Sunday, 24 November 2013

Diário de Almaty (VIII)

21 e 22/4

Voltei à região do bazar para dar uma nova olhada na mesquita central, com sua grande cúpula dourada. Ela foi construída em 1999 no lugar de uma antiga mesquita, do final do século XIX. Tão nova e brilhante, com seu mármore branco, me parece ainda um objeto meio estranho em meio à paisagem bagunçada do bazar. Como se ainda estivesse tentando se adaptar ao seu ambiente.

O Islã chegou tarde aos Cazaquistão e sofreu transformações, se misturando às tradições locais dos pastores, dos mongóis. Xamanismo. Animismo.Apenas nos oásis do sul, onde se fixou uma população sedentária, o Islã surgiu com maior firmeza. Aí se construíram madrassas, se construíram mesquitas. Bukhara, no Uzbequistão, foi durante séculos um dos maiores centros do Islã no mundo. Mas nas estepes mais para o norte, entre os cazaques e seu estilo de vida tradicionamente nômade, foram os sufis os grandes responsáveis por espalhar o Islã.

The only real contact that most Kazakhs had with Islam seems to have been through Sufi Holy Men who travelled the steppes (...) Eighteenth-century observers note the complete absence of Mosques and Madrassas in the Steppes, while those in Semirech’e (sudeste do Cazaquistão) and southern Kazakhstan do not seem to have been rebuilt after the Mongol devastation of the cities.
- Martha Olcott, The Kazakhs

O sufismo é o lado espiritual do Islã, um caminho pelo qual o fiel busca uma relação mais direta e íntima com Alá. Na Ásia Central, os sufis absorveram essas tradições locais. Há um sincretismo. O profeta caminha de forma diferente.

Tudo isso precisa ser visto sob a sombra de décadas de comunismo, quando a religião era no melhor dos casos tolerada, quando não reprimida. E em cidades russificadas como Almaty, essa herança de a religião não ser tão forte, tão importante, é mais presente. Ainda que a independência tinha jogado os cidadãos em uma jornada em busca de sua identidade mais profunda, aqui e em toda a ex-União Soviética. Ainda que digam que por aqui, em algum lugar, já há radicais islâmicos para os quais o sufismo tradicional daqui é uma completa heresia.

Entrando na mesquita a vejo de novo quase vazia, desta vez às seis da tarde de uma sexta-feira de forte calor. Os que estão aqui são jovens, em sua maioria. Um grupo jaz alinhado, um rapaz ao lado do outro, à minha frente. À frente deles, o que parece ser o líder do grupo, outro jovem, mais perto do mihrab (o local que indica a direção de Meca na mesquita). Outros chegam e se alinham ao lado dos que já estavam lá. Embora o salão seja bem espaçoso, os que aparecem preferem ficar juntos com os que lá já estão. Duvido que se conheçam. O clima é de tranquilidade, veneração, o silêncio faz bem à cabeça. O Islã é paz. Incrível que tantas guerras sejam travadas em torno dele.

Saio. O sol começa a enfraquecer, em tons dourados. Uma rua lateral está ocupada por vendedores de Corões, de colares usados para contar preces. Meio escondido em um corredor, embaixo de um prédio, encontro um vendedor de chapéus. Encontro um incomum, circular, como uma barraca com teto cônico, mas não muito alto, quase que apenas cobrindo o alto da cabeça.Veludo preto, bordado em motivos azuis e brancos. Compro dois, um para mim, um para um amigo. O vendedor queria 2 mil tenge (cerca de R$ 30) por cada um. Barganho e ele reduz para 1,5 mil, ainda salgado. Cansa negociar toda hora, ainda mais sem saber a língua local. E acho que o vendedor, simpático, merece um lucrozinho.

No bazar, a fascinação das cores. Mas eu encontro poucos homens usando o chapéu cônico que comprei. Não é como no Uzbequistão, onde quase todos os homens usam o chapéu Doppe, preto e com base quadrada. Vejo os cazaques usando o acessório só mais perto da mesquita. As mulheres, por outro lado, usam frequentemente o véu cobrindo o cabelo no mercado. Algumas inclusive cobrem também o pescoço, mas não usam aquele véu cobrindo todo o rosto, muito menos burcas. Essas mulheres com o pescoço escondido provavelmente vêm do interior, mais conservador. Aqui, ficam misturadas com adolescentes de minissaias e suculentos decotes.

