Um blog dedicado aos países da Ásia Central que faziam parte da União Soviética, com textos em português e inglês. A blog about the former Soviet countries of Central Asia, with posts in English and Portuguese.
Vou lembrar para sempre o momento em que desci da van na avenida Jibek Jolu e comecei a caminhar, mochila nas costas, de volta ao mesmo hotel onde fiquei na primeira noite na capital quirguiz, antes das sete semanas de viagem. Um retorno, antecedendo outros - logo, a volta a Londres, depois, a volta ao Brasil.
Mais cedo, em Naryn, me despedi da séria e sábia suíça, com quem em At Bashi tive várias conversas sobre nosso caminho espiritual, circulando pelo cemitério dos fantasmas dourados. Foram discussões sobre nossos pais e como nos relacionamos com eles, sobre nossos amores e o que dizer a eles, nossa liberdade e as longas jornadas dedicadas a ela. Jornadas difíceis, elucidativas. Prometemos nos escrever. Eu sabia que nunca mais nos falaríamos.
Embarquei na primeira van que encontrei para Bishkek. Uma jornada de cinco horas até a capital, cinco horas que me pareciam quase nada antes mesmo de começar. Hipnotizei-me logo após o embarque. Olhos fixos na estrada, nada mais. O caminho foi me trazendo vistas familiares: primeiro Koshkor, depois o Desfiladeiro do Cadarço, e então, as cidadezinhas de Tokmok e Kant, já perto de Bishkek.
A atenção na janela me ajudou a evitar o desconforto contumaz que outros enfrentaram no meu lugar. Ao meu lado, uma senhora de meia idade que praticamente vomitou o caminho inteiro dentro de um saco plástico, e, ao lado dela, uma mulher mais jovem e um garotinho de uns três anos, igualmente com náuseas. Atrás, um garoto de dez anos com mais vômitos. Um cheiro azedo tomou a van o caminho inteiro. Mas nenhum enjoo me atormentou, nada. Vivi apenas o caminho, descidas, subidas. Eu não estava dentro da van, eu estava fora, voando.
* * *
Os prédios residenciais soviéticos todos se parecem com o do apartamento em que dormi em Naryn. São grandes estruturas de concreto com fachadas às vezes com alguma decoração - geralmente algum detalhe geométrico que sugere alguma identidade com a cultura local. Tirando isso, são caixas cinzas, tristes, puramente funcionais, eficientes para barrar o frio e sem mais. Estes conviviam nos tempos da URSS com edificações desenhadas para inspirar o povo... palácios imensos com aparência futurista. Estes eram reservados para momentos especiais da vida. Tirando estes momentos, contudo, se vivia sem nenhum glamour.
E fui morar em um caixote soviético. Apesar da aparência enfadonha, admito que fiquei feliz ao saber que a minha futura moradia pelos próximos dois meses em Bishkek, onde vou estudar russo, seria em um desses.
Subi até o quarto andar pelas escadas escuras, bufando por carregar a mala pesada que eu havia recuperado do hotel onde passei a noite após chegar de Naryn. No alto, me esperava com a porta aberta Ekaterina Vladimirovna. Ekaterina, uma designer de uns 50 anos, com ouro radiante nos dentes incisivos que ela exibe em sorrisos pouco frequentes, vive no apartamento com os filhos Marat, de 9 anos, e Misha, de 15, além do irmão dela, também Misha, um senhor de uns 55 anos. Nenhum sinal do marido - que, segundo ela, estava na Polônia e não voltaria nem para o Natal. Ele é um dos milhões de imigrantes econômicos da Ásia Central, sustentando a região por meio de remessas de dinheiro.
O apartamento é muito bem localizado, no centro de Bishkek, e bem mais espaçoso do que eu imaginava. Embaixo, uma cozinha, um banheiro e uma sala de estar, de onde sai uma escada para os quartos e outro banheiro com o único chuveiro do imóvel, no andar de cima. Dito isso, é pequeno para mim e para toda a família: com minha chegada, assumi o quarto de Ekaterina, que passaria a dormir na mesma cama que as crianças no outro quarto, ao lado do meu. Misha ficaria dormindo no lugar em que já estava, numa cama colocada em frente à TV na sala de estar.
