadãos em uma jornada em busca de sua identidade mais profunda, aqui e em toda a ex-União Soviética. Ainda que digam que por aqui, em algum lugar, já há radicais islâmicos para os quais o sufismo tradicional daqui é uma completa heresia.
Entrando na mesquita a vejo de novo quase vazia, desta vez às seis da tarde de uma sexta-feira de forte calor. Os que estão aqui são jovens, em sua maioria. Um grupo jaz alinhado, um rapaz ao lado do outro, à minha frente. À frente deles, o que parece ser o líder do grupo, outro jovem, mais perto do mihrab (o local que indica a direção de Meca na mesquita). Outros chegam e se alinham ao lado dos que já estavam lá. Embora o salão seja bem espaçoso, os que aparecem preferem ficar juntos com os que lá já estão. Duvido que se conheçam. O clima é de tranquilidade, veneração, o silêncio faz bem à cabeça. O Islã é paz. Incrível que tantas guerras sejam travadas em torno dele.
Saio. O sol começa a enfraquecer, em tons dourados. Uma rua lateral está ocupada por vendedores de Corões, de colares usados para contar preces. Meio escondido em um corredor, embaixo de um prédio, encontro um vendedor de chapéus. Encontro um incomum, circular, como uma barraca com teto cônico, mas não muito alto, quase que apenas cobrindo o alto da cabeça.Veludo preto, bordado em motivos azuis e brancos. Compro dois, um para mim, um para um amigo. O vendedor queria 2 mil tenge (cerca de R$ 30) por cada um. Barganho e ele reduz para 1,5 mil, ainda salgado. Cansa negociar toda hora, ainda mais sem saber a língua local. E acho que o vendedor, simpático, merece um lucrozinho.
No bazar, a fascinação das cores. Mas eu encontro poucos homens usando o chapéu cônico que comprei. Não é como no Uzbequistão, onde quase todos os homens usam o chapéu Doppe, preto e com base quadrada. Vejo os cazaques usando o acessório só mais perto da mesquita. As mulheres, por outro lado, usam frequentemente o véu cobrindo o cabelo no mercado. Algumas inclusive cobrem também o pescoço, mas não usam aquele véu cobrindo todo o rosto, muito menos burcas. Essas mulheres com o pescoço escondido provavelmente vêm do interior, mais conservador. Aqui, ficam misturadas com adolescentes de minissaias e suculentos decotes.
Em um canto, ouço em um alto-falante uma música tradicional em cazaque com os acordes de dombra. Em outro canto, de novo, o Michel Teló. Caminho mais. Volto ao parque da catedral daAscenção e suas cores, cercada de russos. Cruzo a Tole Bi, miro as montanhas. Aqui, na Ablai Khan, estou em alguma avenida chique de alguma cidade europeia. Sento num café, peço um café com leite. Passam pela rua ao lado as Mercedes. Ao lado, uma casa de chá estilo francês. Não longe da vista, um restaurante italiano. Todos vestindo jeans, camisetas, tênis, maquiagem, blazers. Uso meu celular para usar a rede wi-fi. Falo com o Brasil pelo Skype.
***
À noite, com meus colegas, mais cerveja. Os cazaques, ao que parece, gostam de cerveja de trigo, esbranquiçada, gelada. Tem uma aqui que amei. Chama-se Urso Branco. Para ser tomada em generosas canecas.
Rimos bem alto quando chegou à mesa a Urso Branco que uma colega tinha pedido. A caneca chega à mesa com um canudo plástico. Cerveja com canudo? Gargalhadas, fotos. Sim, explica a garçonete. Assim, apenas para as mulheres. Por quê? Aqui não é hábito as mulheres tomarem cerveja como os homens, com a brutalidade de tocar com os lábios o vidro frio. O canudo resolve isso e permite sorver o néctar mais devagar. É isso que a garçonete explica. A isso, adiciono – é também mais sexy, não? Mas não creio que as cazaques tomem cerveja pensando que isso as deixa mais atraentes.
Terminada a cerveja, mais um choque cultural. A caminho do alojamento, entro em uma loja. Queria comprar uns doces e um salgadinho para comer no dia seguinte no café da manhã. A loja parece uma padaria – balcões de vidro, produtos nas paredes, atendentes atrás deles. Não há divisões – há os atendentes, os balcões, e os caixas, dois deles, em locais diferentes do salão, no centro do qual há prateleiras com salgadinhos e doces.
A unidade da loja, porém, é uma tola ilusão, logo descubro. Simples assim – quer comprar doces? Pague no caixa da mulher ali, que é dona deste balcão e destes doces. Quer salgados? Pague para a outra dona, no caixa do outro lado, que é a responsável pelos salgados nesta prateleira aqui. Demoro para entender que são pequenos empresários trabalhando no mesmo espaço, mas separadamente. Eu, como estrangeiro e alheio a isso, pego tudo o que quero e vou para um dos caixas. A mulher dos doces me recebe e fala, fala de novo, grita, que eu devo pagar os salgados primeiro no outro balcão. Claro que não entendo nada. Digo só que quero pagar. Ela grita mais alto (para tantos, um estrangeiro que não sabe falar a língua é basicamente uma pessoa surda, então imaginam que elevando a voz vamos entender tudo direitinho). Passam-se cinco minutos de stress. Com muito esforço, finalmente entendo a complicação. Mais uma para lembrar no futuro.
***
Há uma semana atrás parte do nosso grupo da Inglaterra fez uma excursão de um dia a um canyon não muito longe de Almaty. Não fui. Depois, me mostraram empolgados as fotos. Realmente, parecia um cenário de filme de bangue-bangue, algo saído de Utah ou do Arizona. Me falaram do calor, intenso, da caminhada de meia hora pelo desfiladeiro até chegara um rio. Um alívio em um deserto.
Na semana anterior, fomos, o grupo inteiro, ao Medeo e ao Shimbulak. No Shimbulak tudo branco – aquela neve toda, apesar do calorão na cidade.
Hoje, embarquei sem meus colegas de universidade em um ônibus para um excursão de um dia, na qual visitei um bonito lago de montanha e uma cachoeira em reservas florestais a oeste da cidade, rumo à China. Ao redor do lago e da cachoeira, um cenário deslumbrante – lindas montanhas, lindos vales. Pinheiros nas encostas. Nas montanhas mais altas, à distância, ainda neve nos cumes. Ao meu redor, árvores e arbustos com flores e pássaros desconhecidos fazendo algazarra. A exuberância da primavera num cenário de montanhas boreais.
O lago, Yssik (fácil de confundir com o gigante Issyk Kul, no Quirguistão), é verde-esmeralda, alimentado pela água do degelo dos picos, que vem ziguezagueando encosta abaixo. Às margens dele, famílias se reúnem para preguiçosos piqueniques de domingo. Fiquei hipnotizado pelo verde da água e pela pureza da neve à distância, refletindo com intensidade o clarão do sol. De camiseta apenas, fiquei um pouco arrepiado com o frescor, nada mal, depois de dias e dias derretendo em Almaty.
Resumindo – perto da cidade, enfim, há uma incrível variedade de passeios. Deserto, estação de esqui, montanhas nevadas como as das Rochosas canadenses ou dos Alpes europeus. Mas a natureza é apenas uma das atrações. Não longe e lá mesmo em Almaty, belíssimas construções islâmicas, ruinas arqueológicas milenares, sólidas edificações czaristas e soviéticas, lojas que em nada perdem às de Nova York ou Paris.
Mas o melhor são as pessoas, as personalidades deste povo. Na escursão ao Yssik, criei um carinho silencioso pelo motorista – uma cópia xerox do Lee Van Cleef, caladão, bigodão, sempre fumando, com sua calça e camisa sociais surradas, sujo de poeira, emporcalhado de suor, nunca sorrindo. A guia da escursão – uma gordinha com os olhos meio puxados, uns 50 anos, um penteado surreal com coque mal feito e imenso no cabelo negro como a graúna, excesso absurdo de maquiagem sufocando a pele do rosto, incluindo um delineador como a moldura de um quadro ao redor dos olhos azuis. Oratória perfeita; conhecimento enciclopédico da região. Séria, como Lee Van Cleef. Risadas, jamais. Não perguntei seu nome. Algo bem russo, aposto, nada cazaque, ela deve ter sido filha e neta de exemplares leninistas. Svetlana? Yevgênia?
Os passageiros mais curiosos: um sujeito vestindo um uniforme militar completo, de camuflagem verde, mas com a camisa com os botões abertos, mostrando a camiseta cinza por baixo e o barrigão de grávido de nove meses. Na cabeça, um boné militar com a foice e o martelo na testa. E o brasileiro aqui, um ser exótico sem dúvida, sem entender o turbilhão de palavras da prolixa guia, sem perturbar o silêncio de Lee Van Cleef, sem perguntar ao barrigudo de uniforme militar se era mesmo militar ou apenas fã do Exército Vermelho. E admirando este planeta várias órbitas distantes do meu mundinho da zona sul paulistana.
Na volta para Almaty, o lusco-fusco noturno. Em cada vilarejo que encontramos no caminho, pobreza, mas não miséria. Não há favelas, não há vacas esqualidas e crianças e velhos pedindo esmola. Há casinhas simples e moleques curiosos, com rostos redondos, acenando para o ônibus. Vacas em bandos, gordinhas, sendo tocadas por um pasto preguiçoso. Mais para a frente, outro vilarejo, outro rebanho, desta vez de ovelhas. Na estrada, lá se vão um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito outdoors com imagens de Nazarbayev sorrindo, jovial, ou em poses sérias, oficiais.
Na Tole Bi, pego o ônibus 16. O cobrador repete o mantra de todo dia, para todos ouvirem – priama pa Tole Bi (direto pela Tole Bi) – aos potenciais passageiros em cada ponto no caminho. O coletivo não enche. A passageira ao lado, no celular, repete, duas vezes, au?. “O quê?”, em cazaque. Por aqui, todos os cães são meio surdos, pelo jeito.
Dou uma risada solitária. Quem aqui, a não ser eu, poderia entender essa piada?
Me despeço. Volto em setembro, Almaty.
Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Sunday, 24 November 2013
Saturday, 16 November 2013
Diário de Almaty (VII)
17/4/2012
Medeo e Shimbulak são dois lugares que qualquer turista que ambiciona conhecer bem Almaty precisa visitar. Quantas vezes professoras na KBTU me perguntaram – você já foi ao Medeo? Como não? Quando você vai? E nas aulas de cazaque, nos últimos meses, aprendendo noções básicas da língua com frases se referindo aos dois locais: eu vou ao Shimbulak. Eu estou no Medeo.
As duas professorinhas da universidade novamente foram nossas anfitriãs. Embarcamos no ônibus número seis, tarifa de 70 tenge (cerca de R$ 1), rumo ao coração das montanhas ao sul da cidade.Os ouvidos foram pipocando nas curvas ascendentes. As árvores vão se tornando mais frequentes ao redor, o sol, mais brilhante e menos carrasco, as cores, mais intensas. E então, de repente, o ponto final: um imenso rinque de patinação no gelo em um estádio decorado com estátuas soviéticas. Ao redor, as colinas cobertas de pinheiros. Tudo com aquele ar puro, gelado, que desce num sutil incômodo, a 1.691 metros de altitude.
O complexo impressiona. Construído por Stalin entre 1949 e 1951, o rinque de gelo de 10,5 mil metros quadrados é o mais alto do mundo. Foi palco de vários recordes mundiais de patinação de velocidade. As estátuas dos patinadores, na fachada do estádio em que fica o rinque – corpos flexionados na posição típica dos patinadores de velocidade, suas formas estilizadas, fortes, velozes, típicas soviéticas.
Pena que o lugar estava fechado, às moscas. Ainda assim, tiramos fotos e mais fotos.
Lá perto, fica o ponto inicial dos teleféricos que galgam ainda mais fundo o Tian Shan, subindo, subindo, subindo até onde a neve cobre o chão, a 2,2 mil metros. Aí descemos, no Shimbulak, como se chama a estação de esqui. De lá, é possível pegar outro telefério e ir ainda mais alto, até 3,2 mil metros no perder de vista, quase no Quirguistão. Para depois descer tudo, deslizando pelo branco.
Brincamos na neve subindo uma encosta no Shimbulak. A temperatura estava ótima, uns doze graus, mas tanta neve não derrete fácil. Conversamos, respiramos fundo. Então fomos caminhar. Seguimos por uma estradinha à beira de um vale. Disseram que a estrada segue até o Quirguistão. Do outro lado do vale, as montanhas íngremes, com as árvores de natal, branquinhas. Quando voltamos ao Shimbulak depois da caminhada e pegamos o teleférico de volta ao Medeo já passava das 15h30. Retornamos à poeira de Almaty. Nos despedimos das professoras em frente à KBTU.
A., o jovem professor de inglês com quem simpatizei logo ao chegar à cidade, nos acompanhara no passeio e gostou da minha ideia de ir caminhando pela Tole Bi até o alojamento, uns três quilômetros. Disse que morava para aquelas bandas e perguntou se eu me importava de ter sua companhia. Baixinho, curioso, uma perfeita mescla de turco com chinês – os olhos meio puxados, mais forte do que um daqueles chineses mirrados que todos imaginam. Um inglês bom, como o meu, às vezes errando uma ou outra palavra, às vezes hesitante. Com o sol descendo no horizonte, conversamos muito. Sobre a história do Cazaquistão, desde o tempo de origem das hordas. Teorias da Conspiração envolvendo o 11 de Setembro. Depois pulamos para o meio ambiente. O uso de agrotóxicos, transgênicos e desastres ambientais na Ásia Central, especialmente o do Mar de Aral. A. ficou sério e triste ao falar da questão ambiental. Se disse muito preocupado. Digo a ele, claro, que deveria se mobilizar e procurar um partido para lutar pela causa.
Essa é a deixa para que ele me fale de sua frustração com o governo. “Há muita corrupção disseminada. Temos que pagar propinas para policiais para que eles nos deixem em paz.”Sugiro que o governo se beneficia em manter a sociedade “congelada”, acreditando que esse é o estado natural das coisas – o estado em que as autoridades podem fazer o que bem entender e todos tem que abaixar a cabeça. O estado em que a corrupção cotidiana é um fato natural, tão natural como a eternidade do presidente no poder. Mas, como contraponto, lembro a A. como este país é jovem, a relativa liberdade e o conforto de muitos em Almaty nem em sonho faziam parte da vida das pessoas nos tempos soviéticos por aqui.
- Você acha que você tem um bom presidente? – pergunto a ele, casualmente.
- Talvez... 60% bom.
- 60%? Caramba, é uma boa marca.
- 65%...
- 65%? Talvez 70%? - , provoco.
- É! Isso! 70%!
O presidente “70% bom”, segundo A., é cercado por pessoas com más intenções. “Eles são os corruptos”, diz o professor. “Eles têm que sair.” Instantaneamente, lembro de Lula e do Mensalão.
Ainda falando sobre corrupção institucionalizada e inércia, digo a A. que percebo que há muitas pessoas com ambição aqui, querendo se educar, ir além. Com certeza isso só pode ser bom? “Sim”, responde ele, com um certo ceticismo. “Hoje há muitas escolas ruins. Professores ruins.” Não sei se é verdade. Mas meu amigo é professor e é daqui. Deve saber o que está falando.
Nos despedimos, vou para o alojamento, ele, para a mesquita, para uma breve oração antes de ir para casa. Isso também era complicado de fazer nos tempos soviéticos. Mas a fé vem de antes do comunismo, muito antes.
***
Vou jantar no refeitório do alojamento pensando em como o passado influencia o presente e vai influenciar o futuro deste país.
O refeitório: seis mesas cobertas com plásticos com motivos florais, um balcão com pessoas que não parecem ser muito cazaques – tom de pele mais claro, olhos mais puxados. Logo descubro. O refeitório é de uma família coreana, dessas que Stalin fez o favor de colocar por aqui. A menina no caixa é muito quietinha, magrinha, tímida, não me olha nos olhos. Tem uns 17 anos. Pergunto se ela fala coreano. Um pouco, bem pouco, responde, com uma risadinha. A mãe – uma senhora com passos firmes e braços fortes, corpulenta – traz em seus olhos uma pesada maquiagem, lápis delineador cor cinza, muito exagerado. Sorri e sem muita delicadeza encerra meu papo com a filha, me dando o prato de plov e perguntando se quero algo mais.
Saboreio o prato. Plov, um prato uzbeque, é um arroz frito com óleo de algodão com pedaços de carne de bode ou carneiro, uma bomba na minha barriga. A TV ecoa na parede à direita, mal sintonizada, falando em um russo rápido demais. Não entendo nada. Vejo pessoas feridas em algum acidente. E Nazarbayev em um longo e importante discurso.
