Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Sunday, 20 October 2013
Diário de Almaty (IV)
09/04/2012.
Almaty, ex-Alma-Ata. Alma significa maçã em cazaque. Ata, avô. Eis a cidade, então, Avô das Maçãs. É impossível por aqui escapar da fruta, que aparentemente tem sua origem nesta região do mundo. Seria no sul do Cazaquistão o Jardim do Édem original, onde se erguia a macieira que amaldiçoou Adão e Eva? Não é algo sobre o que muitos refletem a respeito quando abordam ou são abordados pelos vendedores de maçãs, nas ruas, nos bazares. Em alguns lugares do centro você parece nunca estar longe de um vendedor, em alguma esquina, perto de algum ponto de ônibus.
E as frutas, não muito grandes, não muito vermelhas. Doces como o mel. Elas estão em outdoores nas ruas, exaltando o orgulho de cidade. E mais, há até estátuas. Encontrei três. Uma fica no Kok Tobe (“colina verde”), um dos pontos obrigatórios para todo visitante. Para subir até o topo de seus 1,1 mil metros, pego um bondinho. São uns seis minutos de jornada. Lá em cima há de tudo para agradar os turistas: a estátua de uma maçã, uma esfera de um metro de diâmetro, de metal. E restaurantes, vendedores de quinquilharias inúteis, mas bonitinhas, e até um minizoológico com alguns bichos deprimidos para a criançada. Mas o principal é a vista: de um lado, a muralha Tian Shan, salpicada de branco, a fronteira natural com o Quirguistão; do outro, a cidade, misturada com a poluição dos carros e a névoa seca. Admiro, sem respirar fundo. O ar está seco, esse cinza se eleva da cidade, consome meu nariz, meus brônquios. Lembro de casa.
O colega português do meu grupo admira o panorama urbano e fala, com ar de grande especialista, que a cidade “tem potencial”. Não entendo o que ele quer dizer ao certo. Possivelmente que a cidade pode crescer mais, virar uma megalópole? Espero que não. Pertinho do relaxante centro grã-fino e arborizado, há já avenidas com o trânsito pesado, em que os congestionamentos são constantes, ainda que nem de longe comparáveis aos de São Paulo. Um exemplo é a Tole Bi. Mas se há um quesito em relação ao trânsito em que Almaty bate fácil as maiores cidades brasileiras é certamente na desorganização. Claramente não foi preparada para receber o incremento de circulação que veio com a prosperidade dos últimos anos, que permitiram aos moradores se orgulhar de seus possantes importados. Até agora, já vi quatro colisões, acontecendo bem na minha frente. Olho para o lado, vem o carro, vai tentar fazer a conversão para sair da avenida, e bam! Bate em cheio no motorista distraído que vem do outro lado. E ai do pedestre que queira cruzar a rua – isso é esporte radical, os motorizados te olham e já aceleram mais, parecem estarem brincando de pega-pega. A cidade tem bem menos semáforos do que precisa. Bem menos locais para travessia de pedestres do que precisa. Bem menos guardas de trânsito do que precisa e bem menos motoristas conscientes do que precisa.
Pelo menos, ainda há uma certa tranquilidade: os motoristas ainda não querem se matar. No táxi para a KBTU, nosso motorista é fechado pelo outro veículo, quase bate feio. Os dois carros param, o taxista desce, como que para pedir explicações. Penso: vai dar briga. Os motoristas olham os carros, talvez um risco aqui, um amassadinho acolá. Um pedido de perdão do outro motorista, e o taxista volta para nosso carro, nos pede desculpas pelo inconveniente à nossa jornada. Continuamos rumo à universidade.
***
O tema de meu mestrado, os partidos políticos de oposição, é algo delicado por aqui. Passei o dia usando os computadores da universidade. Confesso que fiquei paranoico (Michael me contaminou?) ao descobrir que os sites de duas das principais agremiações de oposição do país não funcionavam na rede da universidade. Navego normalmente, visito sites brasileiros, e na hora de entrar nesses sites de partidos, o sistema acusa falha na conexão. Pura coincidência? Dentro da KBTU, aliás, há uma pequena banca de jornais. Chego para a senhora vendedora - uma velhinha com óculos, lacônica e nunca sorridente - e pergunto se ela tem o jornal de oposição Respublika. Não tem. Pergunto se tem outro jornal de oposição, o Vzglyad. Não tem. O que tem? Revistas de fofoca e jornais oficialescos. Todos novinhos e reluzentes. Não tenho dúvida de que não é coincidência essa ausência. Fico com a pulga atrás da orelha. Ora, num país com um líder vitalício, supremo e intocável, seria difícil imaginar que oposicionistas possam ser razão de preocupação para o poderoso regime. Mas parece que sim, eles são, de alguma forma. Varridos para baixo do tapete na medida do possível. Muitos deles são falsos oposicionistas, paus mandados. Outros são mais legítimos. Entretanto, ambos ficam praticamente invisíveis, fracos, amedrontados, ainda que sem deixar de existir, para assim manter essa aura de tolerância tão útil quando o presidente, Nursultan Nazarbayev, tenta vender sua imagem nos EUA ou na Europa.