Todo o lugar tem uma aura de velho. No meu quarto, um papel de parede com formas abstratas que me lembra os anos 70 e alguns móveis bem gastos pelo tempo. A cama de molas faz um barulho alto e incômodo a qualquer pequeno movimento, e o colchão está deformado, com um vão no meio (o que deixa em forma de V), após tantos anos de uso. Para salvar as minhas costas, prontamente mudei lençol, travesseiro e cobertor para o chão.
Nas paredes do corredor, um papel de parede estranhíssimo, em formas de pastilhas quadradas de aproximadamente sete por sete centímetros, mas acolchoadas. Ou seja, a mão afunda nas paredes, algo que, imagino eu, seja especialmente eficiente para evitar que crianças (ou bêbados) se machuquem. O chão é de tábuas de madeira pintadas de marrom, reluzentes. O banheiro no segundo andar é pequeno demais e tem tanta coisa que você fica esbarrando em tudo. Tem um vaso sanitário que não funciona e fica tampado permanentemente, sobre o qual ficam baldes e roupas. O chuveiro, que fica sobre uma banheira pequena, não tem onde ser pendurado - você toma banho segurando-o em cima de sua cabeça. Sobre a banheira, há o varal da casa, e ao lado dela, um pequeno barril de aço: uma máquina de lavar antiga, dos tempos soviéticos.
No andar de baixo, na sala de estar, a TV está permanentemente ligada, dia e noite. Há um corredor que dá acesso a uma cozinha, ao banheiro e à porta de saída. Na cozinha, há uma mesa de jantar onde mal cabem quatro pessoas sentadas, um fogão e uma geladeira também velhos.
Apesar de ter uma aparência desgastada, o apartamento é todo muito limpo, sem cheiros, a não ser o da comida na cozinha.
Após tanto tempo enfrentando intempéries, nos desertos, nas montanhas, visitando mausoléus perdidos, rezando em mesquitas e madrassas com cúpulas azuis, encontrando povos hospitaleiros com línguas incompreensíveis, enfrentando doenças e fraquezas, o viajante se encontra, mais uma vez, ao lado da China. O Sol brilha, mas incerto sobre onde e quando iluminar o caminho. É esta estrada a correta para alcançar o Oriente? Não é a estrada principal, é outra, perdida em um vale enfiado nas montanhas, paralela ao curso de um pequeno rio, frequentada apenas por iaques e tomada pela grama amarelada do outono. É esta a via correta?
A luz vem e volta. As nuvens às vezes tapam o Sol.
Por 15 quilômetros, o viajante segue obstinado, sem pensar. Nem ouve o motor do pequeno carro, apertado, valente. Observa o vale. Ao redor dele, rochas afiadas, de estranhos formatos, como que imitando castelos e muralhas. E, então, completamente desavisada, como se de repente se materializasse no caminho, surge uma planície onde serpenteia o rio... e um refúgio de pedra. A confirmação. Eis o refúgio que, sim, é para o viajante que segue para o Oriente, para os domínios chineses. Nas pegadas de outros viajantes:
Nós estacionamos o veículo no gramado da frente, que se estende por quilômetros, saímos, e nos encontramos nas paredes do cânion que emolduram o vale. Sob as muralhas, a cerca de um quilômetro e meio ficava o caravançarai abandonado, refletindo sobre seu lugar na história (...) Apesar da aparente familiaridade que têm com o lugar, eu pude ver que nossos guias estavam tão boquiabertos quanto nós.
- Grand Centaur Station, Larry Frolick
Tash Rabat, o caravançarai (estalagem de caravanas) de pedra. Uma formidável e ao mesmo tempo singela fortificação, dura, áspera. Lembra um pequeno castelo galês, mas totalmente deslocado, encravado na serra Tien Shan. Feito de pedras escuras e finas, sobrepostas umas às outras, criando paredes, um arco de entrada e uma cúpula em seu interior, sobre o encontro dos seus corredores.