Já no apartamento onde vivo com meus colegas –com três quartos e uma pequena cozinha, em um prédio novo, de uns dez andares –, para me ajudar na digestão do pesado jantar e na ausência de chá ou café, tomo uma xícara de água quente. Da sacada da cozinha observo em frente a movimentação dos jovens que também moram aqui, no meu edifício ou em outros vizinhos. Têm uns 17 anos. Vêm e vão caminhando em grupos ou duplas, de cá prá lá, pela rua de asfalto entre o prédio onde estou e uma casa térrea logo em frente. Não há carros – a área é cercada, isolada do trânsito. Há um portão que dá para rua, mas aqui dentro só há pedestres. Na maioria das noites, algum moleque violeiro aparece, senta-se em algum lugar e atrai as gatinhas. Árvores aqui e lá, tudo meio escuro. Me lembra muito um camping, como os campings na minha infância. Sempre tem alguém chegando ou saindo, um lugar fugaz, provisório. Termino a água, vou bater perna pelo complexo.
Por aqui, são no total seis prédios, alguns maiores, mais altos, como o meu. Os alunos, alguns, me comprimentam, e eu retribuo com um sorriso e um olá, mesmo sem termos a mínima ideia da identidade um do outro. Na saudação, os garotos me estendem suas mãos. O aperto de mão é assim, eles vêm com a mão direita e a esquerda e as duas agarram a minha mão direita. Param de andar para fazer isso. Alguns até se curvam um pouco. É um aperto de mão muito reverente. Me sinto um ancião.
Em um banquinho, um violeiro toca algumas músicas em cazaque entremeadas com algumas em inglês que não reconheço. Um pequeno grupo se forma ao redor. E eis que surgem duas meninas vestindo trajes típicos. São de um grupo folclórico da KBTU e chegaram agora do ensaio. Empunham cada uma sua dombra, um instrumento de cordas que, em diferentes variedades, existe em toda a Ásia Central e até na Sibéria. Se parece a um alaúde, mas com apenas duas cordas. Todos se calam, e as meninas começam. As cordas são entoadas rapidamente, como um cavaquinho, mas produzindo um som mágico, que evoca um local distante, alienígena, secreto. Distante, alienígena, secreto para mim. Tresmalho-me.
***
No sol mais carinhoso da manhãzinha fui dar um passeio aqui perto da residência dos estudantes. Ruas nunca antes exploradas. Um dos piores problemas de Almaty nesta época do ano, especialmente para os pedestres como eu,é essa poeira. Não imagino o que seja no auge do verão. A poeira te consome, toma teus pulmões, cobre sua pele e endurece seu cabelo. Você fica todo meio acinzentado. À beira das ruas, em toda a cidade, uma rede de sarjetas profundas foi construída há muitos anos. Me falaram que o objetivo era enchê-las de água, criando pequenos córregos por toda a parte. Além de matar a sede das árvores, isso ajudaria a eliminar esse pó maldito. Mas não vejo água nas sarjetas. Talvez no verão. Agora, são só depósitos de bitucas.
Após uma ou duas esquinas, encontro um via férrea, acompanhada por mato e galpões industriais, seguindo contra o Sol. Há várias pessoas andando nela, sabe-se lá para onde, parecem estar indo para o trabalho, pegando um atalho por aqui. Sigo. Me equilibrando pelos trilhos, me sinto um moleque indo para a escola.
Cinco minutos de caminhada. Do meu lado esquerdo, ultrapasso um galpão com aquele barulho repetitivo de máquinas produzindo alguma coisa. Mais sombra, mais árvores. Por toda parte, na via e no verde, plásticos, plásticos. Garrafas, potes usados e quebrados. Se este país tivesse dengue e chuva como o Brasil, com a água acumulada, seriam berços perfeitos para os mosquitos. Mas, chuva? Não choveu uma gota desde que cheguei.
Depois de muitos desvios, acabo caindo de novo na Tole Bi. Uma sede danada. Num boteco na esquina, lugar bem pequeno e frequentado por um bêbado sujo, vejo peixes defumados pendurados em cima do balcão. “Quer uma porção?”, pergunta o simpático dono do boteco com seu bigode. Agradeço e dispenso. O ambiente cheira a peixe. Minha mente me remete a algum bar a beira-mar, mesmo estando a milhares e milhares de quilômetros da costa mais próxima.
Sem a aventura do peixe seco, não dispenso uma experiência nova. Peço uma kvas. Esta era uma bebida muito popular na União Soviética – grandes barris em carroças eram encontrados nas ruas com facilidade, e o líquido era vendido rápido. Hoje, é difícil achar em Almaty. Me falaram que era fracamente alcoólico. Quando tomo o primeiro gole, concluo que não pode ter álcool – aliás, me convenço que tem gosto de guaraná. Bem doce. Guaraná! Guaraná! Não pode ser alcoólico isso. Bebo dois copos. Me deleito.
Enfim, acaba. Fico querendo mais.
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Medeo e Shimbulak são dois lugares que qualquer turista que ambiciona conhecer bem Almaty precisa visitar. Quantas vezes professoras na KBTU me perguntaram – você já foi ao Medeo? Como não? Quando você vai? E nas aulas de cazaque, nos últimos meses, aprendendo noções básicas da língua com frases se referindo aos dois locais: eu vou ao Shimbulak. Eu estou no Medeo.
As duas professorinhas da universidade novamente foram nossas anfitriãs. Embarcamos no ônibus número seis, tarifa de 70 tenge (cerca de R$ 1), rumo ao coração das montanhas ao sul da cidade.Os ouvidos foram pipocando nas curvas ascendentes. As árvores vão se tornando mais frequentes ao redor, o sol, mais brilhante e menos carrasco, as cores, mais intensas. E então, de repente, o ponto final: um imenso rinque de patinação no gelo em um estádio decorado com estátuas soviéticas. Ao redor, as colinas cobertas de pinheiros. Tudo com aquele ar puro, gelado, que desce num sutil incômodo, a 1.691 metros de altitude.
O complexo impressiona. Construído por Stalin entre 1949 e 1951, o rinque de gelo de 10,5 mil metros quadrados é o mais alto do mundo. Foi palco de vários recordes mundiais de patinação de velocidade. As estátuas dos patinadores, na fachada do estádio em que fica o rinque – corpos flexionados na posição típica dos patinadores de velocidade, suas formas estilizadas, fortes, velozes, típicas soviéticas.
Pena que o lugar estava fechado, às moscas. Ainda assim, tiramos fotos e mais fotos.
Lá perto, fica o ponto inicial dos teleféricos que galgam ainda mais fundo o Tian Shan, subindo, subindo, subindo até onde a neve cobre o chão, a 2,2 mil metros. Aí descemos, no Shimbulak, como se chama a estação de esqui. De lá, é possível pegar outro telefério e ir ainda mais alto, até 3,2 mil metros no perder de vista, quase no Quirguistão. Para depois descer tudo, deslizando pelo branco.
Brincamos na neve subindo uma encosta no Shimbulak. A temperatura estava ótima, uns doze graus, mas tanta neve não derrete fácil. Conversamos, respiramos fundo. Então fomos caminhar. Seguimos por uma estradinha à beira de um vale. Disseram que a estrada segue até o Quirguistão. Do outro lado do vale, as montanhas íngremes, com as árvores de natal, branquinhas. Quando voltamos ao Shimbulak depois da caminhada e pegamos o teleférico de volta ao Medeo já passava das 15h30. Retornamos à poeira de Almaty. Nos despedimos das professoras em frente à KBTU.
A., o jovem professor de inglês com quem simpatizei logo ao chegar à cidade, nos acompanhara no passeio e gostou da minha ideia de ir caminhando pela Tole Bi até o alojamento, uns três quilômetros. Disse que morava para aquelas bandas e perguntou se eu me importava de ter sua companhia. Baixinho, curioso, uma perfeita mescla de turco com chinês – os olhos meio puxados, mais forte do que um daqueles chineses mirrados que todos imaginam. Um inglês bom, como o meu, às vezes errando uma ou outra palavra, às vezes hesitante. Com o sol descendo no horizonte, conversamos muito. Sobre a história do Cazaquistão, desde o tempo de origem das hordas. Teorias da Conspiração envolvendo o 11 de Setembro. Depois pulamos para o meio ambiente. O uso de agrotóxicos, transgênicos e desastres ambientais na Ásia Central, especialmente o do Mar de Aral. A. ficou sério e triste ao falar da questão ambiental. Se disse muito preocupado. Digo a ele, claro, que deveria se mobilizar e procurar um partido para lutar pela causa.
Essa é a deixa para que ele me fale de sua frustração com o governo. “Há muita corrupção disseminada. Temos que pagar propinas para policiais para que eles nos deixem em paz.”Sugiro que o governo se beneficia em manter a sociedade “congelada”, acreditando que esse é o estado natural das coisas – o estado em que as autoridades podem fazer o que bem entender e todos tem que abaixar a cabeça. O estado em que a corrupção cotidiana é um fato natural, tão natural como a eternidade do presidente no poder. Mas, como contraponto, lembro a A. como este país é jovem, a relativa liberdade e o conforto de muitos em Almaty nem em sonho faziam parte da vida das pessoas nos tempos soviéticos por aqui.
- Você acha que você tem um bom presidente? – pergunto a ele, casualmente.
- Talvez... 60% bom.
- 60%? Caramba, é uma boa marca.
- 65%...
- 65%? Talvez 70%? - , provoco.
- É! Isso! 70%!
O presidente “70% bom”, segundo A., é cercado por pessoas com más intenções. “Eles são os corruptos”, diz o professor. “Eles têm que sair.” Instantaneamente, lembro de Lula e do Mensalão.
Ainda falando sobre corrupção institucionalizada e inércia, digo a A. que percebo que há muitas pessoas com ambição aqui, querendo se educar, ir além. Com certeza isso só pode ser bom? “Sim”, responde ele, com um certo ceticismo. “Hoje há muitas escolas ruins. Professores ruins.” Não sei se é verdade. Mas meu amigo é professor e é daqui. Deve saber o que está falando.
Nos despedimos, vou para o alojamento, ele, para a mesquita, para uma breve oração antes de ir para casa. Isso também era complicado de fazer nos tempos soviéticos. Mas a fé vem de antes do comunismo, muito antes.
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Vou jantar no refeitório do alojamento pensando em como o passado influencia o presente e vai influenciar o futuro deste país.
O refeitório: seis mesas cobertas com plásticos com motivos florais, um balcão com pessoas que não parecem ser muito cazaques – tom de pele mais claro, olhos mais puxados. Logo descubro. O refeitório é de uma família coreana, dessas que Stalin fez o favor de colocar por aqui. A menina no caixa é muito quietinha, magrinha, tímida, não me olha nos olhos. Tem uns 17 anos. Pergunto se ela fala coreano. Um pouco, bem pouco, responde, com uma risadinha. A mãe – uma senhora com passos firmes e braços fortes, corpulenta – traz em seus olhos uma pesada maquiagem, lápis delineador cor cinza, muito exagerado. Sorri e sem muita delicadeza encerra meu papo com a filha, me dando o prato de plov e perguntando se quero algo mais.
Saboreio o prato. Plov, um prato uzbeque, é um arroz frito com óleo de algodão com pedaços de carne de bode ou carneiro, uma bomba na minha barriga. A TV ecoa na parede à direita, mal sintonizada, falando em um russo rápido demais. Não entendo nada. Vejo pessoas feridas em algum acidente. E Nazarbayev em um longo e importante discurso.
Já no apartamento onde vivo com meus colegas –com três quartos e uma pequena cozinha, em um prédio novo, de uns dez andares –, para me ajudar na digestão do pesado jantar e na ausência de chá ou café, tomo uma xícara de água quente. Da sacada da cozinha observo em frente a movimentação dos jovens que também moram aqui, no meu edifício ou em outros vizinhos. Têm uns 17 anos. Vêm e vão caminhando em grupos ou duplas, de cá prá lá, pela rua de asfalto entre o prédio onde estou e uma casa térrea logo em frente. Não há carros – a área é cercada, isolada do trânsito. Há um portão que dá para rua, mas aqui dentro só há pedestres. Na maioria das noites, algum moleque violeiro aparece, senta-se em algum lugar e atrai as gatinhas. Árvores aqui e lá, tudo meio escuro. Me lembra muito um camping, como os campings na minha infância. Sempre tem alguém chegando ou saindo, um lugar fugaz, provisório. Termino a água, vou bater perna pelo complexo.
Por aqui, são no total seis prédios, alguns maiores, mais altos, como o meu. Os alunos, alguns, me comprimentam, e eu retribuo com um sorriso e um olá, mesmo sem termos a mínima ideia da identidade um do outro. Na saudação, os garotos me estendem suas mãos. O aperto de mão é assim, eles vêm com a mão direita e a esquerda e as duas agarram a minha mão direita. Param de andar para fazer isso. Alguns até se curvam um pouco. É um aperto de mão muito reverente. Me sinto um ancião.
Em um banquinho, um violeiro toca algumas músicas em cazaque entremeadas com algumas em inglês que não reconheço. Um pequeno grupo se forma ao redor. E eis que surgem duas meninas vestindo trajes típicos. São de um grupo folclórico da KBTU e chegaram agora do ensaio. Empunham cada uma sua dombra, um instrumento de cordas que, em diferentes variedades, existe em toda a Ásia Central e até na Sibéria. Se parece a um alaúde, mas com apenas duas cordas. Todos se calam, e as meninas começam. As cordas são entoadas rapidamente, como um cavaquinho, mas produzindo um som mágico, que evoca um local distante, alienígena, secreto. Distante, alienígena, secreto para mim. Tresmalho-me.
***
No sol mais carinhoso da manhãzinha fui dar um passeio aqui perto da residência dos estudantes. Ruas nunca antes exploradas. Um dos piores problemas de Almaty nesta época do ano, especialmente para os pedestres como eu,é essa poeira. Não imagino o que seja no auge do verão. A poeira te consome, toma teus pulmões, cobre sua pele e endurece seu cabelo. Você fica todo meio acinzentado. À beira das ruas, em toda a cidade, uma rede de sarjetas profundas foi construída há muitos anos. Me falaram que o objetivo era enchê-las de água, criando pequenos córregos por toda a parte. Além de matar a sede das árvores, isso ajudaria a eliminar esse pó maldito. Mas não vejo água nas sarjetas. Talvez no verão. Agora, são só depósitos de bitucas.
Após uma ou duas esquinas, encontro um via férrea, acompanhada por mato e galpões industriais, seguindo contra o Sol. Há várias pessoas andando nela, sabe-se lá para onde, parecem estar indo para o trabalho, pegando um atalho por aqui. Sigo. Me equilibrando pelos trilhos, me sinto um moleque indo para a escola.
Cinco minutos de caminhada. Do meu lado esquerdo, ultrapasso um galpão com aquele barulho repetitivo de máquinas produzindo alguma coisa. Mais sombra, mais árvores. Por toda parte, na via e no verde, plásticos, plásticos. Garrafas, potes usados e quebrados. Se este país tivesse dengue e chuva como o Brasil, com a água acumulada, seriam berços perfeitos para os mosquitos. Mas, chuva? Não choveu uma gota desde que cheguei.
Depois de muitos desvios, acabo caindo de novo na Tole Bi. Uma sede danada. Num boteco na esquina, lugar bem pequeno e frequentado por um bêbado sujo, vejo peixes defumados pendurados em cima do balcão. “Quer uma porção?”, pergunta o simpático dono do boteco com seu bigode. Agradeço e dispenso. O ambiente cheira a peixe. Minha mente me remete a algum bar a beira-mar, mesmo estando a milhares e milhares de quilômetros da costa mais próxima.
Sem a aventura do peixe seco, não dispenso uma experiência nova. Peço uma kvas. Esta era uma bebida muito popular na União Soviética – grandes barris em carroças eram encontrados nas ruas com facilidade, e o líquido era vendido rápido. Hoje, é difícil achar em Almaty. Me falaram que era fracamente alcoólico. Quando tomo o primeiro gole, concluo que não pode ter álcool – aliás, me convenço que tem gosto de guaraná. Bem doce. Guaraná! Guaraná! Não pode ser alcoólico isso. Bebo dois copos. Me deleito.
Enfim, acaba. Fico querendo mais.
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Sunday, 3 November 2013
Diário de Almaty (VI)
13 e 14/04/2012
“Você está aqui no Cazaquistão estudando a oposição no país. Então, gostaria que você contasse para nós: o que você acha da oposição no Cazaquistão?”
