Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Saturday, 26 October 2013
Diário de Almaty (V)
11/04/2012
Oito horas da manhã. Meia-noite no Brasil. Bom dia.
Cruzo os corredores meio escuros da KBTU e adentro a sala de aula lotada. Os jovens universitários ouviram falar de nosso curso na Inglaterra e fomos convidados a conversar com eles sobre o que estamos estudando. Assumimos o papel de professores. Depois de várias perguntas deles, principalmente sobre o que eles podem fazer para estudar no Reino Unido, tudo quieto. Agora é a vez de meus colegas e eu lhes dirigirem perguntas. Disparo a minha, sobre a “pureza” do povo cazaque e suas “hordas”.
Um alvoroço se formou, uns perguntando aos outros o que eu queria dizer com “hordas”. Aí, alguém entendeu. Não horda - juz. Uma mistura de risada com coxixo com aplausos para mim se seguiu. Uma garota muito risonha logo levantou a voz para responder. “É uma das primeiras coisas que nossos pais nos ensinam. Cada um de nós sabe qual é a sua horda”.
Desde aproximadamente o final do século XVI os cazaques se dividem em três grandes federações tribais (chamadas de hordas por alguns no Ocidente, mas conhecidas no país como juz, que significa “cem” em cazaque) associadas, cada uma, a uma região geográfica diferente do imenso país. A chamada Grande Juz ocupa esta região do Cazaquistão, o sudeste, onde fica Almaty. A Juz Central ocupa uma vasta área do norte e o centro do país, enquanto que a Pequena Juz ocupa o distante oeste. Todos são cazaques, milenarmente estabelecidos como pastores nômades. Cada juz tinha seu próprio rei, mas em alguns momentos, quando emergia um líder particularmente carismático em uma das hordas, as outras o apoiavam para ser o líder unificado de todas. Assim, a ligação dos cazaques com um líder forte, centralizador, tem raízes históricas, embora o mais comum durante os séculos tenha sido a descentralização, uma espécie de confederação, unindo as três hordas.
A menina continua. “Além das hordas, sabemos todos os nomes dos nossos sete últimos ancestrais”, explica. Uma tradição chamada de jeti-ata, (do cazaque jeti, sete, e ata, avô). Desde pequenininho, o cazaque decora e mantém viva a lembrança dos nomes de sete gerações de ancestrais da linha paterna. Isso reforça o vículo das pessoas com sua família, com seu clã (ao se descobrir antepassados em comum com um colega de escola, por exemplo) e, finalmente, com sua juz. Todos parecem ter grande orgulho em lembrar de suas raízes. Os estudantes perguntam de nós, de nosso conhecimento de nossos antepassados. Disse que eu, infelizmente, conhecia apenas o nome de meus avós, de alguns dos meus bisavós e um ou outro tataravó e ainda sim, sem certeza absoluta. Disse que tinha uma noção vaga das raízes geográficas da minha família. Olham para mim. Me pergunto se entendem, de verdade, o que eu estou dizendo.
A tradição está bem presente na vida dos cazaques. Por exemplo, um casal em que o par compartilhe um mesmo ancestral citado no jeti-ata não pode se casar. É claro que atualmente essa é uma tradição um pouco flexível na maior cidade do país. Uma moça cazaque me explicou: “hoje em dia, as pessoas na verdade não se sentam à mesa e começam a checar todos os seus sete ancestrais... geralmente checam uma, duas gerações. Pelo menos em Almaty eu nunca ouvi falar disso”. Mesmo assim, em regiões mais tradicionais do interior, é fácil imaginar que casais tenham tido seus corações estraçalhados pela regra. Uma regra, aliás, que teria o objetivo de evitar o surgimento de defeitos genéticos nas crianças, adotada muito antes que qualquer cazaque tivesse a menor noção de genética.
Acho isso incrível: embora essas meninas e rapazes ricos se vistam como americanos, tenham carros modernos e possantes e até namorem com beijos ardentes pelos corredores da KBTU, a divisão das hordas e do jeti-ata, tão antiga e alienígena a todo esse estilo de vida ocidentalizado, se mantém. Mas ninguém parece questionar isso.