Um alívio, o Tash Rabat, para o viajante. E um enigma. Por que alguém gastaria tanto dinheiro para construir tal fortaleza no meio do nada? Por que aqui e não em alguma vila próxima, como em At Bashi, não muito distante daqui? Quem pagou por isso? Em que ano foi erguido?
Historiadores não chegam a uma conclusão sobre a idade do Tash Rabat. Alguns dizem que é do século X, outros, mais novo, até do século XIV. Seja um, seja outro, décadas sem fim de questionamento e investigação para os inquisitivos.
Eis o alívio: Adentra-se a arcada. Um túnel escuro, como uma caverna. Dos dois lados do túnel, em seus dez ou 15 metros de extensão, entradas para outros túneis - cinco passagens levando a outras salas ainda mais escuras, mais úmidas, como celas de uma prisão, onde ficavam outrora estacionados os viajantes e seus cavalos. O túnel principal termina sob a cúpula. Embaixo dela um dia funcionou uma pequena mesquita. No teto ao redor do domo, entre pequenas janelas que deixam entrar uma luz branca e intensa da tarde, os restos da elaborada decoração da mesquita. No chão, logo abaixo, um espaço onde eram feitas fogueiras. Sem esse fogo, como agora, o local é gelado, sombrio, assustador.
O viajante é levado a um transe, o transe o leva atravessar uma das seis passagens sem portas que saem do circulo sob a cúpula. A passagem é baixa, é preciso se curvar para passar por ela. Pouca luz entra pelas pequenas aberturas no teto. Em outra sala, conectada a esta passagem, uma estranha roda de pedra jaz jogada no fundo, num canto, na escuridão. Como em um labirinto, mais passagens e câmaras aparecem, uma a uma, cada uma com sua fantasmagórica personalidade. O lugar está negro, morto, completamente morto, mas vivo, completamente vivo pelos seus espectros (veja o vídeo abaixo).
Os espectros.
Fecha os olhos.
Uma noite de nevasca intensa no Tien Shan.
O viajante e sua caravana arrastam seus cavalos no que parece ser o caminho natural na longa jornada para Khanbaliq, a capital de Kublai Khan. Foram horas de cavalgada em condições extremas, enfrentando o vento açoitante no rosto, arranhado pela neve que se acumula no chapéu de pele e na barba congelada.
Algum companheiro em um cavalo mais à frente grita algo - pouco se pode ouvir. Mas o viajante levanta os olhos, fecha-os o quanto pode para evitar o castigo congelado. Com dificuldade, avista, além dos cavalos e iaques, algo que se sobressai, uma construção. Dentro dela é possível ver luz. Luz amarela, luz de calor. Aproxima-se. Quase tomba com seu cavalo com uma corrente mais forte de vento e neve.
E agora, próximo, encontra a entrada, e dela exala o cheiro forte que atravessa até mesmo o vento e a neve. Cheiro de gordura de iaque fervida, cheiro de carne na brasa, cheiro de pão, cheiro de kumiz, cheiro de estrume e urina de cavalo.
O viajante entra. Arranca o chapéu de pele, limpa a neve de seus ombros e olha fixamente para o final do corredor. Encontra a fogueira.
Abre os olhos.
Eis como o Tash Rabat vive.
De acordo com as lendas locais, haveria uma passagem secreta do Tash Rabat para outro lugar. Quem sabe uma possibilidade de fuga para o viajante, caso ameaçado por invasores no meio da noite? Quem sabe o caminho para uma câmara secreta, recheada da mais pura seda, ouro, jade e lápis-lázuli? Tesouros chineses e europeus das caravanas esquecidas pelo séculos, escondidos pelos bandidos das montanhas?