Me senti tremendamente tenso. Em mais uma sessão com estudantes na KBTU, vivi esta situação que me colocou contra a parede. Em frente a uns 30 universitários, a professora, uma senhorinha de uns 60 anos que mais parecia estar louca para ir para casa para assistir novela, simplesmente me pede que eu diga aos jovens que o universo perfeito deles tem problemas. Eu, um estrangeiro, que mal botei os pés neste país. Na frente deles, os filhos da elite, os bem criados, os abençoados do Cazaquistão, os que gastam milhares e milhares de tenge (a moeda local) dos pais em uma eleição para representante discente. Mas a riqueza da plateia não é exatamente o problema. Quem sou eu para falar do Cazaquistão para os cazaques? O problema é: quem sou eu para falar desta complexa sociedade, tão distante do mundo da minha São Paulo? Principalmente, quem sou eu para ensiná-los? Não quero ensiná-los, não quero influenciá-los, não quero sequer comentar qualquer coisa relacionada com política. Quero ser um observador imparcial. Mas a professora, que sei lá se tinha alguma ideia da saia justa em que me colocara, não me deu nenhuma escolha.
Me esquivei assim da armadilha por alguns minutos: disse que eu estava lá acima de tudo para ouvir, não para falar. E pedi que eles falassem primeiro. Que falassem sobre a oposição.
Como já havia ocorrido antes, de forma perfeitamente previsível, senti que a maior parte dos jovens na sala ficaram desconfortáveis com o tema. Mas, desta vez, conclui que não era por algum tipo de medo de tocar num assunto aparentemente proibido. Simplesmente os jovens não tinham nada para falar. Zero. Afinal, nasceram num país sem oposição, onde Nazarbayev há anos mantém um formidável controle sobre os atores do jogo político e, quando não mantém, os neutraliza com perícia. Nazarbayev foi o único presidente do Cazaquistão independente, desde o fim da URSS, em 1991. Esta política perfeita cobre como um manto perfeito, sem dobras ou manchas, as cabeças da criançada. Assim, ao responderem ao meu pedido, nenhum jovem adotou o discurso pró-democracia da cartilha ocidental. Ninguém defendeu a pluralidade política. Ninguém lamentou a onipotência do partido do presidente. Pelo contrário. Quem resumiu tudo foi de um garoto de uns 18 anos, cara de moleque de 13, sem sequer barba. “Nós não precisamos de oposição. Somos felizes assim”, proclamou com o peito estufado e olhar de desafio mirando meus olhos.
Todos miraram meus olhos.
Repito as frases dele em voz alta, medindo suas dimensões, cuidadosamente. Depois, com ainda mais cuidado, sem condenar nem elogiar o que o jovem disse, procuro enumerar os problemas que naturalmente surgem quando não há oposição. Ninguém fiscaliza as autoridades, elas fazem o que querem e podem cometer abusos. Se não cometem abusos, certamente cometem erros, pois erros são da natureza humana. E quem vai apontar os erros? Quem vai sugerir ideias alternativas, potencialmente melhores, para resolver os problemas do país? Se alguém está feliz, outros podem estar infelizes, e como ficam os infelizes? Quem dá voz a eles? O debate político permite a evolução, indica mudanças. Sem o debate, vive-se alienado, pensando que as coisas são como são porque têm que ser assim. Mas não têm que ser assim! As coisas podem ser diferentes! Enfim. Falei e repeti que a oposição é útil, pode e deve tornar a política melhor ao colocar em perspectiva o poder.
Mas... mesmo uma coisa que me parece tão óbvia, gerou mais silêncio, olhares se cruzando, rostos sérios. Para eles, eu não devo ser de outro país, devo ser de outro planeta, penso, quase dando uma risada.
Um aluno então rompe o silêncio. Me pergunta se eu não acho que a presença de uma oposição forte não traria instabilidade, guerra, violência. O famoso temor de instabilidade, tão bem usado pelos ditadores mundo afora como argumento-cassetete. Evidentemente, trata-se de uma lógica também muito aprofundada aqui – a de que a pluraridade de ideias e seu choque intelectual logo necessariamente se traduzem em choque físico, em carnificinas, no caos inimaginável. É o argumento mais manjado e paradoxalmente o mais eficiente – o argumento do medo. Digo ao garoto que não. Tento fazê-lo entender, fazê-los entender que essa ideia falaciosa favorece o governante que entretém a aspiração de se manter indefinidamente no poder. O medo é uma arma para manter o status quo. Tudo fica parado.
Quanto desconforto pode caber em uma só sala de aula? Queria muito sair correndo.
Mergulho em milissegundos de melancolia histórica. O Cazaquistão já teve forte, vibrante mobilização, vida política. Nos últimos suspiros do império do czar, em 1905, cazaques fundaram um partido nacionalista, o Alash Orda (“horda de Alash”, em referência ao lendário fundador da nação). Após a Revolução Russa, no caos da guerra civil, o partido formou em janeiro de 1918 o primeiro governo independente da história do Cazaquistão. Em 1919, o território seria conquistado pelos bolcheviques. Logo viriam os expurgos de Stalin, e os membros da Alash Orda, muitos deles teimosamente resistindo a medidas como a coletivização das fazendas, seriam eliminados. Milhares morreram. Nunca mais a política se recuperou por aqui.
Tento encerrar o assunto com os estudantes, com honestidade. Deixo claro que, independentemente do que penso, o país é deles. E isso eles precisam lembrar, precisam lembrar sempre – que o país não é só do presidente e de sua família. Se eles acham que está bem assim, do jeito que está, é prerrogativa deles. Espero que percebam além do que o universo da elite lhes diz todos os dias. Que há muito que está escondido. No final da aula, sinto, ainda que brevemente, que estão fazendo as pazes comigo. Não sei se é verdade.
***
Eldar é um desses promissores jovens de Almaty. Muito bem apessoado, uns 19 anos, me saúda vestindo um blazer negro de fino caimento, que eu diria ser italiano. Estudante de segundo ano de engenharia. Eu havia procurado na KBTU por estudantes que falassem inglês e russo para me ajudar nas entrevistas com políticos, para que os oposicionistas pudesses entender minhas perguntas em inglês e eu, suas respostas em russo. Eldar me procurou. “Tenho carro, isso vai ajudar”. E que carro, um Hyundai Tiburón, uma possante máquina esportiva. Embarquei com ele. A bordo do bólido, me senti na Ocean Drive, em Miami. Pena que logo a máquina parou de roncar, e toda aquela força no motor virou máquina de fumaça atrás de uns Ladas na rua Furmanov. De sonho em Miami, passei a pesadelo na Avenida Santo Amaro, de Sampa.
Falei a Eldar da dificuldade de encontrar contatos de partidos da oposição na internet. Era algo muito simples na minha cabeça – ora, é claro que eles querem ser contatados, para difundir suas ideias! Não será difícil encontrar um porta-voz! Quanta ingenuidade. Quanta dificuldade para encontrar um mero politicozinho. Há aqui partidos de oposição de fachada, que apoiam o governo, e os que de fato tentam se opor. O principal partido de oposição de verdade, legalizado, chama-se OSDP-Azat. Ele foi recentemente formado, uma fusão das duas agremiações que lhe dão nome. Os dois partidos até apresentaram candidatos na última eleição, há cartazes de propaganda eleitoral ainda na cidade, vi um na Tole Bi (e até tirei foto, emocionado). Mas, online, o site oficial está fora do ar. Navegando, achei em outra página três fones de contato – todos fora do ar – e um endereço em Almaty.
Fui até lá com Eldar. Encontro o seguinte: uma grande casa em obras. Nem os pedreiros estavam lá. Fiquei conversando com os tapumes ao redor da obra. Fiquei convencido que os líderes do partido não querem ser encontrados.
Intimidação do governo? É esse o motivo da reclusão eremita do tal partido, o mais destacado da oposição que não é de mentirinha? Me ocorre a paranoia de meu colega Michael - possivelmente há uma filtragem de meus emails em alguma agência secreta especializada em blindar a oposição ou estrangeiros xeretas. Ou não, há apenas uma pura e simples incapacidade dos senhores oposicionistas de lidar com emails, com internet, analfabetismo digital. Muitas teorias, mas, para o meu amigo Eldar e seu carrão, tudo muito simples. “Isso mostra a incompetência deles. Você deve falar na sua dissertação dos telefonemas que você deu, dos emails que mandou, e o que você conseguiu com isso.”
Tremendo tom de desprezo na voz. O pior é que fico louco de vontade de concordar com ele.
Mas encontramos oposicionistas. Depois de não conseguir contato por telefone ou email com o Partido Comunista do Cazaquistão, fomos, em pessoa, até o endereço que eu tinha de sua sede em Almaty. Procuramos e procuramos. Encontramos uma rua cheia de árvores e sombras, uma bênção no sol. Encontramos um corredor escuro, no segundo andar de um prédio velho. Batemos à porta.
Uma senhora com seus 45 ou 50 anos, com o cabelo arrumado com um coque estilo professora de matemática, magrinha, pergunta cordialmente o que queremos, sentada à sua mesa. Explicamos. Se levanta, firmemente aperta nossas mãos. Nos convida a entrar.
A sala tem uns 25 metros quadrados. Logo no lado oposto à porta, a mesa da senhora, nada menos que a secretária do partido que, um dia, foi todo o poder por aqui. A mesa com várias pequenas pilhas de papel e um telefone com teclas, provavelmente da primeira geração deles, quando ainda o mais comum eram aqueles discos que giravam. Atrás da mesa, atrás da cadeira simples de madeira da mulher, mirando-nos nos olhos, na parede, Lênin. Um retrato pendurado na parede. Atrás do retrato, tomando a maior parte da parede, uma imensa, uma gloriosa bandeira da União Soviética. Na parede ao lado, o desenho de outra bandeira soviética, igualmente triunfal, igualmente mais viva do que nunca, com a cabeça de Lênin na parte superior. Ouço o hino na minha cabeça.
Olho para as paredes, para a secretária. Voltei no tempo. Não pode ser sério.
Respiro fundo aquele ar com cheiro de papéis velhos. A mulher fala apenas em russo, e muito, e rápido. Muito atenciosa. Nos passa vários contatos de políticos do partido. Diz que a agremiação foi provisoriamente suspensa por seis meses, até o fim de abril, por ligações com um grupo ilegal de oposição. De acordo com a interpretação do meu tradutor, ela usa palavras imponentes e quase desabando de tanta carga histórica: “esforço”, “trabalhadores”, “burgueses”. Me comoveu. Uma coisa era ser comunista assim nos tempos soviéticos. Outra coisa é numa realidade embasbacada com o capitalismo como a de Almaty. Me comovi com sua paixão abnegada. Imagino a miséria que ganha de salário, se ganhar algo.
Nos despedimos com mais cordialidade. No corredor, me vem o jovem Eldar, desabafa: “que tédio, essa mulher”. A tradução dele foi péssima, ele sabe disso. Péssima porque o inglês dele é péssimo, e infelizmente só descobri na prática, na tradução. E péssima porque o garoto simplesmente estava com a cabeça flutuando, muito, muito longe das paixões perdidas no passado da secretária e sua sala de bandeiras vermelhas. Provavelmente pensando nas meninas em algum shopping center. Penso: com essa idade, uns 20 anos, eu também só pensava nisso. Não dá para condenar. Ele estava despreparado para o cardume de palavras, vorazes como piranhas, tentando almoçar seu cérebro. Saiu do rio. Mas eu estava despreparado também. Não esperava tanta resposta para tão poucas perguntas. O resultado, em suma: marcamos uma entrevista com o líder nacional do partido. Da próxima vez vai ser melhor, digo a Eldar. Melhor para ele e para mim.
Enquanto isso, aquele retrato de Lênin teima em não sair da minha cabeça. Ele mexe com minhas fantasias retrógradas, pós-soviéticas.
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“Você está aqui no Cazaquistão estudando a oposição no país. Então, gostaria que você contasse para nós: o que você acha da oposição no Cazaquistão?”
Me senti tremendamente tenso. Em mais uma sessão com estudantes na KBTU, vivi esta situação que me colocou contra a parede. Em frente a uns 30 universitários, a professora, uma senhorinha de uns 60 anos que mais parecia estar louca para ir para casa para assistir novela, simplesmente me pede que eu diga aos jovens que o universo perfeito deles tem problemas. Eu, um estrangeiro, que mal botei os pés neste país. Na frente deles, os filhos da elite, os bem criados, os abençoados do Cazaquistão, os que gastam milhares e milhares de tenge (a moeda local) dos pais em uma eleição para representante discente. Mas a riqueza da plateia não é exatamente o problema. Quem sou eu para falar do Cazaquistão para os cazaques? O problema é: quem sou eu para falar desta complexa sociedade, tão distante do mundo da minha São Paulo? Principalmente, quem sou eu para ensiná-los? Não quero ensiná-los, não quero influenciá-los, não quero sequer comentar qualquer coisa relacionada com política. Quero ser um observador imparcial. Mas a professora, que sei lá se tinha alguma ideia da saia justa em que me colocara, não me deu nenhuma escolha.
Me esquivei assim da armadilha por alguns minutos: disse que eu estava lá acima de tudo para ouvir, não para falar. E pedi que eles falassem primeiro. Que falassem sobre a oposição.
Como já havia ocorrido antes, de forma perfeitamente previsível, senti que a maior parte dos jovens na sala ficaram desconfortáveis com o tema. Mas, desta vez, conclui que não era por algum tipo de medo de tocar num assunto aparentemente proibido. Simplesmente os jovens não tinham nada para falar. Zero. Afinal, nasceram num país sem oposição, onde Nazarbayev há anos mantém um formidável controle sobre os atores do jogo político e, quando não mantém, os neutraliza com perícia. Nazarbayev foi o único presidente do Cazaquistão independente, desde o fim da URSS, em 1991. Esta política perfeita cobre como um manto perfeito, sem dobras ou manchas, as cabeças da criançada. Assim, ao responderem ao meu pedido, nenhum jovem adotou o discurso pró-democracia da cartilha ocidental. Ninguém defendeu a pluralidade política. Ninguém lamentou a onipotência do partido do presidente. Pelo contrário. Quem resumiu tudo foi de um garoto de uns 18 anos, cara de moleque de 13, sem sequer barba. “Nós não precisamos de oposição. Somos felizes assim”, proclamou com o peito estufado e olhar de desafio mirando meus olhos.
Todos miraram meus olhos.
Repito as frases dele em voz alta, medindo suas dimensões, cuidadosamente. Depois, com ainda mais cuidado, sem condenar nem elogiar o que o jovem disse, procuro enumerar os problemas que naturalmente surgem quando não há oposição. Ninguém fiscaliza as autoridades, elas fazem o que querem e podem cometer abusos. Se não cometem abusos, certamente cometem erros, pois erros são da natureza humana. E quem vai apontar os erros? Quem vai sugerir ideias alternativas, potencialmente melhores, para resolver os problemas do país? Se alguém está feliz, outros podem estar infelizes, e como ficam os infelizes? Quem dá voz a eles? O debate político permite a evolução, indica mudanças. Sem o debate, vive-se alienado, pensando que as coisas são como são porque têm que ser assim. Mas não têm que ser assim! As coisas podem ser diferentes! Enfim. Falei e repeti que a oposição é útil, pode e deve tornar a política melhor ao colocar em perspectiva o poder.
Mas... mesmo uma coisa que me parece tão óbvia, gerou mais silêncio, olhares se cruzando, rostos sérios. Para eles, eu não devo ser de outro país, devo ser de outro planeta, penso, quase dando uma risada.
Um aluno então rompe o silêncio. Me pergunta se eu não acho que a presença de uma oposição forte não traria instabilidade, guerra, violência. O famoso temor de instabilidade, tão bem usado pelos ditadores mundo afora como argumento-cassetete. Evidentemente, trata-se de uma lógica também muito aprofundada aqui – a de que a pluraridade de ideias e seu choque intelectual logo necessariamente se traduzem em choque físico, em carnificinas, no caos inimaginável. É o argumento mais manjado e paradoxalmente o mais eficiente – o argumento do medo. Digo ao garoto que não. Tento fazê-lo entender, fazê-los entender que essa ideia falaciosa favorece o governante que entretém a aspiração de se manter indefinidamente no poder. O medo é uma arma para manter o status quo. Tudo fica parado.
Quanto desconforto pode caber em uma só sala de aula? Queria muito sair correndo.
Mergulho em milissegundos de melancolia histórica. O Cazaquistão já teve forte, vibrante mobilização, vida política. Nos últimos suspiros do império do czar, em 1905, cazaques fundaram um partido nacionalista, o Alash Orda (“horda de Alash”, em referência ao lendário fundador da nação). Após a Revolução Russa, no caos da guerra civil, o partido formou em janeiro de 1918 o primeiro governo independente da história do Cazaquistão. Em 1919, o território seria conquistado pelos bolcheviques. Logo viriam os expurgos de Stalin, e os membros da Alash Orda, muitos deles teimosamente resistindo a medidas como a coletivização das fazendas, seriam eliminados. Milhares morreram. Nunca mais a política se recuperou por aqui.