Nazarbayev é como a maçã – sua imagem domina a cidade. Há cartazes espalhados pelas principais avenidas com seus sábios dizeres e fotos dele estrategicamente colocadas nas fachadas de prédios. No meu alojamento, que pertence à universidade, há uns cartazes colados na entrada do refeitório, todo mundo é obrigado a ver ao entrar para comer. Os cartazes mostram a letra do hino nacional, os símbolos nacionais e uma grande foto de Nazarbayev. No museu nacional, na sala dedicada à história do Cazaquistão independente, 20 anos de fotos de Nazarbayev. Nazarbayev jogando tênis, Nazarbayev inaugurando fábricas, Nazarbayev apertando a mão de dignatários estrangeiros. Uma beleza esse presidente, quase um bombril, mil e uma utilidades. Ele é o pivô de um regime autocrático “soft”. Alega que o Cazaquistão é uma democracia; de fato, há eleições regulares. Mas é conversa para boi dormir. A oposição de verdade é marginalizada ao extremo: enfrenta dificuldade em obter dinheiro para funcionar, seus líderes são submetidos a intimidação e não raro são presos, suas ideias passam longe das principais cadeias de TV e rádio – e, como constatei, ainda mais longe das bancas de jornal de universidades elitistas. As leis vagas são interpretadas de forma seletiva para beneficiar Nazarbayev e seus comparsas – por exemplo, candidatos genuinamente de oposição são frequentemente desqualificados de eleições por tecnicalidades baseadas em uma visão tendenciosa da lei. Além disso, os pleitos são cuidadosamente gerenciados por Nazarbayev, que usa sua rede de influência para garantir que os resultados sempre sejam favoráveis ao governo. Mas não é só. O partido governista, Nur Otan, é o único com presença forte em todo o país e na mídia. Tem gente que sequer conhece outro partido a não ser o Nur Otan. Logo, não é de se estranhar que a única oposição atualmente com presença no parlamento é de fachada e na prática apoia o presidente.
Entretanto, em 2011 e no início de 2012, a oposição viveu um breve momento de esperança. Em dezembro, trabalhadores do setor de petróleo e policiais se enfrentaram em Janaozen, uma cidade no deserto do oeste do país. Ao menos 12 morreram nos confrontos. Eleições parlamentares se seguiram, como de costume, favorecendo quem se esperava. Mas, insatisfeita com a violência no oeste, energizada por alegações de que as eleições foram manipuladas para favorecer o partido de Nazarbayev, a oposição espantosamente conseguiu suficiente apoio popular para iniciar uma onda de protestos no centro de Almaty. Por um momento, houve quem enxergasse na mobilização fantasmas da grande revolta de 1986, quando os cazaques, revoltados com a decisão do líder soviético Mikhail Gorbachev de afastar o primeiro-secretário do PC local, Dinmukhamed Kunaev, tomaram as ruas da cidade, enfrentando tropas vermelhas. Pelo menos 200 morreram na revolta, chamada pelos cazaques de Jeltoksan (“dezembro”, numa alusão ao mês em que ocorreu).
O protesto arrefeceu progressivamente. Os principais líderes de oposição foram levandos para a polícia; antes de cada manifestação, a polícia fechava as ruas para impedir a chegada das pessoas. Houve um caso em que, do lado do lugar marcado para um protesto, coincidentemente no mesmo dia e na mesma hora, foi organizado um evento para crianças – depois, as autoridades falaram nos jornais que os oposicionistas quiseram impedir as crianças de se divertir, provocando o esperado rechaço de muitos leitores. Um dos principais líderes da oposição de verdade, Vladimir Kozlov, foi preso. Anos e anos de xilindró o aguardam. Pessoas com mentes moldadas pela mídia e presas em seus mundos de falsa bonanza em Almaty desprezam a oposição. Pensam: como um governo que faz o país crescer, prosperar, pode estar errado? Pensam: esses oposicionistas não lutam pelo povo, lutam é por si mesmos, não merecem confiança. Pensam: que se calem esses rebeldes sem causa – nos tempos soviéticos era muito pior. Pensam: esses oposicionistas um dia foram aliados de Nazarbayev, são seus filhos rebeldes, como respeitá-los?