O viajante deixa a câmara da fogueira e seus mistérios tentadores. A jornada está prestes a terminar, mas ainda não terminou. É preciso partir. Já se ouve a chegada de mais viajantes: uma família quirguiz, pais e filhos com bonés, todos barrigudos. Está firmemente de volta ao século XXI. O viajante se reencontra, mero turista. E o Tash Rabat, simplesmente um inevitável ponto turístico para os poucos que passam por aqui. Justifica-se sua fama. Apesar dos anos e de tudo que falam dele, o Tash Rabat mantém uma aura inexplicável de aventura. Como as ruínas dos faraós no Egito. Lá, as areias do deserto ajudam a parar o tempo. Aqui, as montanhas. Não há turistas que possam eliminar tamanha magia.
* * *
Para chegar ao caravançarai, pegamos uma estrada com asfalto perfeito (cortesia dos chineses) de At Bashi rumo ao lendário Passo Torugart - a passagem de fronteira entre China e Quirguistão que o guia Lonely Planet chegou a considerar uma das fronteiras mais difíceis de se atravessar no mundo, dada a complicação logística (não há transporte direto; o viajante precisa arranjar transporte até o Torugart e depois alguém para recolhê-lo do lado chinês. O passo fecha com frequência por causa do tempo, sem aviso. Infinitos feriados, chineses e quirguizes, tornam meio imprevisível saber quando os guardas vão estar simultaneamente dos lados chinês e quirguiz da fronteira).
No caminho, fizemos um desvio e paramos rapidamente no vilarejo de Kara Suu, ou Água Preta. O vilarejo ocupa uma área onde um dia existiu uma formidável fortaleza chamada Koshoy Korgon, que hoje sobrevive apenas como uma grande ruína de barro. Como o Tash Rabat, a data em que a fortaleza foi erguida é incerta. Provavelmente é karakhanida, como os mausoléus de Taraz e Özgön, por isso acredita-se que tenha sido erguida a partir do século VII e tenha sido ocupada por muitos anos, até pelo menos o século XII.
Como Otyrar e Sauran, aqui as ruínas dizem pouco, mas sugerem muito. Difícil fazer um juízo de como esta fortificação teria sido em seu auge. E, diferentemente de outras cidades fantasmas da rota da seda que visitei, nesta há muito poucos fragmentos de artefatos no chão. Seu interior é tomado pelo mato e poucas fundações são visíveis. Entretanto, num museu ao lado das muralhas gastas de barro, há uma maquete que mostra como ela teria sido. Muralhas grossas, lembrando as de Khiva, no Uzbequistão, com inúmeras torres. Novamente, são as montanhas próximas que garantem à ruína sua beleza, emoldurando e ressaltando sua glória.
Para os locais, sua importância vem de uma lenda, e sempre as há, em todas as ruínas. Neste caso, há gerações Koshoy Korgon, sua construção e existência, estão associados a Manas, o herói mitológico cuja estátua gigante adorna a Praça Ala Too no centro de Bishkek. A figura que, com Lênin partindo em definitivo para o passado em 1991, vem sendo o centro do processo de construção da identidade nacional quirguiz.
Manas é protagonista de um poema épico considerado (pelo menos pelos quirguizes) o mais longo da humanidade: ele seria 20 vezes mais longo que a Odisseia, de Homero (mas, para os estudiosos, ainda perderia para o poema seminal do hinduísmo, o Mahabharata). No Quirguistão, aqueles que são capazes de recitá-lo de cor são objeto de afeição e profunda admiração, sendo chamados de Manaschi, e costumam estar presentes em festas folclóricas. A data do poema em si gera controvérsias. Para muitos quirguizes, sua origem se perde no tempo, e em 1995 o país comemorou nada menos que os mil anos de Manas e suas histórias. Mas a verdade comprovada é menos fascinante. A "Ilíada das Estepes", como é chamada, surgiu no século 18, fruto do trabalho do etnógrafo e historiador cazaque Shokan Walikanov, que certamente compilou contos da forte tradição oral dos povos da região. Por isso mesmo a importância da obra em termos de etnogênese do povo quirguiz é sem dúvida discutível, já que a identidade própria dos quirguizes, separada de outros habitantes das estepes, pode ser considerada uma criação dos soviéticos.