Tento encerrar o assunto com os estudantes, com honestidade. Deixo claro que, independentemente do que penso, o país é deles. E isso eles precisam lembrar, precisam lembrar sempre – que o país não é só do presidente e de sua família. Se eles acham que está bem assim, do jeito que está, é prerrogativa deles. Espero que percebam além do que o universo da elite lhes diz todos os dias. Que há muito que está escondido. No final da aula, sinto, ainda que brevemente, que estão fazendo as pazes comigo. Não sei se é verdade.
***
Eldar é um desses promissores jovens de Almaty. Muito bem apessoado, uns 19 anos, me saúda vestindo um blazer negro de fino caimento, que eu diria ser italiano. Estudante de segundo ano de engenharia. Eu havia procurado na KBTU por estudantes que falassem inglês e russo para me ajudar nas entrevistas com políticos, para que os oposicionistas pudesses entender minhas perguntas em inglês e eu, suas respostas em russo. Eldar me procurou. “Tenho carro, isso vai ajudar”. E que carro, um Hyundai Tiburón, uma possante máquina esportiva. Embarquei com ele. A bordo do bólido, me senti na Ocean Drive, em Miami. Pena que logo a máquina parou de roncar, e toda aquela força no motor virou máquina de fumaça atrás de uns Ladas na rua Furmanov. De sonho em Miami, passei a pesadelo na Avenida Santo Amaro, de Sampa.
Falei a Eldar da dificuldade de encontrar contatos de partidos da oposição na internet. Era algo muito simples na minha cabeça – ora, é claro que eles querem ser contatados, para difundir suas ideias! Não será difícil encontrar um porta-voz! Quanta ingenuidade. Quanta dificuldade para encontrar um mero politicozinho. Há aqui partidos de oposição de fachada, que apoiam o governo, e os que de fato tentam se opor. O principal partido de oposição de verdade, legalizado, chama-se OSDP-Azat. Ele foi recentemente formado, uma fusão das duas agremiações que lhe dão nome. Os dois partidos até apresentaram candidatos na última eleição, há cartazes de propaganda eleitoral ainda na cidade, vi um na Tole Bi (e até tirei foto, emocionado). Mas, online, o site oficial está fora do ar. Navegando, achei em outra página três fones de contato – todos fora do ar – e um endereço em Almaty.
Fui até lá com Eldar. Encontro o seguinte: uma grande casa em obras. Nem os pedreiros estavam lá. Fiquei conversando com os tapumes ao redor da obra. Fiquei convencido que os líderes do partido não querem ser encontrados.
Intimidação do governo? É esse o motivo da reclusão eremita do tal partido, o mais destacado da oposição que não é de mentirinha? Me ocorre a paranoia de meu colega Michael - possivelmente há uma filtragem de meus emails em alguma agência secreta especializada em blindar a oposição ou estrangeiros xeretas. Ou não, há apenas uma pura e simples incapacidade dos senhores oposicionistas de lidar com emails, com internet, analfabetismo digital. Muitas teorias, mas, para o meu amigo Eldar e seu carrão, tudo muito simples. “Isso mostra a incompetência deles. Você deve falar na sua dissertação dos telefonemas que você deu, dos emails que mandou, e o que você conseguiu com isso.”
Tremendo tom de desprezo na voz. O pior é que fico louco de vontade de concordar com ele.
Mas encontramos oposicionistas. Depois de não conseguir contato por telefone ou email com o Partido Comunista do Cazaquistão, fomos, em pessoa, até o endereço que eu tinha de sua sede em Almaty. Procuramos e procuramos. Encontramos uma rua cheia de árvores e sombras, uma bênção no sol. Encontramos um corredor escuro, no segundo andar de um prédio velho. Batemos à porta.
Uma senhora com seus 45 ou 50 anos, com o cabelo arrumado com um coque estilo professora de matemática, magrinha, pergunta cordialmente o que queremos, sentada à sua mesa. Explicamos. Se levanta, firmemente aperta nossas mãos. Nos convida a entrar.
A sala tem uns 25 metros quadrados. Logo no lado oposto à porta, a mesa da senhora, nada menos que a secretária do partido que, um dia, foi todo o poder por aqui. A mesa com várias pequenas pilhas de papel e um telefone com teclas, provavelmente da primeira geração deles, quando ainda o mais comum eram aqueles discos que giravam. Atrás da mesa, atrás da cadeira simples de madeira da mulher, mirando-nos nos olhos, na parede, Lênin. Um retrato pendurado na parede. Atrás do retrato, tomando a maior parte da parede, uma imensa, uma gloriosa bandeira da União Soviética. Na parede ao lado, o desenho de outra bandeira soviética, igualmente triunfal, igualmente mais viva do que nunca, com a cabeça de Lênin na parte superior. Ouço o hino na minha cabeça.
Olho para as paredes, para a secretária. Voltei no tempo. Não pode ser sério.
Respiro fundo aquele ar com cheiro de papéis velhos. A mulher fala apenas em russo, e muito, e rápido. Muito atenciosa. Nos passa vários contatos de políticos do partido. Diz que a agremiação foi provisoriamente suspensa por seis meses, até o fim de abril, por ligações com um grupo ilegal de oposição. De acordo com a interpretação do meu tradutor, ela usa palavras imponentes e quase desabando de tanta carga histórica: “esforço”, “trabalhadores”, “burgueses”. Me comoveu. Uma coisa era ser comunista assim nos tempos soviéticos. Outra coisa é numa realidade embasbacada com o capitalismo como a de Almaty. Me comovi com sua paixão abnegada. Imagino a miséria que ganha de salário, se ganhar algo.
Nos despedimos com mais cordialidade. No corredor, me vem o jovem Eldar, desabafa: “que tédio, essa mulher”. A tradução dele foi péssima, ele sabe disso. Péssima porque o inglês dele é péssimo, e infelizmente só descobri na prática, na tradução. E péssima porque o garoto simplesmente estava com a cabeça flutuando, muito, muito longe das paixões perdidas no passado da secretária e sua sala de bandeiras vermelhas. Provavelmente pensando nas meninas em algum shopping center. Penso: com essa idade, uns 20 anos, eu também só pensava nisso. Não dá para condenar. Ele estava despreparado para o cardume de palavras, vorazes como piranhas, tentando almoçar seu cérebro. Saiu do rio. Mas eu estava despreparado também. Não esperava tanta resposta para tão poucas perguntas. O resultado, em suma: marcamos uma entrevista com o líder nacional do partido. Da próxima vez vai ser melhor, digo a Eldar. Melhor para ele e para mim.
Enquanto isso, aquele retrato de Lênin teima em não sair da minha cabeça. Ele mexe com minhas fantasias retrógradas, pós-soviéticas.
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Saturday, 26 October 2013
Diário de Almaty (V)
11/04/2012
Oito horas da manhã. Meia-noite no Brasil. Bom dia.
Cruzo os corredores meio escuros da KBTU e adentro a sala de aula lotada. Os jovens universitários ouviram falar de nosso curso na Inglaterra e fomos convidados a conversar com eles sobre o que estamos estudando. Assumimos o papel de professores. Depois de várias perguntas deles, principalmente sobre o que eles podem fazer para estudar no Reino Unido, tudo quieto. Agora é a vez de meus colegas e eu lhes dirigirem perguntas. Disparo a minha, sobre a “pureza” do povo cazaque e suas “hordas”.
Um alvoroço se formou, uns perguntando aos outros o que eu queria dizer com “hordas”. Aí, alguém entendeu. Não horda - juz. Uma mistura de risada com coxixo com aplausos para mim se seguiu. Uma garota muito risonha logo levantou a voz para responder. “É uma das primeiras coisas que nossos pais nos ensinam. Cada um de nós sabe qual é a sua horda”.
Desde aproximadamente o final do século XVI os cazaques se dividem em três grandes federações tribais (chamadas de hordas por alguns no Ocidente, mas conhecidas no país como juz, que significa “cem” em cazaque) associadas, cada uma, a uma região geográfica diferente do imenso país. A chamada Grande Juz ocupa esta região do Cazaquistão, o sudeste, onde fica Almaty. A Juz Central ocupa uma vasta área do norte e o centro do país, enquanto que a Pequena Juz ocupa o distante oeste. Todos são cazaques, milenarmente estabelecidos como pastores nômades. Cada juz tinha seu próprio rei, mas em alguns momentos, quando emergia um líder particularmente carismático em uma das hordas, as outras o apoiavam para ser o líder unificado de todas. Assim, a ligação dos cazaques com um líder forte, centralizador, tem raízes históricas, embora o mais comum durante os séculos tenha sido a descentralização, uma espécie de confederação, unindo as três hordas.
A menina continua. “Além das hordas, sabemos todos os nomes dos nossos sete últimos ancestrais”, explica. Uma tradição chamada de jeti-ata, (do cazaque jeti, sete, e ata, avô). Desde pequenininho, o cazaque decora e mantém viva a lembrança dos nomes de sete gerações de ancestrais da linha paterna. Isso reforça o vículo das pessoas com sua família, com seu clã (ao se descobrir antepassados em comum com um colega de escola, por exemplo) e, finalmente, com sua juz. Todos parecem ter grande orgulho em lembrar de suas raízes. Os estudantes perguntam de nós, de nosso conhecimento de nossos antepassados. Disse que eu, infelizmente, conhecia apenas o nome de meus avós, de alguns dos meus bisavós e um ou outro tataravó e ainda sim, sem certeza absoluta. Disse que tinha uma noção vaga das raízes geográficas da minha família. Olham para mim. Me pergunto se entendem, de verdade, o que eu estou dizendo.
A tradição está bem presente na vida dos cazaques. Por exemplo, um casal em que o par compartilhe um mesmo ancestral citado no jeti-ata não pode se casar. É claro que atualmente essa é uma tradição um pouco flexível na maior cidade do país. Uma moça cazaque me explicou: “hoje em dia, as pessoas na verdade não se sentam à mesa e começam a checar todos os seus sete ancestrais... geralmente checam uma, duas gerações. Pelo menos em Almaty eu nunca ouvi falar disso”. Mesmo assim, em regiões mais tradicionais do interior, é fácil imaginar que casais tenham tido seus corações estraçalhados pela regra. Uma regra, aliás, que teria o objetivo de evitar o surgimento de defeitos genéticos nas crianças, adotada muito antes que qualquer cazaque tivesse a menor noção de genética.
Acho isso incrível: embora essas meninas e rapazes ricos se vistam como americanos, tenham carros modernos e possantes e até namorem com beijos ardentes pelos corredores da KBTU, a divisão das hordas e do jeti-ata, tão antiga e alienígena a todo esse estilo de vida ocidentalizado, se mantém. Mas ninguém parece questionar isso.
Em outro campo a juz ainda está bem presente na vida do cazaque: a política. Há estudos publicados sobre o tema em outros países, mas, no Cazaquistão, a “política de clã” é claramente um tabu – não se fala sobre isso. Não é preciso fazer um grande exercício mental para ver sinais de como existe uma relação entre as juz e o poder. Kunaev, primeiro-secretário do Partido Comunista do Cazaquistão de 1964 a 1986, solidificou um sistema de patronagem em que sua horda, a Grande Juz, passou a dominar a elite. Esse favorecimento simplesmente continuou durante Nazarbayev, que também vem da mesma região. Evidentemente, a horda não poderia governar sozinha, e durante os anos foi forjada uma aliança com a Juz Central, mais russificada. Segundo Edward Schatz, autor de um livro sobre o assunto (Modern Clan Politics - the Power of Blood in Kazakhstan and Beyond, 2004), após a independência, surgiu o medo de secessão de regiões do norte do país, com muitas pessoas de origem russa lamentando o surgimento do novo país. Como essa região historicamente correspondia à da Juz Central, tornou-se vital obter o apoio dessa confederação para o projeto do novo país. Essa preocupação explicaria, por exemplo, a decisão de criar em 1997 uma nova capital cazaque em Astana, bem mais ao norte do que a até então capital, Almaty. Schatz enxerga a Juz Central galgando espaços no poder por meio de patronagem dos políticos. Por outro lado, a Pequena Juz permanece subrepresentada. A existência de vastas reservas de gás e petróleo na região do Mar Cáspio (associada a essa juz) força necessariamente uma reavaliação do arranjo, como ficou claro com os protestos de 2011 em Janaozen e o susto que eles provocaram em Nazarbayev. Resta saber se o líder estaria disposto a enfraquecer mais ainda mais o domínio de sua horda no futuro.
***
Mas não é só em relação à “política de clã” que existe tabu aqui. É cada vez mais claro, é em relação a qualquer “política” que há tabu. Toda vez que toco no assunto, parece que estou contando uma piada suja. As pessoas dão risadinhas tímidas, então olham para o lado, então mudam de assunto ou me perguntam, céticas, por que ou como eu vou pesquisar a oposição. Até agora, venho tentando contatar líderes da oposição por email; de 20 emails que mandei, apenas um foi respondido, por um oposicionista que, aparentemente, vive parte do tempo aqui e parte do tempo em Londres. Aceitou conversar comigo, mas apenas lá. Michael, o ex-policial que estuda comigo, eternamente preocupado, já falou várias vezes que estou sendo observado. O outro dia falou que eu posso ser preso. Eu, obviamente, levo a sério os riscos. Mesmo sem estar fazendo nada errado – aliás, mesmo sem estar fazendo quase nada. Amanhã, decidi visitar pessoalmente os diretórios regionais dos partidos. Vamos ver.
A relutância dos cazaques em relação à política, especialmente a política de oposição, ficou bem clara no meu almoço, hoje, com as duas professoras com que almocei dias atrás – a louca pela Coreia e a quietinha. Conversamos muito em inglês, sobre muita coisa. Mas quando esbarrei no delicado tema, pronto. Saia justa. Silêncio, clima desagradável.
Estávamos conversando sobre a eleição para presidente estudantil da KBTU –a escolha do representante discente. Muito me impressionou o fato de os candidatos fazerem uma tremenda campanha eleitoral. Devem gastar uma dinheirama nisso: por toda a universidade há cartazes (com fotos, bem diagramados, nada de cartolinas escritas à mão), banners gigantes de plástico pendurados dentro e fora do prédio, festas para os eleitores e até mesmo viagens pagas pelos candidatos, oferecidas aos estudantes. Nisso das viagens, impossível não fazer uma associação entre a relação entre esses jovens ambiciosos e seus colegas e o neopatrimonialismo entre os políticos no poder e os eleitores: benesses em troca de apoio. O micro copia o macro, o macro inspira o micro? Assim se perpetua uma cultura política? Por outro lado, também me impressionou a empolgação dos jovens com o pleito. Tremenda energia no ar! Que potencial tem a democracia neste país, se levarmos em conta esta simples disputa estudantil!
Prevendo problemas para ouvir qualquer resposta das professorinhas, deixei essas reflexões para mim mesmo. Preferi me ater a uma pergunta mais simples: de onde essa molecada consegue dinheiro para tal espetáculo democrático? A professorinha fã da Coreia tem a resposta na ponta da língua. “Ah, eles têm pais ricos. Para eles, a eleição é algo sério. É uma disputa de status, prestígio.” Um caro jogo de vaidade.
A conversa continua; pergunto por quanto tempo o tal presidente estudantil é eleito. Dois anos. Com direito a reeleição? Não. Arrisco: “Ah, então aqui a eleição para presidente estudantil é diferente da eleição para presidente do país né? Afinal, para presidente do país, o mesmo candidato sempre concorre e é reeleito há anos...” Silêncio. Risadinhas. “Eu não sei...”, responde com voz baixa a simpática fã da Coreia. Digo - meio brincando, meio de verdade - que acho que os estudantes deveriam ser preparados o quanto antes para exercer a cidadania à cazaque, com um presidente-rei. Mais risadinhas. Mais silêncio.
Eu realmente, realmente tenho a impressão que elas adoram Nazarbayev e não concordam que é um problema a falta de democracia no país. Nazarbayev é grande demais, governa há anos demais, é impensável demais imaginar este país órfão dele. Desde que o país se tornou independente, há 20 anos, ele é o timoneiro. Nesse universo, o exercício democrático na KBTU não é nada mais do que a guerra de vaidades de que me falou a professora. Não há ideologias, não há choque de propostas. Não há uma preparação para o exercício do voto fora da universidade. Nem professores, nem alunos estão remotamente expostos ao debate político real, que simplesmente não existe, dentro e fora da universidade. O que há é a festa. Um ar de profunda alienação no ar. A esfera despolitizada onde vive a elite, estimulada pelo regime.
Mas, é claro, onde há exagerada alienação da elite, olhos fechados à pobreza e aos destituídos, há sempre a ameaça de revolução. Certamente, o rei, caminhando para seus 80 anos, já está pensando nisso. Seus genros têm sido cotados para tomar o trono. Mas, por enquanto, em Almaty, ele é tudo. Onipresente, onisciente. Permanente.