E o pior é que estão certos, embora não vejam o lado ruim de descreditar a já fraca oposição. E, assim, os protestos, o que era a esperança para oposicionistas, acabaram sendo a desculpa para Nazarbayev reprimi-los mais. Talvez em breve ele abra de novo um pouco, para mostrar que é bom e tolerante.
Aliás, difícil, muito difícil encontrar alguém aqui que fale mal do grande líder.
Mas acontece, pela primeira vez, na volta para o alojamento, já com o sol no horizonte. “Há muitos aqui contra Nazarbayev”, me diz um taxista, empolgado não particularmente em falar de política, mas em falar de tudo, e falar muito. Bigode, meio sujo de fuligem, fungando muito, como se estivesse constantemente cheirando rapé – não sei, me passou um ar de bandido. Depois da declaração, que ele claramente julgou ser bombástica, silêncio de três segundos, e me vem com outra. “Bom, 90% das pessoas são a favor de Nazarbayev.” Interpreto que se empolgou com o que falou em primeiro lugar - sentiu uma brisa leve de revolução a caminho - mas depois pensou e decidiu que não adianta fingir, a maioria em Almaty vive muito bem, obrigado, com uma ditadura. Dez por cento de descontentes não é nada. Não dá nem para sentir uma grande decepção na voz de meu colega taxista. Na sua voz, só um tom de aceitação. Assim é. Fazer o quê.
O nível de popularidade do presidente é fácil de medir ao visitar um monumento em frente à prefeitura de Almaty. Lá foi colocado um livro de metal mostrando a marca de uma mão – a mão de Nazarbayev. É tradição por aqui visitar o local e colocar a mão sobre a marca da mão do presidente. Parece que dá sorte. Traz uma inscrição em cazaque, russo e inglês - "choose and be in bliss". Há, é claro, quem simplesmente queira comparar sua mão com a do presidente, como eu. Mas dá para perceber que, entre os cazaques há um ar de devoção divina tão profundamente enraizado que eles sequer percebem isso. A prova é que, quando visitei o monumento, havia até fila para colocar a mão na marca da mão de Nazarbayev. As pessoas enfrentavam um calor ridículo, sem sombra, suando, para tocar na marca da mão do presidente. E ela estava dourada, polidíssima, de tanto tocarem lá. A máquina do culto de personalidade está realmente bem calibrada.
Como em muitos países do Ocidente, aqui os jovens não se interessam muito por política. Conversei com um na universidade. Saía da aula de engenharia de petróleo, ou algo assim (na KBTU, o forte são cursos superiores em áreas que o governo cazaque julga estratégicas, como petróleo e gás). Tomamos um café. Tinha uma camisa branca tão bem passada e reluzente que parecia ter acabado de sair da loja. Sorria muito, feliz em praticar o inglês. Mas, ao falar de política, pareceu perdido e perdeu o sorriso. Sabia dos protestos no oeste no final de 2011, mas confessou que não tinha a menor ideia do porquê das mortes. Isso pode indicar algo sobre a imprensa e o acesso à informação no país, mas também pode não indicar nada – só que ele não se interessava por esse tipo de assunto. E logo mudamos o rumo da conversa. Falamos sobre carros.
Mas, fãs ou não de política, todos sabem quem é Nazarbayev. Nos cartazes espalhados pela cidade para celebrar o Nauryz, o Ano Novo local, frases atribuídas ao presidente reforçam uma tecla importante para todos por aqui. Nelas, Nazarbayev insiste que dizer que é o líder do “Cazaquistão multiétnico”. O presidente busca sempre convencer a todos que é o fiador da tolerância entre essas múltiplas nações no país, o garantidor de que a harmonia irá continuar. De fato, o discurso sobre etnia – que poderia ser um fator de implosão deste país, como ocorreu, por exemplo, na Geórgia no período pós-URSS – é crucial para entender por que o Cazaquistão se mantém em paz. Eis a receita de sucesso de Nazarbayev: mesclar a ideia de várias nações vivendo em harmonia com nacionalismo. O Cazaquistão é um grande país em que todos vivem juntos, mesmo sendo diferentes. E todos devem trabalhar juntos pelo bem do país e são o país. Quem ousa esbravejar que sua nação tem tratamento injusto está trabalhando contra essa ordem, é um traidor. Tudo que o governo faz ou exalta conspira contra esse tipo de “perversão política”. Pensando bem, isso tudo é muito soviético.
Reforça-se, a estabilidade, a longa estabilidade, contra as vozes dissonantes, que podem ser tudo. A tal estabilidade que – ao que parece –, a maioria em Almaty acredita ter um importância muito maior que a democracia.
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