Em outro campo a juz ainda está bem presente na vida do cazaque: a política. Há estudos publicados sobre o tema em outros países, mas, no Cazaquistão, a “política de clã” é claramente um tabu – não se fala sobre isso. Não é preciso fazer um grande exercício mental para ver sinais de como existe uma relação entre as juz e o poder. Kunaev, primeiro-secretário do Partido Comunista do Cazaquistão de 1964 a 1986, solidificou um sistema de patronagem em que sua horda, a Grande Juz, passou a dominar a elite. Esse favorecimento simplesmente continuou durante Nazarbayev, que também vem da mesma região. Evidentemente, a horda não poderia governar sozinha, e durante os anos foi forjada uma aliança com a Juz Central, mais russificada. Segundo Edward Schatz, autor de um livro sobre o assunto (Modern Clan Politics - the Power of Blood in Kazakhstan and Beyond, 2004), após a independência, surgiu o medo de secessão de regiões do norte do país, com muitas pessoas de origem russa lamentando o surgimento do novo país. Como essa região historicamente correspondia à da Juz Central, tornou-se vital obter o apoio dessa confederação para o projeto do novo país. Essa preocupação explicaria, por exemplo, a decisão de criar em 1997 uma nova capital cazaque em Astana, bem mais ao norte do que a até então capital, Almaty. Schatz enxerga a Juz Central galgando espaços no poder por meio de patronagem dos políticos. Por outro lado, a Pequena Juz permanece subrepresentada. A existência de vastas reservas de gás e petróleo na região do Mar Cáspio (associada a essa juz) força necessariamente uma reavaliação do arranjo, como ficou claro com os protestos de 2011 em Janaozen e o susto que eles provocaram em Nazarbayev. Resta saber se o líder estaria disposto a enfraquecer mais ainda mais o domínio de sua horda no futuro.
***
Mas não é só em relação à “política de clã” que existe tabu aqui. É cada vez mais claro, é em relação a qualquer “política” que há tabu. Toda vez que toco no assunto, parece que estou contando uma piada suja. As pessoas dão risadinhas tímidas, então olham para o lado, então mudam de assunto ou me perguntam, céticas, por que ou como eu vou pesquisar a oposição. Até agora, venho tentando contatar líderes da oposição por email; de 20 emails que mandei, apenas um foi respondido, por um oposicionista que, aparentemente, vive parte do tempo aqui e parte do tempo em Londres. Aceitou conversar comigo, mas apenas lá. Michael, o ex-policial que estuda comigo, eternamente preocupado, já falou várias vezes que estou sendo observado. O outro dia falou que eu posso ser preso. Eu, obviamente, levo a sério os riscos. Mesmo sem estar fazendo nada errado – aliás, mesmo sem estar fazendo quase nada. Amanhã, decidi visitar pessoalmente os diretórios regionais dos partidos. Vamos ver.
A relutância dos cazaques em relação à política, especialmente a política de oposição, ficou bem clara no meu almoço, hoje, com as duas professoras com que almocei dias atrás – a louca pela Coreia e a quietinha. Conversamos muito em inglês, sobre muita coisa. Mas quando esbarrei no delicado tema, pronto. Saia justa. Silêncio, clima desagradável.
Estávamos conversando sobre a eleição para presidente estudantil da KBTU –a escolha do representante discente. Muito me impressionou o fato de os candidatos fazerem uma tremenda campanha eleitoral. Devem gastar uma dinheirama nisso: por toda a universidade há cartazes (com fotos, bem diagramados, nada de cartolinas escritas à mão), banners gigantes de plástico pendurados dentro e fora do prédio, festas para os eleitores e até mesmo viagens pagas pelos candidatos, oferecidas aos estudantes. Nisso das viagens, impossível não fazer uma associação entre a relação entre esses jovens ambiciosos e seus colegas e o neopatrimonialismo entre os políticos no poder e os eleitores: benesses em troca de apoio. O micro copia o macro, o macro inspira o micro? Assim se perpetua uma cultura política? Por outro lado, também me impressionou a empolgação dos jovens com o pleito. Tremenda energia no ar! Que potencial tem a democracia neste país, se levarmos em conta esta simples disputa estudantil!