Em um canto, ouço em um alto-falante uma música tradicional em cazaque com os acordes de dombra. Em outro canto, de novo, o Michel Teló. Caminho mais. Volto ao parque da catedral daAscenção e suas cores, cercada de russos. Cruzo a Tole Bi, miro as montanhas. Aqui, na Ablai Khan, estou em alguma avenida chique de alguma cidade europeia. Sento num café, peço um café com leite. Passam pela rua ao lado as Mercedes. Ao lado, uma casa de chá estilo francês. Não longe da vista, um restaurante italiano. Todos vestindo jeans, camisetas, tênis, maquiagem, blazers. Uso meu celular para usar a rede wi-fi. Falo com o Brasil pelo Skype.


***

À noite, com meus colegas, mais cerveja. Os cazaques, ao que parece, gostam de cerveja de trigo, esbranquiçada, gelada. Tem uma aqui que amei. Chama-se Urso Branco. Para ser tomada em generosas canecas.








































Rimos bem alto quando chegou à mesa a Urso Branco que uma colega tinha pedido. A caneca chega à mesa com um canudo plástico. Cerveja com canudo? Gargalhadas, fotos. Sim, explica a garçonete. Assim, apenas para as mulheres. Por quê? Aqui não é hábito as mulheres tomarem cerveja como os homens, com a brutalidade de tocar com os lábios o vidro frio. O canudo resolve isso e permite sorver o néctar mais devagar. É isso que a garçonete explica. A isso, adiciono – é também mais sexy, não? Mas não creio que as cazaques tomem cerveja pensando que isso as deixa mais atraentes.

Terminada a cerveja, mais um choque cultural. A caminho do alojamento, entro em uma loja. Queria comprar uns doces e um salgadinho para comer no dia seguinte no café da manhã. A loja parece uma padaria – balcões de vidro, produtos nas paredes, atendentes atrás deles. Não há divisões – há os atendentes, os balcões, e os caixas, dois deles, em locais diferentes do salão, no centro do qual há prateleiras com salgadinhos e doces.

A unidade da loja, porém, é uma tola ilusão, logo descubro. Simples assim – quer comprar doces? Pague no caixa da mulher ali, que é dona deste balcão e destes doces. Quer salgados? Pague para a outra dona, no caixa do outro lado, que é a responsável pelos salgados nesta prateleira aqui. Demoro para entender que são pequenos empresários trabalhando no mesmo espaço, mas separadamente. Eu, como estrangeiro e alheio a isso, pego tudo o que quero e vou para um dos caixas. A mulher dos doces me recebe e fala, fala de novo, grita, que eu devo pagar os salgados primeiro no outro balcão. Claro que não entendo nada. Digo só que quero pagar. Ela grita mais alto (para tantos, um estrangeiro que não sabe falar a língua é basicamente uma pessoa surda, então imaginam que elevando a voz vamos entender tudo direitinho). Passam-se cinco minutos de stress. Com muito esforço, finalmente entendo a complicação. Mais uma para lembrar no futuro.


***

Há uma semana atrás parte do nosso grupo da Inglaterra fez uma excursão de um dia a um canyon não muito longe de Almaty. Não fui. Depois, me mostraram empolgados as fotos. Realmente, parecia um cenário de filme de bangue-bangue, algo saído de Utah ou do Arizona. Me falaram do calor, intenso, da caminhada de meia hora pelo desfiladeiro até chegara um rio. Um alívio em um deserto.

Na semana anterior, fomos, o grupo inteiro, ao Medeo e ao Shimbulak. No Shimbulak tudo branco – aquela neve toda, apesar do calorão na cidade.