O papo muda de rumo e continua, um pouco mais animado, regado a copos de compot (um suco de frutas, mas não me pergunte quais; cor de chá mate, doce demais, meio enjoativo). Satisfeito, deixo parte da salada de pepino, tomate e endro no prato e pergunto novamente das hordas, como isso funciona na prática, por exemplo, nas eleições para o Parlamento. “É verdade. Existe uma ligação entre seu clã (vários clãs formam uma juz) e o voto. Pessoas de uma região preferem votar em quem conhecem, em pessoas que são de onde elas são”, diz a professorinha simpática novamente. Aí, de novo, penso em atiçar mais, até que saiam correndo: “Mas as pessoas do oeste do país, onde vive menos gente, não acham ruim que há 20 anos o presidente é de uma clã do sudeste?”. Risadinhas. Um silêncio constrangedor.
***
O almoço termina, um solzão maravilhoso, uns 25 ou 30 graus, saio para passear e suar. Não só as montanhas nevadas ao sul da cidade estão incríveis na tela do céu azul. Na minha caminhada, várias árvores estão completamente em flor, uma flor pequena, cor-de-rosa esbranquiçada, parece flor de pessegueiro. Os prédios-caixas de concreto da era soviética, me saúdam. Ao lado de um deles, a fachada de uma universidade, cor de rosa forte, contrasta com as flores esbranquiçadas. Na fachada, altos-relevos soviéticos na forma de um homem atrás de uma mulher. A mulher triunfante, erguendo um livro em uma das mãos, erguendo em direção ao céu. A mulher está voltada para a direita, a porta do prédio. Do outro lado da porta, outra relevo na fachada, outra mulher, espelhando a anterior, novamente de frente para a porta. Ergue para o céu não um livro, mas uma tocha. O esforço na educação traz a luz. Per ardua ad alta. Inegável que essas sombras soviéticas ainda têm muito a falar. Estou trazendo questionamentos alienígenas a essas pessoas daqui. Os jovens cazaques que estudam fora e voltam, também. Trazem a mensagem de que há outras formas de governar. Que o Cazaquistão pode, e deve, experimentar. A integração com o mundo tornará isso inevitável. Espero. Torço.
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Sunday, 20 October 2013
Diário de Almaty (IV)
09/04/2012.
Almaty, ex-Alma-Ata. Alma significa maçã em cazaque. Ata, avô. Eis a cidade, então, Avô das Maçãs. É impossível por aqui escapar da fruta, que aparentemente tem sua origem nesta região do mundo. Seria no sul do Cazaquistão o Jardim do Édem original, onde se erguia a macieira que amaldiçoou Adão e Eva? Não é algo sobre o que muitos refletem a respeito quando abordam ou são abordados pelos vendedores de maçãs, nas ruas, nos bazares. Em alguns lugares do centro você parece nunca estar longe de um vendedor, em alguma esquina, perto de algum ponto de ônibus.
E as frutas, não muito grandes, não muito vermelhas. Doces como o mel. Elas estão em outdoores nas ruas, exaltando o orgulho de cidade. E mais, há até estátuas. Encontrei três. Uma fica no Kok Tobe (“colina verde”), um dos pontos obrigatórios para todo visitante. Para subir até o topo de seus 1,1 mil metros, pego um bondinho. São uns seis minutos de jornada. Lá em cima há de tudo para agradar os turistas: a estátua de uma maçã, uma esfera de um metro de diâmetro, de metal. E restaurantes, vendedores de quinquilharias inúteis, mas bonitinhas, e até um minizoológico com alguns bichos deprimidos para a criançada. Mas o principal é a vista: de um lado, a muralha Tian Shan, salpicada de branco, a fronteira natural com o Quirguistão; do outro, a cidade, misturada com a poluição dos carros e a névoa seca. Admiro, sem respirar fundo. O ar está seco, esse cinza se eleva da cidade, consome meu nariz, meus brônquios. Lembro de casa.
O colega português do meu grupo admira o panorama urbano e fala, com ar de grande especialista, que a cidade “tem potencial”. Não entendo o que ele quer dizer ao certo. Possivelmente que a cidade pode crescer mais, virar uma megalópole? Espero que não. Pertinho do relaxante centro grã-fino e arborizado, há já avenidas com o trânsito pesado, em que os congestionamentos são constantes, ainda que nem de longe comparáveis aos de São Paulo. Um exemplo é a Tole Bi. Mas se há um quesito em relação ao trânsito em que Almaty bate fácil as maiores cidades brasileiras é certamente na desorganização. Claramente não foi preparada para receber o incremento de circulação que veio com a prosperidade dos últimos anos, que permitiram aos moradores se orgulhar de seus possantes importados. Até agora, já vi quatro colisões, acontecendo bem na minha frente. Olho para o lado, vem o carro, vai tentar fazer a conversão para sair da avenida, e bam! Bate em cheio no motorista distraído que vem do outro lado. E ai do pedestre que queira cruzar a rua – isso é esporte radical, os motorizados te olham e já aceleram mais, parecem estarem brincando de pega-pega. A cidade tem bem menos semáforos do que precisa. Bem menos locais para travessia de pedestres do que precisa. Bem menos guardas de trânsito do que precisa e bem menos motoristas conscientes do que precisa.
Pelo menos, ainda há uma certa tranquilidade: os motoristas ainda não querem se matar. No táxi para a KBTU, nosso motorista é fechado pelo outro veículo, quase bate feio. Os dois carros param, o taxista desce, como que para pedir explicações. Penso: vai dar briga. Os motoristas olham os carros, talvez um risco aqui, um amassadinho acolá. Um pedido de perdão do outro motorista, e o taxista volta para nosso carro, nos pede desculpas pelo inconveniente à nossa jornada. Continuamos rumo à universidade.
***
O tema de meu mestrado, os partidos políticos de oposição, é algo delicado por aqui. Passei o dia usando os computadores da universidade. Confesso que fiquei paranoico (Michael me contaminou?) ao descobrir que os sites de duas das principais agremiações de oposição do país não funcionavam na rede da universidade. Navego normalmente, visito sites brasileiros, e na hora de entrar nesses sites de partidos, o sistema acusa falha na conexão. Pura coincidência? Dentro da KBTU, aliás, há uma pequena banca de jornais. Chego para a senhora vendedora - uma velhinha com óculos, lacônica e nunca sorridente - e pergunto se ela tem o jornal de oposição Respublika. Não tem. Pergunto se tem outro jornal de oposição, o Vzglyad. Não tem. O que tem? Revistas de fofoca e jornais oficialescos. Todos novinhos e reluzentes. Não tenho dúvida de que não é coincidência essa ausência. Fico com a pulga atrás da orelha. Ora, num país com um líder vitalício, supremo e intocável, seria difícil imaginar que oposicionistas possam ser razão de preocupação para o poderoso regime. Mas parece que sim, eles são, de alguma forma. Varridos para baixo do tapete na medida do possível. Muitos deles são falsos oposicionistas, paus mandados. Outros são mais legítimos. Entretanto, ambos ficam praticamente invisíveis, fracos, amedrontados, ainda que sem deixar de existir, para assim manter essa aura de tolerância tão útil quando o presidente, Nursultan Nazarbayev, tenta vender sua imagem nos EUA ou na Europa.
Nazarbayev é como a maçã – sua imagem domina a cidade. Há cartazes espalhados pelas principais avenidas com seus sábios dizeres e fotos dele estrategicamente colocadas nas fachadas de prédios. No meu alojamento, que pertence à universidade, há uns cartazes colados na entrada do refeitório, todo mundo é obrigado a ver ao entrar para comer. Os cartazes mostram a letra do hino nacional, os símbolos nacionais e uma grande foto de Nazarbayev. No museu nacional, na sala dedicada à história do Cazaquistão independente, 20 anos de fotos de Nazarbayev. Nazarbayev jogando tênis, Nazarbayev inaugurando fábricas, Nazarbayev apertando a mão de dignatários estrangeiros. Uma beleza esse presidente, quase um bombril, mil e uma utilidades. Ele é o pivô de um regime autocrático “soft”. Alega que o Cazaquistão é uma democracia; de fato, há eleições regulares. Mas é conversa para boi dormir. A oposição de verdade é marginalizada ao extremo: enfrenta dificuldade em obter dinheiro para funcionar, seus líderes são submetidos a intimidação e não raro são presos, suas ideias passam longe das principais cadeias de TV e rádio – e, como constatei, ainda mais longe das bancas de jornal de universidades elitistas. As leis vagas são interpretadas de forma seletiva para beneficiar Nazarbayev e seus comparsas – por exemplo, candidatos genuinamente de oposição são frequentemente desqualificados de eleições por tecnicalidades baseadas em uma visão tendenciosa da lei. Além disso, os pleitos são cuidadosamente gerenciados por Nazarbayev, que usa sua rede de influência para garantir que os resultados sempre sejam favoráveis ao governo. Mas não é só. O partido governista, Nur Otan, é o único com presença forte em todo o país e na mídia. Tem gente que sequer conhece outro partido a não ser o Nur Otan. Logo, não é de se estranhar que a única oposição atualmente com presença no parlamento é de fachada e na prática apoia o presidente.
Entretanto, em 2011 e no início de 2012, a oposição viveu um breve momento de esperança. Em dezembro, trabalhadores do setor de petróleo e policiais se enfrentaram em Janaozen, uma cidade no deserto do oeste do país. Ao menos 12 morreram nos confrontos. Eleições parlamentares se seguiram, como de costume, favorecendo quem se esperava. Mas, insatisfeita com a violência no oeste, energizada por alegações de que as eleições foram manipuladas para favorecer o partido de Nazarbayev, a oposição espantosamente conseguiu suficiente apoio popular para iniciar uma onda de protestos no centro de Almaty. Por um momento, houve quem enxergasse na mobilização fantasmas da grande revolta de 1986, quando os cazaques, revoltados com a decisão do líder soviético Mikhail Gorbachev de afastar o primeiro-secretário do PC local, Dinmukhamed Kunaev, tomaram as ruas da cidade, enfrentando tropas vermelhas. Pelo menos 200 morreram na revolta, chamada pelos cazaques de Jeltoksan (“dezembro”, numa alusão ao mês em que ocorreu).
O protesto arrefeceu progressivamente. Os principais líderes de oposição foram levandos para a polícia; antes de cada manifestação, a polícia fechava as ruas para impedir a chegada das pessoas. Houve um caso em que, do lado do lugar marcado para um protesto, coincidentemente no mesmo dia e na mesma hora, foi organizado um evento para crianças – depois, as autoridades falaram nos jornais que os oposicionistas quiseram impedir as crianças de se divertir, provocando o esperado rechaço de muitos leitores. Um dos principais líderes da oposição de verdade, Vladimir Kozlov, foi preso. Anos e anos de xilindró o aguardam. Pessoas com mentes moldadas pela mídia e presas em seus mundos de falsa bonanza em Almaty desprezam a oposição. Pensam: como um governo que faz o país crescer, prosperar, pode estar errado? Pensam: esses oposicionistas não lutam pelo povo, lutam é por si mesmos, não merecem confiança. Pensam: que se calem esses rebeldes sem causa – nos tempos soviéticos era muito pior. Pensam: esses oposicionistas um dia foram aliados de Nazarbayev, são seus filhos rebeldes, como respeitá-los?
E o pior é que estão certos, embora não vejam o lado ruim de descreditar a já fraca oposição. E, assim, os protestos, o que era a esperança para oposicionistas, acabaram sendo a desculpa para Nazarbayev reprimi-los mais. Talvez em breve ele abra de novo um pouco, para mostrar que é bom e tolerante.
Aliás, difícil, muito difícil encontrar alguém aqui que fale mal do grande líder.
Mas acontece, pela primeira vez, na volta para o alojamento, já com o sol no horizonte. “Há muitos aqui contra Nazarbayev”, me diz um taxista, empolgado não particularmente em falar de política, mas em falar de tudo, e falar muito. Bigode, meio sujo de fuligem, fungando muito, como se estivesse constantemente cheirando rapé – não sei, me passou um ar de bandido. Depois da declaração, que ele claramente julgou ser bombástica, silêncio de três segundos, e me vem com outra. “Bom, 90% das pessoas são a favor de Nazarbayev.” Interpreto que se empolgou com o que falou em primeiro lugar - sentiu uma brisa leve de revolução a caminho - mas depois pensou e decidiu que não adianta fingir, a maioria em Almaty vive muito bem, obrigado, com uma ditadura. Dez por cento de descontentes não é nada. Não dá nem para sentir uma grande decepção na voz de meu colega taxista. Na sua voz, só um tom de aceitação. Assim é. Fazer o quê.
O nível de popularidade do presidente é fácil de medir ao visitar um monumento em frente à prefeitura de Almaty. Lá foi colocado um livro de metal mostrando a marca de uma mão – a mão de Nazarbayev. É tradição por aqui visitar o local e colocar a mão sobre a marca da mão do presidente. Parece que dá sorte. Traz uma inscrição em cazaque, russo e inglês - "choose and be in bliss". Há, é claro, quem simplesmente queira comparar sua mão com a do presidente, como eu. Mas dá para perceber que, entre os cazaques há um ar de devoção divina tão profundamente enraizado que eles sequer percebem isso. A prova é que, quando visitei o monumento, havia até fila para colocar a mão na marca da mão de Nazarbayev. As pessoas enfrentavam um calor ridículo, sem sombra, suando, para tocar na marca da mão do presidente. E ela estava dourada, polidíssima, de tanto tocarem lá. A máquina do culto de personalidade está realmente bem calibrada.
Como em muitos países do Ocidente, aqui os jovens não se interessam muito por política. Conversei com um na universidade. Saía da aula de engenharia de petróleo, ou algo assim (na KBTU, o forte são cursos superiores em áreas que o governo cazaque julga estratégicas, como petróleo e gás). Tomamos um café. Tinha uma camisa branca tão bem passada e reluzente que parecia ter acabado de sair da loja. Sorria muito, feliz em praticar o inglês. Mas, ao falar de política, pareceu perdido e perdeu o sorriso. Sabia dos protestos no oeste no final de 2011, mas confessou que não tinha a menor ideia do porquê das mortes. Isso pode indicar algo sobre a imprensa e o acesso à informação no país, mas também pode não indicar nada – só que ele não se interessava por esse tipo de assunto. E logo mudamos o rumo da conversa. Falamos sobre carros.
Mas, fãs ou não de política, todos sabem quem é Nazarbayev. Nos cartazes espalhados pela cidade para celebrar o Nauryz, o Ano Novo local, frases atribuídas ao presidente reforçam uma tecla importante para todos por aqui. Nelas, Nazarbayev insiste que dizer que é o líder do “Cazaquistão multiétnico”. O presidente busca sempre convencer a todos que é o fiador da tolerância entre essas múltiplas nações no país, o garantidor de que a harmonia irá continuar. De fato, o discurso sobre etnia – que poderia ser um fator de implosão deste país, como ocorreu, por exemplo, na Geórgia no período pós-URSS – é crucial para entender por que o Cazaquistão se mantém em paz. Eis a receita de sucesso de Nazarbayev: mesclar a ideia de várias nações vivendo em harmonia com nacionalismo. O Cazaquistão é um grande país em que todos vivem juntos, mesmo sendo diferentes. E todos devem trabalhar juntos pelo bem do país e são o país. Quem ousa esbravejar que sua nação tem tratamento injusto está trabalhando contra essa ordem, é um traidor. Tudo que o governo faz ou exalta conspira contra esse tipo de “perversão política”. Pensando bem, isso tudo é muito soviético.
Reforça-se, a estabilidade, a longa estabilidade, contra as vozes dissonantes, que podem ser tudo. A tal estabilidade que – ao que parece –, a maioria em Almaty acredita ter um importância muito maior que a democracia.
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Saturday, 12 October 2013
Diário de Almaty (III)
06 e 07/04/2012
Um grupo de moças muito bem vestidas, com suas saias e vestidos, batons cor-de-rosa e vermelhos, longos cabelos, curvas voluptuosas de adolescente, se levanta e deixa suas mesas na sala pouco iluminada. Elas são atraídas para a pista de dança pelo Ai Se Eu Te Pego irresistível de Michel Teló. Dançam meio timidamente, os cotovelos bem para baixo. Do sofá onde estou sentado, observo com curiosidade bebendo minha cerveja marca Bavaria. Lá fora, mesmo a esta hora da noite, o barulho dos carros na avenida, trânsito intenso. São quase 23h.
Poderia ser uma descrição de um sábado qualquer em uma capital brasileira. Não imaginava isso em Almaty. Não imaginava mesmo. A música de Teló tomou o planeta, e essas demonstrações da força da globalização cultural (há quem diga mau gosto global) nunca deixam de me espantar. É o terceiro dia seguido que ouço na cidade essa música. Ontem, foi aqui mesmo, nesta boate meio empoeirada.