De qualquer forma, o admirável poema, celebrado nas jailoos e iurtas, cita as outrora gloriosas muralhas de Koshoy Korgon como tendo sido erguidas por Manas em pessoa. Neste local ele teria construído um mausoléu para um de seus generais, Koshoy (Koshoy Korgon quer dizer, previsivelmente, "Fortaleza de Koshoy"). Não há sinais do mausoléu e nada muito além de terra seca amontoada, barreiras que resistem com obstinação ao tempo. Mas a sugestão é que, aqui do lado, ou aqui embaixo, ou mais lá na frente, esteja um segredo aguardando para ser revelado - a tumba de Koshoy. Talvez uma sepultura guardando o único exemplar original do poema épico de Manas? Ou talvez tesouros inimagináveis... a mais pura seda, ouro, jade e lápis-lázuli.
Sonhos. Sonhos infinitos da Rota da Seda.
Após Koshoy Korgon, voltamos para a estrada. Ela continua rumo ao Torugart, ultrapassa o vilarejo de Kara Bulun, e o mundo acaba. Não há mais pessoas, não há mais casas, há um ou outro iaque, ovelha ou vaca. De resto, apenas pradarias e montanhas, vastas, vazias. De um lado, os altos picos da serra próxima a At Bashi, nevadas. Do outro, bem distantes, mais montanhas, mas essas se veem da estrada completamente negras, em um contraste incrível com o pasto amarelo brilhante.
A estrada é reta como uma régua. Os poucos veículos com que cruzamos estão vindo na direção contrária e são todos caminhões com placas chinesas, a toda velocidade. Rumo a algum lugar longe deste lugar nenhum.
Logo achamos uma placa indicando a saída para a estradinha que seguia para o Tash Rabat, o caminho que o viajante deveria seguir na serra para achar onde o caravançarai se esconde.
Para lá do fim do mundo.
* * *
Após o longo passeio, seguimos de volta a Naryn, eu e a senhora suíça.
Procuramos juntos alguma acomodação com chuveiro quente e preço entre 400 e 500 soms (entre US$ 6 e US$ 7, aproximadamente) para passar a noite. Uma jovem que encontramos nos ofereceu uma opção: sua própria casa. Talvez, um sinal da tradicional hospitalidade centro-asiática. Talvez, apenas um sinal de seu desejo de ganhar um dinheiro extra. Talvez os dois. A oferta era boa - 500 sons por cada quarto, incluindo jantar, café da manhã e o chuveiro quente, em um grande apartamento de um prédio dos tempos soviéticos. Aceitamos.
Que estranha morada.
A jovem, com aproximadamente 30 anos, tinha uma aparência quirguiz ordinária, magra, rosto redondo, olhos puxados. Pele um pouco escura, bronzeada, algo um pouco incomum, mas não impossível de ser nas ruas. Viveu um bom tempo no exterior, onde adquiriu um inglês excelente e um imenso fascínio pelo Ocidente, visível em sua casa, onde nada, absolutamente nada, lembrava a cultura quirguiz. Os móveis, o papel de parede, o banheiro, a cozinha, tudo parecia ter sido pensado e remodelado para parecer ocidental. O chão, por exemplo, era de carpete de madeira, algo incomum por aqui. Havia alguns tapetes, mas todos com estampas modernas, sem os tradicionais padrões quirguizes.