Prevendo problemas para ouvir qualquer resposta das professorinhas, deixei essas reflexões para mim mesmo. Preferi me ater a uma pergunta mais simples: de onde essa molecada consegue dinheiro para tal espetáculo democrático? A professorinha fã da Coreia tem a resposta na ponta da língua. “Ah, eles têm pais ricos. Para eles, a eleição é algo sério. É uma disputa de status, prestígio.” Um caro jogo de vaidade.
A conversa continua; pergunto por quanto tempo o tal presidente estudantil é eleito. Dois anos. Com direito a reeleição? Não. Arrisco: “Ah, então aqui a eleição para presidente estudantil é diferente da eleição para presidente do país né? Afinal, para presidente do país, o mesmo candidato sempre concorre e é reeleito há anos...” Silêncio. Risadinhas. “Eu não sei...”, responde com voz baixa a simpática fã da Coreia. Digo - meio brincando, meio de verdade - que acho que os estudantes deveriam ser preparados o quanto antes para exercer a cidadania à cazaque, com um presidente-rei. Mais risadinhas. Mais silêncio.
Eu realmente, realmente tenho a impressão que elas adoram Nazarbayev e não concordam que é um problema a falta de democracia no país. Nazarbayev é grande demais, governa há anos demais, é impensável demais imaginar este país órfão dele. Desde que o país se tornou independente, há 20 anos, ele é o timoneiro. Nesse universo, o exercício democrático na KBTU não é nada mais do que a guerra de vaidades de que me falou a professora. Não há ideologias, não há choque de propostas. Não há uma preparação para o exercício do voto fora da universidade. Nem professores, nem alunos estão remotamente expostos ao debate político real, que simplesmente não existe, dentro e fora da universidade. O que há é a festa. Um ar de profunda alienação no ar. A esfera despolitizada onde vive a elite, estimulada pelo regime.
Mas, é claro, onde há exagerada alienação da elite, olhos fechados à pobreza e aos destituídos, há sempre a ameaça de revolução. Certamente, o rei, caminhando para seus 80 anos, já está pensando nisso. Seus genros têm sido cotados para tomar o trono. Mas, por enquanto, em Almaty, ele é tudo. Onipresente, onisciente. Permanente.
O papo muda de rumo e continua, um pouco mais animado, regado a copos de compot (um suco de frutas, mas não me pergunte quais; cor de chá mate, doce demais, meio enjoativo). Satisfeito, deixo parte da salada de pepino, tomate e endro no prato e pergunto novamente das hordas, como isso funciona na prática, por exemplo, nas eleições para o Parlamento. “É verdade. Existe uma ligação entre seu clã (vários clãs formam uma juz) e o voto. Pessoas de uma região preferem votar em quem conhecem, em pessoas que são de onde elas são”, diz a professorinha simpática novamente. Aí, de novo, penso em atiçar mais, até que saiam correndo: “Mas as pessoas do oeste do país, onde vive menos gente, não acham ruim que há 20 anos o presidente é de uma clã do sudeste?”. Risadinhas. Um silêncio constrangedor.
***
O almoço termina, um solzão maravilhoso, uns 25 ou 30 graus, saio para passear e suar. Não só as montanhas nevadas ao sul da cidade estão incríveis na tela do céu azul. Na minha caminhada, várias árvores estão completamente em flor, uma flor pequena, cor-de-rosa esbranquiçada, parece flor de pessegueiro. Os prédios-caixas de concreto da era soviética, me saúdam. Ao lado de um deles, a fachada de uma universidade, cor de rosa forte, contrasta com as flores esbranquiçadas. Na fachada, altos-relevos soviéticos na forma de um homem atrás de uma mulher. A mulher triunfante, erguendo um livro em uma das mãos, erguendo em direção ao céu. A mulher está voltada para a direita, a porta do prédio. Do outro lado da porta, outra relevo na fachada, outra mulher, espelhando a anterior, novamente de frente para a porta. Ergue para o céu não um livro, mas uma tocha. O esforço na educação traz a luz. Per ardua ad alta. Inegável que essas sombras soviéticas ainda têm muito a falar. Estou trazendo questionamentos alienígenas a essas pessoas daqui. Os jovens cazaques que estudam fora e voltam, também. Trazem a mensagem de que há outras formas de governar. Que o Cazaquistão pode, e deve, experimentar. A integração com o mundo tornará isso inevitável. Espero. Torço.
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