E, pasmo, observo, logo depois do Teló, duas dançarinas, com aqueles vestidos de dança cigana, longas saias semitransparentes. Elas atravessam o salão do restaurante escuro ao som de uma música russa. A fraca luz meio-vermelha-meio-alaranjada se reflete em seus olhos e nas lantejoulas penduradas nas suas cinturas. Sacolejam. Uns passos que lembram uma dança espanhola. Tantas referências a outros lugares. Penso, puxa, eu gostaria tanto de estar aqui no Cazaquistão. Isso é aqui? Sim, isso é aqui.
Michael, à minha frente, tomando uma cerveja comigo, é viajado, conhece a maioria das capitais da antiga URSS. Para ele, Almaty é a mais russificada das capitais da ex-potência, fora, é claro, da Rússia. Aqui se fala russo e, menos, bem menos, cazaque. Mas professores de cazaque lucram em Almaty. Cada vez mais, a língua se torna visível onde até alguns anos atrás não estava. Outdoors hoje são quase todos em cazaque e russo, mas o cazaque em primeiro plano, em letras maiores. Há jornais em cazaque. Há TV, rádio em cazaque. Tudo isso ainda parece estranho em Almaty, com seus russófonos. E cria essa demanda por professores. Vi anúncios em pontos de ônibus, muitos anúncios, professores oferecendo não só aulas de cazaque, mas de cazaque e inglês, nessa ordem. Os anúncios destacam – aulas de cazaque, em letras chamativas. Mais para baixo, mais discreto, a oferta de aulas em inglês. Na verdade, isso me estranha um pouco – como assim? Esse pessoal deveria estar todo falando inglês. O que eu vejo até agora por aqui não é a cultura das estepes, ou a cultura muçulmana, ou mesmo a dos colonizadores do norte. O que eu vejo em toda parte é o capitalismo global e referências culturais misturadas, sem nexo, referências-embalagens para vender algo, tudo com sotaque americano. Carros possantes, caros e imensos, música pop, cartazes imensos com ofertas de bens de consumo de lojas de departamentos e meninas com minissaias, comendo pizza, cheirando a Coca-Cola e dançando Michel Teló. Mas falando russo e, cada vez mais, cazaque. Ainda engatinhando no inglês.
Ao sul da Tole Bi, pela rua Ablai Khan, mais da Almaty dos USA, mas com um tom menos classe média que na boate. Lojas grã-finas, restaurantes caros e confortáveis, frequentadores com relógios brilhantes, botas de couro, cães bem tosados na coleira. Os cães que desfilam seus donos lindos e perfumados, frequentadores de academias. Almaty, enfim, tem muito de cidade ocidental. Com esqueleto soviético, russo, muçulmano e cazaque desses prédios e monumentos perdidos a cada esquina.
Os ossos do Império Vermelho estão pertinho. Um impressionante monumento, com estátuas com músculos poderosos e salientes em eterno movimento, que lembram 28 soldados soviéticos de uma divisão de Almaty que enfrentaram os nazistas nas redondezas de Moscou em 1941. Nos tempos soviéticos, a lenda de que eles lutaram até a morte e paralisaram 18 tanques alemães os transformou em heróis. No monumento, suas feições parecem ecoar uma glória velha e que teima em não morrer. A glória de um país poderosíssimo, gigante, unido. Bate uma pena que tamanha glória tenha sido incapaz de prevenir o fim da URSS - que, é claro, trouxe coisas boas e ruins. As estátuas dos soldados se juntam, misturam-se, transformam-se em um só corpo, que parece formar o mapa da URSS. Melancolia orgulhosa. Thubron me encontra.
It was one of those soulful hymns to glory and sorrow which scatter the battlefields of western Russia with a proud melancholy. I stared at it with disquiet. Far from the pain and chaos of real war, these inflated heroes – impossibly grim and muscled – breasted their plinths in a Socialist Realism which stopped reality dead and turned their action inimaginable.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
À frente, uma chama eterna para os soldado mortos, tanto os que caíram contra os nazistas quanto os que se foram durante a guerra civil que se seguiu à Revolução Russa e que acimentou a pátria-sonho de Lênin. Impossível não pensar que a chama eterna aqui não é para os soldados, mas para o país que deixou de existir, um lamento luminoso, apesar de todo o sofrimento que os líderes soviéticos causaram.
Mais ao norte fica o principal bazar de Almaty. Chamado de Bazar Verde, ele é bem diferente de outros mercados que já visitei na Ásia Central – parte dele é tão limpa e organizada que parece um supermercado. Do lado de fora, contudo, é mais tradicional, eis a bagunça querida, vendedores de tudo demarcando seus territórias em uma rua próxima. As frutas, tão doces e coloridas, e a vasta variedade de frutos secos está lá, na parte limpinha. Mas falta algo, falta o espírito. Saio para onde está a bagunça, respiro aliviado vendo as vendedoras gordas com dentes de ouro. Algumas vendem carnes e, entre as carnes, eis que avisto um casal vendendo lindas cabeças de cabra frescas, ainda com os pelos do animal e os olhos. Um festim para moscas.
Lá, do lado da confusão, a mesquita central e seu domo dourado. Linda, imensa. Parecia vazia, parecia apenas um monumento. Na rua, as senhoras, por toda a parte, cobrem a cabeça, como pede a tradição islâmica. Mas não vejo ninguém saindo do magnífico templo. Me pergunto, afinal, o que é essa mesquita? Nada hoje, aposto que muito na sexta-feira. Como no Brasil, onde para muitos, muitos, igreja só existe no domingo. Aqui, esse é um legado soviético, essa aparente apatia religiosa? Mais sinais de uma cidade secularizada? Generalizações apressadas essas. Volto aqui outro dia para ver.
***
Pela manhã, na universidade para mais contato direto com a elite cazaque. Duas professoras de inglês, de uns 25 anos de idade, nos levaram para almoçar. Uma, bochechuda e muito simpática, falando muito, fascinada, obcecada pela Coreia, vivendo em uma terra que recebeu milhares de coreanos reassentados por Stalin. Conheceu os dois coreanos do nosso grupo e pulou com a oportunidade de praticar a língua que aprendera na faculdade. No almoço, acabou separada dos coreanos, sentando-se comigo e com um outro colega da minha faculdade, inglês. Admitiu que queria ter se sentado na outra mesa. Admirei a franqueza. De fato, não conseguimos, nem ela, nem eu, encontrarmos muito papo em comum.
A outra professora, muito bonita e misteriosa. Cabelos negros curtos, lisos, cortados na altura do queixo. Óculos de armação também preta, olhos escuros, olhos puxados de cazaque, nem tão fechados, certamente nada abertos. Lábios carnudos, menos bochecha que a amiga. Falando pouco. Uma fofura. Antes de sairmos para procurar o restaurante, perguntei jovialmente se seria ela nossa anfitriã no almoço. “Não”, respondeu, ríspida, agressiva. Acho que ela não entendeu a pergunta. Logo depois estava conosco, caminhando, em direção a um restaurante na rua Ablai Khan. No almoço, séria, reservada, desarmou qualquer piada. Na volta, caminhamos juntos. Nenhuma risada. Pensei que talvez, para ela, fôssemos apenas uma obrigação burocrática, levar os gringos para almoçar.
Vim a Almaty trabalhar na minha dissertação de mestrado. Para isso, dependerei dos favores de estranhos, como as duas professorinhas, para fazer as entrevistas que ambiciono fazer, com políticos, em russo e cazaque. A professora séria se comprometeu, claramente sem a menor vontade, a me ajudar, traduzindo uma carta de apresentação minha para o russo. De volta do almoço, já na universidade, encontramos um outro professor, A., com quem me dei melhor. Como Max no outro dia, foi simpatissíssimo, perguntando sem cerimônia sobre tudo em nossos países. Respondemos... sobre tudo em nossos países. Brinquei em minha cabeça – seria A. um espião, amigo de Max, tentando obter informações sobre os forasteiros? Se for, não me importa. Dei dois tapinhas em seu ombro – “ei, amigão A., pode me ajudar a encontrar uma boa alma que me ajude a traduzir umas entrevistas?”, perguntei. “Vou ver”, disse ele, “até terça te respondo”.
No final da tarde, pegamos um táxi para voltar ao alojamento. Tudo parado na Tole Bi. Alguns Ladas velhos se misturam aos utilitários esportivos possantes. Todos cobertos com a mesma poeira. De repente, lembrei que era Sexta-Feira Santa. O congestionamento talvez seja do pessoal tentando sair da cidade para aproveitar os dias de folga fora daqui. Como no Brasil.
A Santa Sexta-feira foi embora, foi lentamente. Não tive muita coisa para fazer, fiquei entediado e ao mesmo tempo deslumbrado naquele prédio maravilhosamente soviético da KBTU, imaginando onde eu estava, no mundo distante, distante. Com vontade de botar o pé na rua, de ver o resto da cidade. Não fica bem, pensei, não fica bem, estou aqui com um objetivo. Quando a vontade estava já insuportável, ali me encontrei, olhando a linda cidade e suas montanhas, suas pessoas meio esquisitas, tudo pela janela do táxi. No congestionamento. Em outro ritmo. Entrando em sintonia.
***
De volta à noite, ao bar e ao Michel Teló. Me convenço, meio na marra, sem estar muito convencido, que a identidade original deste povo ainda está por aí, nos detalhes que os turistas nunca vão ver.
Uma colega na mesa fala do enigma das árvores. Desde que chegamos aqui, ficamos intrigados com o fato de que os locais se reúnem em grupos numerosos e varrem parques, praças e áreas verdes de forma voluntária. Geralmente aos sábados, daí o nome desses mutirões, subbotnik, derivado da palavra em russo para sábado. Eles surgiram na era soviética. Eis um excelente legado dos tempos vermelhos, penso eu, a cooperação de todos pelo bem comum. O Brasil se beneficiaria demais se tivesse isso. E eis que, no meio do mutirão, o tal enigma. Após a faxina, alguns dos voluntários agarram broxas e pintam os troncos das árvores de branco, do chão até uma altura de mais ou menos um metro. Lembro já ter visto isso no Brasil. Acho, mas não tenho certeza, que é para matar bichos, insetos. Colocam cal nos troncos. Será que é eficiente mesmo? Eles parecem fazer a pintura sem questionar, sem pensar. É simplesmente automático. Mas eu não consigo parar de me perguntar - por que pintar todos troncos de branco? Para que todo esse trabalho? Para que ter as árvores todas de camiseta branca, uniformizadas?
Meus questionamentos depois causaram perplexidade, quando fiz perguntas na universidade para um ou outro. De fato, pintar as árvores de branco parece ser algo tão tradicional e automático que ninguém sabe o porquê, ninguém sequer parece ter refletido sobre o assunto. “Não é para sinalizar as árvores para os motoristas, para evitar acidentes?”, me pergunta um estudante. Talvez, mas, retruco, então por que pintar uma árvore que fica no centro de um parque, cercada de árvores de troncos grossos de todos os lados? O carro vai chegar lá, no meio? O estudante balança a cabeça, mudo. Pedimos outra cerveja. A Bavaria (certamente não a mesma servida no Brasil!) chega perfeita, suando, com colarinho regulamentar de três centímetros, meio litro de puro deleite. As risadas retrospectivas do dia seguem um pouco mais e são afogadas nos goles gelados, aliviando o calor suave da noite.
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Um grupo de moças muito bem vestidas, com suas saias e vestidos, batons cor-de-rosa e vermelhos, longos cabelos, curvas voluptuosas de adolescente, se levanta e deixa suas mesas na sala pouco iluminada. Elas são atraídas para a pista de dança pelo Ai Se Eu Te Pego irresistível de Michel Teló. Dançam meio timidamente, os cotovelos bem para baixo. Do sofá onde estou sentado, observo com curiosidade bebendo minha cerveja marca Bavaria. Lá fora, mesmo a esta hora da noite, o barulho dos carros na avenida, trânsito intenso. São quase 23h.
Poderia ser uma descrição de um sábado qualquer em uma capital brasileira. Não imaginava isso em Almaty. Não imaginava mesmo. A música de Teló tomou o planeta, e essas demonstrações da força da globalização cultural (há quem diga mau gosto global) nunca deixam de me espantar. É o terceiro dia seguido que ouço na cidade essa música. Ontem, foi aqui mesmo, nesta boate meio empoeirada.
E, pasmo, observo, logo depois do Teló, duas dançarinas, com aqueles vestidos de dança cigana, longas saias semitransparentes. Elas atravessam o salão do restaurante escuro ao som de uma música russa. A fraca luz meio-vermelha-meio-alaranjada se reflete em seus olhos e nas lantejoulas penduradas nas suas cinturas. Sacolejam. Uns passos que lembram uma dança espanhola. Tantas referências a outros lugares. Penso, puxa, eu gostaria tanto de estar aqui no Cazaquistão. Isso é aqui? Sim, isso é aqui.
Michael, à minha frente, tomando uma cerveja comigo, é viajado, conhece a maioria das capitais da antiga URSS. Para ele, Almaty é a mais russificada das capitais da ex-potência, fora, é claro, da Rússia. Aqui se fala russo e, menos, bem menos, cazaque. Mas professores de cazaque lucram em Almaty. Cada vez mais, a língua se torna visível onde até alguns anos atrás não estava. Outdoors hoje são quase todos em cazaque e russo, mas o cazaque em primeiro plano, em letras maiores. Há jornais em cazaque. Há TV, rádio em cazaque. Tudo isso ainda parece estranho em Almaty, com seus russófonos. E cria essa demanda por professores. Vi anúncios em pontos de ônibus, muitos anúncios, professores oferecendo não só aulas de cazaque, mas de cazaque e inglês, nessa ordem. Os anúncios destacam – aulas de cazaque, em letras chamativas. Mais para baixo, mais discreto, a oferta de aulas em inglês. Na verdade, isso me estranha um pouco – como assim? Esse pessoal deveria estar todo falando inglês. O que eu vejo até agora por aqui não é a cultura das estepes, ou a cultura muçulmana, ou mesmo a dos colonizadores do norte. O que eu vejo em toda parte é o capitalismo global e referências culturais misturadas, sem nexo, referências-embalagens para vender algo, tudo com sotaque americano. Carros possantes, caros e imensos, música pop, cartazes imensos com ofertas de bens de consumo de lojas de departamentos e meninas com minissaias, comendo pizza, cheirando a Coca-Cola e dançando Michel Teló. Mas falando russo e, cada vez mais, cazaque. Ainda engatinhando no inglês.
Ao sul da Tole Bi, pela rua Ablai Khan, mais da Almaty dos USA, mas com um tom menos classe média que na boate. Lojas grã-finas, restaurantes caros e confortáveis, frequentadores com relógios brilhantes, botas de couro, cães bem tosados na coleira. Os cães que desfilam seus donos lindos e perfumados, frequentadores de academias. Almaty, enfim, tem muito de cidade ocidental. Com esqueleto soviético, russo, muçulmano e cazaque desses prédios e monumentos perdidos a cada esquina.
Os ossos do Império Vermelho estão pertinho. Um impressionante monumento, com estátuas com músculos poderosos e salientes em eterno movimento, que lembram 28 soldados soviéticos de uma divisão de Almaty que enfrentaram os nazistas nas redondezas de Moscou em 1941. Nos tempos soviéticos, a lenda de que eles lutaram até a morte e paralisaram 18 tanques alemães os transformou em heróis. No monumento, suas feições parecem ecoar uma glória velha e que teima em não morrer. A glória de um país poderosíssimo, gigante, unido. Bate uma pena que tamanha glória tenha sido incapaz de prevenir o fim da URSS - que, é claro, trouxe coisas boas e ruins. As estátuas dos soldados se juntam, misturam-se, transformam-se em um só corpo, que parece formar o mapa da URSS. Melancolia orgulhosa. Thubron me encontra.
It was one of those soulful hymns to glory and sorrow which scatter the battlefields of western Russia with a proud melancholy. I stared at it with disquiet. Far from the pain and chaos of real war, these inflated heroes – impossibly grim and muscled – breasted their plinths in a Socialist Realism which stopped reality dead and turned their action inimaginable.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
À frente, uma chama eterna para os soldado mortos, tanto os que caíram contra os nazistas quanto os que se foram durante a guerra civil que se seguiu à Revolução Russa e que acimentou a pátria-sonho de Lênin. Impossível não pensar que a chama eterna aqui não é para os soldados, mas para o país que deixou de existir, um lamento luminoso, apesar de todo o sofrimento que os líderes soviéticos causaram.
Mais ao norte fica o principal bazar de Almaty. Chamado de Bazar Verde, ele é bem diferente de outros mercados que já visitei na Ásia Central – parte dele é tão limpa e organizada que parece um supermercado. Do lado de fora, contudo, é mais tradicional, eis a bagunça querida, vendedores de tudo demarcando seus territórias em uma rua próxima. As frutas, tão doces e coloridas, e a vasta variedade de frutos secos está lá, na parte limpinha. Mas falta algo, falta o espírito. Saio para onde está a bagunça, respiro aliviado vendo as vendedoras gordas com dentes de ouro. Algumas vendem carnes e, entre as carnes, eis que avisto um casal vendendo lindas cabeças de cabra frescas, ainda com os pelos do animal e os olhos. Um festim para moscas.