Hoje, embarquei sem meus colegas de universidade em um ônibus para um excursão de um dia, na qual visitei um bonito lago de montanha e uma cachoeira em reservas florestais a oeste da cidade, rumo à China. Ao redor do lago e da cachoeira, um cenário deslumbrante – lindas montanhas, lindos vales. Pinheiros nas encostas. Nas montanhas mais altas, à distância, ainda neve nos cumes. Ao meu redor, árvores e arbustos com flores e pássaros desconhecidos fazendo algazarra. A exuberância da primavera num cenário de montanhas boreais.

O lago, Yssik (fácil de confundir com o gigante Issyk Kul, no Quirguistão), é verde-esmeralda, alimentado pela água do degelo dos picos, que vem ziguezagueando encosta abaixo. Às margens dele, famílias se reúnem para preguiçosos piqueniques de domingo. Fiquei hipnotizado pelo verde da água e pela pureza da neve à distância, refletindo com intensidade o clarão do sol. De camiseta apenas, fiquei um pouco arrepiado com o frescor, nada mal, depois de dias e dias derretendo em Almaty.

Resumindo – perto da cidade, enfim, há uma incrível variedade de passeios. Deserto, estação de esqui, montanhas nevadas como as das Rochosas canadenses ou dos Alpes europeus. Mas a natureza é apenas uma das atrações. Não longe e lá mesmo em Almaty, belíssimas construções islâmicas, ruinas arqueológicas milenares, sólidas edificações czaristas e soviéticas, lojas que em nada perdem às de Nova York ou Paris.

Mas o melhor são as pessoas, as personalidades deste povo. Na escursão ao Yssik, criei um carinho silencioso pelo motorista – uma cópia xerox do Lee Van Cleef, caladão, bigodão, sempre fumando, com sua calça e camisa sociais surradas, sujo de poeira, emporcalhado de suor, nunca sorrindo. A guia da escursão – uma gordinha com os olhos meio puxados, uns 50 anos, um penteado surreal com coque mal feito e imenso no cabelo negro como a graúna, excesso absurdo de maquiagem sufocando a pele do rosto, incluindo um delineador como a moldura de um quadro ao redor dos olhos azuis. Oratória perfeita; conhecimento enciclopédico da região. Séria, como Lee Van Cleef. Risadas, jamais. Não perguntei seu nome. Algo bem russo, aposto, nada cazaque, ela deve ter sido filha e neta de exemplares leninistas. Svetlana? Yevgênia?

Os passageiros mais curiosos: um sujeito vestindo um uniforme militar completo, de camuflagem verde, mas com a camisa com os botões abertos, mostrando a camiseta cinza por baixo e o barrigão de grávido de nove meses. Na cabeça, um boné militar com a foice e o martelo na testa. E o brasileiro aqui, um ser exótico sem dúvida, sem entender o turbilhão de palavras da prolixa guia, sem perturbar o silêncio de Lee Van Cleef, sem perguntar ao barrigudo de uniforme militar se era mesmo militar ou apenas fã do Exército Vermelho. E admirando este planeta várias órbitas distantes do meu mundinho da zona sul paulistana.

Na volta para Almaty, o lusco-fusco noturno. Em cada vilarejo que encontramos no caminho, pobreza, mas não miséria. Não há favelas, não há vacas esqualidas e crianças e velhos pedindo esmola. Há casinhas simples e moleques curiosos, com rostos redondos, acenando para o ônibus. Vacas em bandos, gordinhas, sendo tocadas por um pasto preguiçoso. Mais para a frente, outro vilarejo, outro rebanho, desta vez de ovelhas. Na estrada, lá se vão um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito outdoors com imagens de Nazarbayev sorrindo, jovial, ou em poses sérias, oficiais.

Na Tole Bi, pego o ônibus 16. O cobrador repete o mantra de todo dia, para todos ouvirem – priama pa Tole Bi (direto pela Tole Bi) – aos potenciais passageiros em cada ponto no caminho. O coletivo não enche. A passageira ao lado, no celular, repete, duas vezes, au?. “O quê?”, em cazaque. Por aqui, todos os cães são meio surdos, pelo jeito.

Dou uma risada solitária. Quem aqui, a não ser eu, poderia entender essa piada?

Me despeço. Volto em setembro, Almaty.

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