Pelas paredes do banheiro e de seu quarto, a jovem espalhou folhas de papel com frases motivacionais em inglês como "Você é linda!" e "Eu gosto de você!" Também espalhou seus diplomas e muitas e muitas fotos. Fotos que indicavam uma certa auto-obsessão. Nelas, nada de paisagens, nada de pai, mãe, outros parentes, nada de viagens a Bishkek ou Osh, nada de monumentos de Manas. As fotos mostravam, a maioria delas, apenas a garota em poses variadas e em locais desconhecidos para mim (e que pouco apareciam no fundo das fotos). Em algumas fotos, ela aparecia com alguns amigos. Em outras, poucas, estava o namorado, que não morava em Naryn e era citado por ela com uma certa veneração religiosa. Numa conversa, repetiu várias vezes orações carregadas de fé como "Ele vem me visitar" ou "Nós iremos nos casar no ano que vem".
As fotos da jovem depois de um tempo começaram a me parecer algo doentio, uma demonstração de sua necessidade intensa de reforçar sua vaidade, martelada incessantemente para qualquer lugar que se olhasse no apartamento. Até nas paredes ao redor do vaso sanitário havia fotos, e nessas ela aparecia como uma modelo posando de várias formas para capas de revista. Quando ela anunciou que eu iria dormir no seu próprio quarto aquela noite (ela dormiria no mesmo quarto que a mãe, uma senhora silenciosa e triste), já sabia que me sentiria desconfortável. Nas paredes do quarto estavam a maioria dos seus diplomas e certificados. Na sua pequena mesa de escritório do quarto, mais fotos, neste caso mostrando ela com roupas de profissional, terninhos e saias, em poses mais sérias. Me senti me afogando em um universo que era completamente de uma só pessoa que, ao contrário de mim, não aparentava ter nenhuma atração por esta cultura, por este país, só por si mesma, só por seu próprio espelho, e não demonstrava ser nada além do que se vê nas paredes, nos porta-retratos. Que tristeza ser cercado por tamanha vaidade, tamanho isolamento. Tudo me dizia, o tempo todo, que eu não pertencia a aquele lugar. Só à jovem!
A ego-obsessão da garota ficou ainda mais clara no jantar. Ela falava muito de si o tempo todo e não deixava ninguém falar. Quando lhe disse que eu também havia morado fora do meu país de origem, algo que imaginei que fosse desencadear as perguntas "Onde? Quando? Por quê?" como reação, tive que repetir três vezes a mesma informação até que tivesse alguma reação dela. E a reação dela foi "é mesmo?", seguida de mais algum fato fascinante relacionado a si mesma.
Volto-me à mãe, a senhora que parecia um retalho de tecido desbotado, magra, com as bochechas grandes e enrugadas. Sem saber falar inglês, apenas observava a filha em seu voo solo e a nossa participação como expectadores. Absolutamente deslocada neste pequeno mundo ocidental e ditatorial da filha, em meio aos objetos estranhos que ela introduziu no seu lar. Em um breve momento, quando a jovem estava fora do apartamento, minha colega suíça perguntou (em russo) à mãe se poderia usar a máquina de lavar roupa. A mãe ligou para a jovem simplesmente para perguntar se havia algum problema com isso. Depois, perguntei a ela que hora o jantar ficaria pronto. Ela ligou para a filha para confirmar o horário em que ela gostaria de comer. Sua função na casa parecia ser a de uma serviçal: tudo era ao redor da filha, tudo só funcionava com a filha e em função da filha.
De manhã, acordamos e logo depois a garota se despediu, foi trabalhar. Durante o café da manhã, a mãe ligou o rádio da cozinha e voltou para a mesa que compartilhava conosco. Pôs-se a escutar uma canção folclórica quirguiz entoada com o alaúde típico de três cordas (chamado de komuz). Uma melancólica canção, linda, linda.
A mãe em seguida se afastou, levantou-se novamente da mesa e seguiu quietinha para a cozinha. Lá, de pé, perto do rádio, passou a olhar pela janela.
A vista era de um pátio entre prédios de apartamento soviéticos, um chão de concreto com rachaduras, entre as rachaduras algum mato, e entre os matos algumas poucas flores pequenas, brancas, delicadas, silenciosas, machucadas pelo vento, olhando de volta para ela.