Lá, do lado da confusão, a mesquita central e seu domo dourado. Linda, imensa. Parecia vazia, parecia apenas um monumento. Na rua, as senhoras, por toda a parte, cobrem a cabeça, como pede a tradição islâmica. Mas não vejo ninguém saindo do magnífico templo. Me pergunto, afinal, o que é essa mesquita? Nada hoje, aposto que muito na sexta-feira. Como no Brasil, onde para muitos, muitos, igreja só existe no domingo. Aqui, esse é um legado soviético, essa aparente apatia religiosa? Mais sinais de uma cidade secularizada? Generalizações apressadas essas. Volto aqui outro dia para ver.
***
Pela manhã, na universidade para mais contato direto com a elite cazaque. Duas professoras de inglês, de uns 25 anos de idade, nos levaram para almoçar. Uma, bochechuda e muito simpática, falando muito, fascinada, obcecada pela Coreia, vivendo em uma terra que recebeu milhares de coreanos reassentados por Stalin. Conheceu os dois coreanos do nosso grupo e pulou com a oportunidade de praticar a língua que aprendera na faculdade. No almoço, acabou separada dos coreanos, sentando-se comigo e com um outro colega da minha faculdade, inglês. Admitiu que queria ter se sentado na outra mesa. Admirei a franqueza. De fato, não conseguimos, nem ela, nem eu, encontrarmos muito papo em comum.
A outra professora, muito bonita e misteriosa. Cabelos negros curtos, lisos, cortados na altura do queixo. Óculos de armação também preta, olhos escuros, olhos puxados de cazaque, nem tão fechados, certamente nada abertos. Lábios carnudos, menos bochecha que a amiga. Falando pouco. Uma fofura. Antes de sairmos para procurar o restaurante, perguntei jovialmente se seria ela nossa anfitriã no almoço. “Não”, respondeu, ríspida, agressiva. Acho que ela não entendeu a pergunta. Logo depois estava conosco, caminhando, em direção a um restaurante na rua Ablai Khan. No almoço, séria, reservada, desarmou qualquer piada. Na volta, caminhamos juntos. Nenhuma risada. Pensei que talvez, para ela, fôssemos apenas uma obrigação burocrática, levar os gringos para almoçar.
Vim a Almaty trabalhar na minha dissertação de mestrado. Para isso, dependerei dos favores de estranhos, como as duas professorinhas, para fazer as entrevistas que ambiciono fazer, com políticos, em russo e cazaque. A professora séria se comprometeu, claramente sem a menor vontade, a me ajudar, traduzindo uma carta de apresentação minha para o russo. De volta do almoço, já na universidade, encontramos um outro professor, A., com quem me dei melhor. Como Max no outro dia, foi simpatissíssimo, perguntando sem cerimônia sobre tudo em nossos países. Respondemos... sobre tudo em nossos países. Brinquei em minha cabeça – seria A. um espião, amigo de Max, tentando obter informações sobre os forasteiros? Se for, não me importa. Dei dois tapinhas em seu ombro – “ei, amigão A., pode me ajudar a encontrar uma boa alma que me ajude a traduzir umas entrevistas?”, perguntei. “Vou ver”, disse ele, “até terça te respondo”.
No final da tarde, pegamos um táxi para voltar ao alojamento. Tudo parado na Tole Bi. Alguns Ladas velhos se misturam aos utilitários esportivos possantes. Todos cobertos com a mesma poeira. De repente, lembrei que era Sexta-Feira Santa. O congestionamento talvez seja do pessoal tentando sair da cidade para aproveitar os dias de folga fora daqui. Como no Brasil.
A Santa Sexta-feira foi embora, foi lentamente. Não tive muita coisa para fazer, fiquei entediado e ao mesmo tempo deslumbrado naquele prédio maravilhosamente soviético da KBTU, imaginando onde eu estava, no mundo distante, distante. Com vontade de botar o pé na rua, de ver o resto da cidade. Não fica bem, pensei, não fica bem, estou aqui com um objetivo. Quando a vontade estava já insuportável, ali me encontrei, olhando a linda cidade e suas montanhas, suas pessoas meio esquisitas, tudo pela janela do táxi. No congestionamento. Em outro ritmo. Entrando em sintonia.
***
De volta à noite, ao bar e ao Michel Teló. Me convenço, meio na marra, sem estar muito convencido, que a identidade original deste povo ainda está por aí, nos detalhes que os turistas nunca vão ver.
Uma colega na mesa fala do enigma das árvores. Desde que chegamos aqui, ficamos intrigados com o fato de que os locais se reúnem em grupos numerosos e varrem parques, praças e áreas verdes de forma voluntária. Geralmente aos sábados, daí o nome desses mutirões, subbotnik, derivado da palavra em russo para sábado. Eles surgiram na era soviética. Eis um excelente legado dos tempos vermelhos, penso eu, a cooperação de todos pelo bem comum. O Brasil se beneficiaria demais se tivesse isso. E eis que, no meio do mutirão, o tal enigma. Após a faxina, alguns dos voluntários agarram broxas e pintam os troncos das árvores de branco, do chão até uma altura de mais ou menos um metro. Lembro já ter visto isso no Brasil. Acho, mas não tenho certeza, que é para matar bichos, insetos. Colocam cal nos troncos. Será que é eficiente mesmo? Eles parecem fazer a pintura sem questionar, sem pensar. É simplesmente automático. Mas eu não consigo parar de me perguntar - por que pintar todos troncos de branco? Para que todo esse trabalho? Para que ter as árvores todas de camiseta branca, uniformizadas?
Meus questionamentos depois causaram perplexidade, quando fiz perguntas na universidade para um ou outro. De fato, pintar as árvores de branco parece ser algo tão tradicional e automático que ninguém sabe o porquê, ninguém sequer parece ter refletido sobre o assunto. “Não é para sinalizar as árvores para os motoristas, para evitar acidentes?”, me pergunta um estudante. Talvez, mas, retruco, então por que pintar uma árvore que fica no centro de um parque, cercada de árvores de troncos grossos de todos os lados? O carro vai chegar lá, no meio? O estudante balança a cabeça, mudo. Pedimos outra cerveja. A Bavaria (certamente não a mesma servida no Brasil!) chega perfeita, suando, com colarinho regulamentar de três centímetros, meio litro de puro deleite. As risadas retrospectivas do dia seguem um pouco mais e são afogadas nos goles gelados, aliviando o calor suave da noite.
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Sunday, 6 October 2013
Diário de Almaty (II)
04 e 05/04/2012
Poeira, ar cinza, ar seco. Calor às 8h da manhã. Um turbilhão de referências na minha cabeça, na periferia de Almaty. Ao fundo, os picos brancos da cordilheira de Tian Shan, as montanhas celestiais, fazendo a barreira natural do sul. As montanhas me remetem as do filme Os Brutos Também Amam (1953), um clássico do faroeste. Há todo um clima de velho oeste por aqui.
Após comprar algo para comer no supermercado Ramstore, sentamos, eu e meus colegas de faculdade e de viagem, no forte sol da tarde, em frente ao supermercado, à beira da avenida Tole Bi. Quase não consigo abrir os olhos pela luz, pela poeira. No trânsito, os carros em fila passam em câmera lenta. As pessoas são mais rápidas. Pela calçada, algumas russas, loiras, olhos claros, outras cazaques, cabelo negro, olhos puxados, bochechudas. Algumas poucas pessoas com feições misturadas também cruzam à nossa frente. Quase sem olhar para nós.
Duas mulheres agora vêm vindo pela calçada. Uma delas, vestida discretamente; a outra com um generoso decote, peitos quase libertos à mostra, gordinha. Na calça preta estilo jeans, uma daquelas fivelas decorativas, no cinto. Gigante essa fivela, surreal, com cores berrantes, reluzente, feita aparentemente de acrílico. Poucas – duas até agora – crentes muçulmanas, vestindo seus longos vertidos-cortinas. Uma delas, toda de preto, totalmente russa. Seus cabelos dourados meio visíveis embaixo do véu negro. Seus olhos azuis cintilantes atravessando a poeira.
Os prédios residenciais da era soviética, caixas de concreto que, por aqui, têm seus detalhes singulares na fachada, referências a padrões decorativos orientais, curvos e geométricos. De Brasil, nada, ou quase nada. Na Ramstore, um tetrapak com suco de laranja “com laranjas brasileiras”. O calor de fato lembra o verão de São Paulo, e a poluição de veículos, e a poeira, um meio-dia em alguma periferia paulistana.
Estou numa cidade vibrante. Uma urbe poderosa, bagunçada, um monumento à pujança capitalista.
Passados alguns minutos, caminhamos para o alojamento estudantil a uma quadra da Tole Bi. O lugar oferece o mínimo necessário – cama, banheiro, algum lençol. Espero não passar frio à noite. Não vejo muitos cobertores. Tudo por aqui é muito seco. Minha garganta está raspando. Além da janela do quarto, caminhões e carros se estranham no asfalto fervente. A cortina não é nada contra a luz de fora. O sono da viagem ainda me persegue e torna tudo meio irreal, meio sonho. Claro demais. Cochilo até a tarde.
Bom voltar ao Turquestão.
***
Max passou três anos nos Estados Unidos. Não resistiu e perguntou de onde nós éramos, depois de nos encontrar em um restaurante perto de uma linda igreja ortodoxa não longe da Tole Bi, no centro da cidade. Sotaque americano, roupa formal, gravata, blazer, e o ouro brilhantíssimo substituindo os caninos superiores. Achou incrível que eu e meus colegas estamos estudando cazaque, língua que, segundo ele, é difícil demais. Não parou de fazer perguntas, claramente para exercitar o inglês. Diz que quer ir ao Rio (todos em todos os países do mundo parecem ter o mesmo desejo) e fala do Rio como se fosse o paraíso na Terra. Não quero nem conseguiria estilhaçar seu sorriso – digo e repito que o Rio é o Éden, que ele vai ser bem-vindo na minha terra distante. Digo que lá vão cansá-lo de tanto fazer perguntas sobre o seu país, este país.
- Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas só conhece o Cazaquistão por causa do Borat. Muitos acham que meu país é uma ficção, uma piada – diz Max, com rosto que não demonstra condenar nem aprovar os americanos.
- Claro - respondo a ele -, no Brasil também. Infelizmente.
O restaurante é bem muçulmano. Curioso encontrar indícios de um vigoroso Islã arranhando a superfície de uma cidade à primeira vista tão secular, com tantas moças desfilando decotes, salto alto, maquiagem e cabelos ao sol e homems de terno, gravata, face bem barbeada e até nomes como “Max” (na certa, um apelido adotado pelo nosso amigo para torná-lo pronunciável para nós, visitantes). Dentro do restaurante, as mulheres estão todas cobertas, da cabeça aos pés, orgulhosas de seus véus. Me lembra o Vale de Fergana, o de Namangan, o de Margilan. Na TV, um programa ensina árabe corânico em cazaque. O professor-apresentador usa um chapéu parecido com o chapéu dopee uzbeque. Max me interrompe prontamente – o chapéu é parecido, mas o professor é cazaque.
Conversamos sobre a cidade. De manhã, um taxista, nos levando do aeroporto para o alojamento, nos pediu para comparar Almaty com a capital do Uzbequistão. “É parecida com Tashkent?” me perguntou, após eu mencionar que havia estado lá. Digo que sim, com a Tashkent de 2003 em mente. Avenidas de várias pistas, soviéticas, bulevares com árvores e mais árvores, fantasmagóricos edifícios do antigo Partido Comunista, com sólidas fundações, para não desabar nem com o pior dos terremotos. Um de meus colegas fala que Almaty lhe lembrou a Moscou de dez anos atrás: grande, agitada, mas ainda não tão sufocante como hoje. Coincidência eu ter estado em Moscou mais ou menos na mesma época que ela, no início da década passada.
Há 20 anos, talvez Almaty fosse irreconhecível. Lembro-me da impressão de Colin Thubron. Sua visão da cidade no Cazaquistão ainda recém-independente, em 1992:
From my balcony in Almaty there was no sign that I was in a city at all. I looked across parklands where the spires of a cathedral hoisted gold crosses against the mountains (…) its grid of streets, mounting southward to the Tienshan foothills, ran half empty through hosts of oaks and poplars. Sometimes so dense were these trees, I imagined I was walking along tarmac tracks through a forest.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
Uma cidade não cidade, um parque. Nada parecido com o que vejo. Ainda.
Ainda no restaurante, nos despedimos de Max. Já é bem de noite, e finalmente está ficando mais fresco e menos seco. Esperamos o bonde, que não aparece. Os ônibus que param estão superlotados. Acabamos voltando a pé para o alojamento, uma hora de caminhada. Meu colega Michael - um ex-policial britânico com seus 50 anos, careca, olhar e semblante duro, militar -, menciona no caminho a teoria verossímil de que Max era na verdade um agente do governo cazaque que veio averiguar que tipo de perigo representamos para o regime, se somos espiões, se somos agentes da ameaça estrangeira.
Na caminhada, à beira da Tole Bi, os playgrounds da elite brilham e piscam. Restaurantes grã-finos, todos meio vazios. Será que é porque é cedo, e os ricaços só aparecem depois? Um deles se chama Mammamia – escrito em cirílico, parece uma cópia pirata de um restaurante italiano. Passamos por uma lojinha de roupas. O nome, escrito em caracteres ocidentais, que por aqui é tão chique: Seniorita. Alguém deve ter tentado copiar o que ouviu em espanhol e não ficou muito bom. Dois dos meus colegas ainda têm energia para comprar umas cervejas. Fico tentado, mas vou dormir. Noite fresca. Nada de mosquitos. Dividindo o quarto comigo, um colega coreano, que chega às 2h da manhã, tropeçando. Sinto o cheiro de cerveja.
***
Acordo cedo para ir à escola. A antiga sede do Parlamento da República Soviética do Cazaquistão, na Tole Bi, é um imponente prédio com largas colunas de pedra sustentando a fachada, como um templo grego. A tinta descascando das paredes externas já sugere sua glória decadente. Dentro, o prédio parece chorar de saudade do tempo em que foi um dos mais importantes ou quiçá o mais importante da cidade. Paredes com massa corrida à mostra, soluções desleixadas para cobrir buracos. Lâmpadas que não funcionam. Corredores escuros, chão gasto de tacos de madeira, a escadaria com seus degraus de mármore com pedaços quebrados, desaparecidos. Depois da glória passada, a revanche presente. Mas o prédio está muito vivo. Hoje é a sede da Universidade Técnica Cazaque-Britânica, conhecida localmente como KBTU, onde eu e meus colegas vamos estudar durante as próximas duas semanas. Centenas de jovens cazaques bem-nutridos frequentam seus corredores, fofocam, se beijam, tocam música bate-estaca em alto volume para promover festas do centro acadêmico.
O edifício fica no centro velho de Almaty, numa zona de transição entre a região do bazar e a parte mais europeia da cidade, a que lhe dá a maior fama de cidade agradável, menos empoeirada que o subúrbio onde estou hospedado. Aqui há parques, catedrais e prédios soviéticos maquiados com cores que se assentam com facilidade no olhar. Provavelmente foi algum lugar por aqui que Thubron descreveu.
Novamente, o sol forte transforma tudo. Se ontem ele me levava ao velho oeste, agosta ele ressalta de forma estranha as cores, como uma foto da infância. Bebês e crianças combinam bem com este mundo. Estão em todo lugar nas praças. A linda, linda catedral, famosa nos quatro cantos da antiga URSS, inteirinha de madeira, sem pregos, eu logo encontrei perto da KBTU, no Parque Panfilov. Trata-se provavelmente do prédio mais conhecido de Almaty, o mais celebrado. Predominantemente amarela e branca, a Catedral da Ascenção, completada em 1907, parece de brinquedo. Fora, tem um xadrez vermelho e azul levando às cebolas douradas e às cruzes. Atrai como um imã, engole quem a observa, sem que se esboce reação. Brinquedo como se apresenta, alegra as crianças, que a circundam correndo, rindo, pulando. Ao entrar, porém, eis um quê mais soturno, como em todas as catedrais ortodoxas russas. A névoa das velas, as sombras se apresentam. Santos com olhares pesados, sombrios, frios. Impondo penitência. Nada se assemelha a um brinquedo. A catedral é de fato uma armadilha. Seduz com sua colorida fachada para que encaremos nossa culpa cristã, nosso pecado, a morte de nosso Salvador.
Este é um mundo que se formou tarde. Estranho pensar que Almaty, a capital do Cazaquistão até 1997, surgiu só em 1854 – ou seja, 300 anos após minha São Paulo. Verny (o nome de Almaty na época do Império Russo) surgiu como surgiram muitos outras cidades na Ásia Central e no Cáucaso sob domínio dos czares: como uma fortaleza dos cossacos, duros pioneiros das mais distantes e inóspitas paragens. O local da nova cidadezinha fora ocupado no passado por um assentamento, Almatu, alvo de invasões bárbaras durante séculos, ator do rico comércio da chamada Rota da Seda, ligando a China ao Ocidente. O velho nome renasceu, transformando Verny em Alma-Ata já nos tempos soviéticos. Assim perdurou até mudar para o Almaty atual em 1993, após a independência.
A cidade testemunhou transformações radicais em 158 anos, especialmente nas últimas cinco décadas. Num país em que toda a tradição cultural está ligada ao nomadismo e à economia pastoril, aos vastos espaços abertos e aos rebanhos, a ideia de cidade foi quase sempre desconfortável para os cazaques. As maiores cidades “cazaques” desde os tempos do império e na União Soviética permaneceram dominadas por não-cazaques. Muitos russos emigraram para a região em busca de terras, ou para trabalhar como burocratas durante décadas em que pouquíssimos cazaques sabiam russo e tinham educação suficiente para desempenhar tarefas básicas da administração. Alma-Ata era um excelente exemplo. Bhavna Dave em Kazakhstan - Ethnicity, Language and Power (2007), destaca que, em 1959, os cazaques eram menos que 10% da população. Além disso, nos tempos soviéticos, o reassentamento de populações inteiras não-russas colaborou para tornar os cazaques estrangeiros em sua própria terra. Legiões de chechenos, coreanos e alemães do Volga passaram a viver no Cazaquistão. Muitos depois voltaram a suas terras de origem, muitos ficaram. Coreanos realmente não faltam em Almaty. Estão por toda parte.
Mas o povo cazaque foi retomando o que foi seu. Especialmente a partir de Brezhnev, não demorou para jogarem as regras do jogo, aprenderem russo, abraçarem as hierarquias e burocracias e sombrias alianças políticas e assim, espertamente, garantirem um certo grau de libertação de Moscou. E mais e mais, desde a independência, quando políticas estatais passaram a valorizar o uso da língua cazaque e trazer comunidades exiladas de volta do exterior. Ainda que desenraizados de sua pátria-mãe, muitos russos há gerações no Cazaquistão decidiram nos últimos 20 anos partir de volta para o norte, temendo algum nacionalismo cazaque. Outros, decidiram ficar e se encaixar de forma desconfortável à nova realidade de estar atrás da nacionalidade “dominante”.
Mas em Almaty, pelo menos, isso de dominância não é óbvio. Em toda parte se fala russo e há russos, que seriam cerca de 30% da população. E todos vivem em paz. As línguas cazaque e russa convivem. O Cristianismo ortodoxo dos eslavos e o Islamismo tradicional dos locais se cumprimentam. A cerca de um quilômetro da grande catedral de brinquedo, eis a maior mesquita da cidade e sua cúpula dourada. Me pergunto o porque dessa paz, se, em outros locais da antiga URSS, tanto sangue foi derramado em nome de etnias e fés.
De noite, o momento mais surreal do dia. Estudantes da universidade nos convidam para assistir um concurso de miss e mister KBTU. Apresentações de dança e filmes curtos produzidos pelos próprios participantes do concurso, que não avalia tanto a beleza, mas principalmente o talento artístico e o carisma dos jovens. O ponto alto foi um gordinho rebolando ao som de Michel Teló. Ai se eu te pego no Cazaquistão. Muitos dos estudantes cantam no palco sucessos americanos. Os curta-metragens que fizeram são de inspiração hollywoodiana. Em Almaty, mas muito mais em outro lugar. O tempo virou. Agora, uma chuvinha. A grande cidade vai ficando aos pouco em silêncio. Logo, logo, sequer um carro na rua.
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Poeira, ar cinza, ar seco. Calor às 8h da manhã. Um turbilhão de referências na minha cabeça, na periferia de Almaty. Ao fundo, os picos brancos da cordilheira de Tian Shan, as montanhas celestiais, fazendo a barreira natural do sul. As montanhas me remetem as do filme Os Brutos Também Amam (1953), um clássico do faroeste. Há todo um clima de velho oeste por aqui.
Após comprar algo para comer no supermercado Ramstore, sentamos, eu e meus colegas de faculdade e de viagem, no forte sol da tarde, em frente ao supermercado, à beira da avenida Tole Bi. Quase não consigo abrir os olhos pela luz, pela poeira. No trânsito, os carros em fila passam em câmera lenta. As pessoas são mais rápidas. Pela calçada, algumas russas, loiras, olhos claros, outras cazaques, cabelo negro, olhos puxados, bochechudas. Algumas poucas pessoas com feições misturadas também cruzam à nossa frente. Quase sem olhar para nós.
Duas mulheres agora vêm vindo pela calçada. Uma delas, vestida discretamente; a outra com um generoso decote, peitos quase libertos à mostra, gordinha. Na calça preta estilo jeans, uma daquelas fivelas decorativas, no cinto. Gigante essa fivela, surreal, com cores berrantes, reluzente, feita aparentemente de acrílico. Poucas – duas até agora – crentes muçulmanas, vestindo seus longos vertidos-cortinas. Uma delas, toda de preto, totalmente russa. Seus cabelos dourados meio visíveis embaixo do véu negro. Seus olhos azuis cintilantes atravessando a poeira.
Os prédios residenciais da era soviética, caixas de concreto que, por aqui, têm seus detalhes singulares na fachada, referências a padrões decorativos orientais, curvos e geométricos. De Brasil, nada, ou quase nada. Na Ramstore, um tetrapak com suco de laranja “com laranjas brasileiras”. O calor de fato lembra o verão de São Paulo, e a poluição de veículos, e a poeira, um meio-dia em alguma periferia paulistana.
Estou numa cidade vibrante. Uma urbe poderosa, bagunçada, um monumento à pujança capitalista.
Passados alguns minutos, caminhamos para o alojamento estudantil a uma quadra da Tole Bi. O lugar oferece o mínimo necessário – cama, banheiro, algum lençol. Espero não passar frio à noite. Não vejo muitos cobertores. Tudo por aqui é muito seco. Minha garganta está raspando. Além da janela do quarto, caminhões e carros se estranham no asfalto fervente. A cortina não é nada contra a luz de fora. O sono da viagem ainda me persegue e torna tudo meio irreal, meio sonho. Claro demais. Cochilo até a tarde.
Bom voltar ao Turquestão.
***
Max passou três anos nos Estados Unidos. Não resistiu e perguntou de onde nós éramos, depois de nos encontrar em um restaurante perto de uma linda igreja ortodoxa não longe da Tole Bi, no centro da cidade. Sotaque americano, roupa formal, gravata, blazer, e o ouro brilhantíssimo substituindo os caninos superiores. Achou incrível que eu e meus colegas estamos estudando cazaque, língua que, segundo ele, é difícil demais. Não parou de fazer perguntas, claramente para exercitar o inglês. Diz que quer ir ao Rio (todos em todos os países do mundo parecem ter o mesmo desejo) e fala do Rio como se fosse o paraíso na Terra. Não quero nem conseguiria estilhaçar seu sorriso – digo e repito que o Rio é o Éden, que ele vai ser bem-vindo na minha terra distante. Digo que lá vão cansá-lo de tanto fazer perguntas sobre o seu país, este país.
- Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas só conhece o Cazaquistão por causa do Borat. Muitos acham que meu país é uma ficção, uma piada – diz Max, com rosto que não demonstra condenar nem aprovar os americanos.
- Claro - respondo a ele -, no Brasil também. Infelizmente.
O restaurante é bem muçulmano. Curioso encontrar indícios de um vigoroso Islã arranhando a superfície de uma cidade à primeira vista tão secular, com tantas moças desfilando decotes, salto alto, maquiagem e cabelos ao sol e homems de terno, gravata, face bem barbeada e até nomes como “Max” (na certa, um apelido adotado pelo nosso amigo para torná-lo pronunciável para nós, visitantes). Dentro do restaurante, as mulheres estão todas cobertas, da cabeça aos pés, orgulhosas de seus véus. Me lembra o Vale de Fergana, o de Namangan, o de Margilan. Na TV, um programa ensina árabe corânico em cazaque. O professor-apresentador usa um chapéu parecido com o chapéu dopee uzbeque. Max me interrompe prontamente – o chapéu é parecido, mas o professor é cazaque.
Conversamos sobre a cidade. De manhã, um taxista, nos levando do aeroporto para o alojamento, nos pediu para comparar Almaty com a capital do Uzbequistão. “É parecida com Tashkent?” me perguntou, após eu mencionar que havia estado lá. Digo que sim, com a Tashkent de 2003 em mente. Avenidas de várias pistas, soviéticas, bulevares com árvores e mais árvores, fantasmagóricos edifícios do antigo Partido Comunista, com sólidas fundações, para não desabar nem com o pior dos terremotos. Um de meus colegas fala que Almaty lhe lembrou a Moscou de dez anos atrás: grande, agitada, mas ainda não tão sufocante como hoje. Coincidência eu ter estado em Moscou mais ou menos na mesma época que ela, no início da década passada.
Há 20 anos, talvez Almaty fosse irreconhecível. Lembro-me da impressão de Colin Thubron. Sua visão da cidade no Cazaquistão ainda recém-independente, em 1992:
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia
Na caminhada, à beira da Tole Bi, os playgrounds da elite brilham e piscam. Restaurantes grã-finos, todos meio vazios. Será que é porque é cedo, e os ricaços só aparecem depois? Um deles se chama Mammamia – escrito em cirílico, parece uma cópia pirata de um restaurante italiano. Passamos por uma lojinha de roupas. O nome, escrito em caracteres ocidentais, que por aqui é tão chique: Seniorita. Alguém deve ter tentado copiar o que ouviu em espanhol e não ficou muito bom. Dois dos meus colegas ainda têm energia para comprar umas cervejas. Fico tentado, mas vou dormir. Noite fresca. Nada de mosquitos. Dividindo o quarto comigo, um colega coreano, que chega às 2h da manhã, tropeçando. Sinto o cheiro de cerveja.
***
Acordo cedo para ir à escola. A antiga sede do Parlamento da República Soviética do Cazaquistão, na Tole Bi, é um imponente prédio com largas colunas de pedra sustentando a fachada, como um templo grego. A tinta descascando das paredes externas já sugere sua glória decadente. Dentro, o prédio parece chorar de saudade do tempo em que foi um dos mais importantes ou quiçá o mais importante da cidade. Paredes com massa corrida à mostra, soluções desleixadas para cobrir buracos. Lâmpadas que não funcionam. Corredores escuros, chão gasto de tacos de madeira, a escadaria com seus degraus de mármore com pedaços quebrados, desaparecidos. Depois da glória passada, a revanche presente. Mas o prédio está muito vivo. Hoje é a sede da Universidade Técnica Cazaque-Britânica, conhecida localmente como KBTU, onde eu e meus colegas vamos estudar durante as próximas duas semanas. Centenas de jovens cazaques bem-nutridos frequentam seus corredores, fofocam, se beijam, tocam música bate-estaca em alto volume para promover festas do centro acadêmico.
O edifício fica no centro velho de Almaty, numa zona de transição entre a região do bazar e a parte mais europeia da cidade, a que lhe dá a maior fama de cidade agradável, menos empoeirada que o subúrbio onde estou hospedado. Aqui há parques, catedrais e prédios soviéticos maquiados com cores que se assentam com facilidade no olhar. Provavelmente foi algum lugar por aqui que Thubron descreveu.
Novamente, o sol forte transforma tudo. Se ontem ele me levava ao velho oeste, agosta ele ressalta de forma estranha as cores, como uma foto da infância. Bebês e crianças combinam bem com este mundo. Estão em todo lugar nas praças. A linda, linda catedral, famosa nos quatro cantos da antiga URSS, inteirinha de madeira, sem pregos, eu logo encontrei perto da KBTU, no Parque Panfilov. Trata-se provavelmente do prédio mais conhecido de Almaty, o mais celebrado. Predominantemente amarela e branca, a Catedral da Ascenção, completada em 1907, parece de brinquedo. Fora, tem um xadrez vermelho e azul levando às cebolas douradas e às cruzes. Atrai como um imã, engole quem a observa, sem que se esboce reação. Brinquedo como se apresenta, alegra as crianças, que a circundam correndo, rindo, pulando. Ao entrar, porém, eis um quê mais soturno, como em todas as catedrais ortodoxas russas. A névoa das velas, as sombras se apresentam. Santos com olhares pesados, sombrios, frios. Impondo penitência. Nada se assemelha a um brinquedo. A catedral é de fato uma armadilha. Seduz com sua colorida fachada para que encaremos nossa culpa cristã, nosso pecado, a morte de nosso Salvador.
Este é um mundo que se formou tarde. Estranho pensar que Almaty, a capital do Cazaquistão até 1997, surgiu só em 1854 – ou seja, 300 anos após minha São Paulo. Verny (o nome de Almaty na época do Império Russo) surgiu como surgiram muitos outras cidades na Ásia Central e no Cáucaso sob domínio dos czares: como uma fortaleza dos cossacos, duros pioneiros das mais distantes e inóspitas paragens. O local da nova cidadezinha fora ocupado no passado por um assentamento, Almatu, alvo de invasões bárbaras durante séculos, ator do rico comércio da chamada Rota da Seda, ligando a China ao Ocidente. O velho nome renasceu, transformando Verny em Alma-Ata já nos tempos soviéticos. Assim perdurou até mudar para o Almaty atual em 1993, após a independência.
A cidade testemunhou transformações radicais em 158 anos, especialmente nas últimas cinco décadas. Num país em que toda a tradição cultural está ligada ao nomadismo e à economia pastoril, aos vastos espaços abertos e aos rebanhos, a ideia de cidade foi quase sempre desconfortável para os cazaques. As maiores cidades “cazaques” desde os tempos do império e na União Soviética permaneceram dominadas por não-cazaques. Muitos russos emigraram para a região em busca de terras, ou para trabalhar como burocratas durante décadas em que pouquíssimos cazaques sabiam russo e tinham educação suficiente para desempenhar tarefas básicas da administração. Alma-Ata era um excelente exemplo. Bhavna Dave em Kazakhstan - Ethnicity, Language and Power (2007), destaca que, em 1959, os cazaques eram menos que 10% da população. Além disso, nos tempos soviéticos, o reassentamento de populações inteiras não-russas colaborou para tornar os cazaques estrangeiros em sua própria terra. Legiões de chechenos, coreanos e alemães do Volga passaram a viver no Cazaquistão. Muitos depois voltaram a suas terras de origem, muitos ficaram. Coreanos realmente não faltam em Almaty. Estão por toda parte.
Mas o povo cazaque foi retomando o que foi seu. Especialmente a partir de Brezhnev, não demorou para jogarem as regras do jogo, aprenderem russo, abraçarem as hierarquias e burocracias e sombrias alianças políticas e assim, espertamente, garantirem um certo grau de libertação de Moscou. E mais e mais, desde a independência, quando políticas estatais passaram a valorizar o uso da língua cazaque e trazer comunidades exiladas de volta do exterior. Ainda que desenraizados de sua pátria-mãe, muitos russos há gerações no Cazaquistão decidiram nos últimos 20 anos partir de volta para o norte, temendo algum nacionalismo cazaque. Outros, decidiram ficar e se encaixar de forma desconfortável à nova realidade de estar atrás da nacionalidade “dominante”.
Mas em Almaty, pelo menos, isso de dominância não é óbvio. Em toda parte se fala russo e há russos, que seriam cerca de 30% da população. E todos vivem em paz. As línguas cazaque e russa convivem. O Cristianismo ortodoxo dos eslavos e o Islamismo tradicional dos locais se cumprimentam. A cerca de um quilômetro da grande catedral de brinquedo, eis a maior mesquita da cidade e sua cúpula dourada. Me pergunto o porque dessa paz, se, em outros locais da antiga URSS, tanto sangue foi derramado em nome de etnias e fés.
De noite, o momento mais surreal do dia. Estudantes da universidade nos convidam para assistir um concurso de miss e mister KBTU. Apresentações de dança e filmes curtos produzidos pelos próprios participantes do concurso, que não avalia tanto a beleza, mas principalmente o talento artístico e o carisma dos jovens. O ponto alto foi um gordinho rebolando ao som de Michel Teló. Ai se eu te pego no Cazaquistão. Muitos dos estudantes cantam no palco sucessos americanos. Os curta-metragens que fizeram são de inspiração hollywoodiana. Em Almaty, mas muito mais em outro lugar. O tempo virou. Agora, uma chuvinha. A grande cidade vai ficando aos pouco em silêncio. Logo, logo, sequer um carro na rua.
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