Jailoo é como os quirguizes chamam as pastagens de verão, locais nas montanhas para onde, de abril até mais ou menos o final de agosto, muitos deles se mudam com suas famílias e seus rebanhos de ovelhas, vacas ou iaques. No inverno, voltam para as cidadezinhas como Kochkor, onde têm suas casas. É claro, há muitos que não deixam as cidades mesmo no verão, mas é espantoso o número deles com quem falei que dizem que fazem a mudança quando começa a esquentar.
Pensando bem, nem é de se espantar. Não faz tanto tempo os quirguizes ainda eram completamente nômades. Só com os soviéticos, nos anos 1930, existiu um esforço das autoridades para acabar com a milenar tradição. Apesar do trauma dos 70 anos de regime, não foi (jamais seria) possível apagar da memória coletiva algo tão natural para este povo. Suas raízes estão nas montanhas. Suas raízes... são as montanhas. Ir para as montanhas é, para os quirguizes, como um ritual de adoração dos antepassados, da própria memória e da própria história.
Eu imaginava uma jailoo idílica - montanhas magníficas, cobertas com uma fina camada de neve fresca, circundando um vale com grama baixa e bem verde. A realidade foi um pouco diferente. As montanhas lindas com a neve estavam lá, mas a grama não era de um verde exuberante, pelo contrário. O que encontrei foi um matinho ralo, descolorido, misturado com barro e esterco. Foi o pouco que sobrou após meses de almoço do gado durante o verão inteiro em uma pastagem próxima a Kochkor.
Os cavalos nos trouxeram com paciência. Ao chegar à jailoo pareciam imensamente cansados, talvez já pedindo férias após tantos meses subindo e descendo, levando no lombo turistas sem a menor prática em montar. Eu, inclusive. Para isto, sou certamente urbano demais. Descobri que andar a cavalo, mesmo neste passeio curto de seis horas, uma ida e volta até esta jailoo, acabou me trazendo tanto prazer quanto dor. Uma dor constante e latejante no traseiro que começou com apenas 30 minutos de cavalgada. Que aumentava de intensidade a cada passo do cavalo, a ponto de, em dado momento, eu jurar que não voltaria a fazer isso jamais em minha vida. Meu cavalo, na verdade uma linda égua marrom, obedeceu sem resistir aos meus titubeantes comandos. Lembrei-me da única vez que havia cavalgado, quando tinha uns dez anos e fiz uma excursão aos pampas gaúchos. Daquela vez, o cavalo que me levava do nada se empinou sobre as patas traseiras e eu quase caí: maldito potro, odioso potro. Esta dama de quatro patas era diferente. Sua docilidade, porém nunca poderia compensar por completo o estado do terreno, a verdadeira raiz da tortura que se tornou minha jornada à pradaria nas montanhas. Buracos, pedregulhos, pedras, barrancos.
O prazer, por outro lado. Em determinado momento, me afastei do guia quirguiz, de Iker e de dois britânicos que de última hora se juntaram a nós na aventura. Eles estavam tendo problemas com seus cavalos, não eu. Daí que meu passo foi mais acelerado. Eu estava na frente uns 300 metros, já a uma distância que me permitia ouvir apenas os passos do cavalo e o vento leve passando entre as colinas, enquanto subia um aclive pouco acentuado pela trilha.
Nenhuma árvore, apenas a grama gasta e meio cinza, e nas montanhas as pedras com um pouco de neve. Tudo fresco, frio de uns 13 graus. Cavaleiro solitário em território desconhecido, prestes a ser emboscado pelos índios? Referências ao velho oeste vêm à memória.
Logo as referências vão embora e fica só a solidão. O vento, o clop-clop. A mente se mistura com o ambiente e não penso em nada.
Vinte minutos se passam. Atravesso um regato por uma ponte de madeira que primeiramente não acreditei que fosse aguentar a mim e à minha companheira. Mas a égua foi sem titubear. Tinha minha completa confiança.
E eis a jailoo.
Desmonto, sento em pedras entre a grama, o barro e o estrume. Iker e os outros chegam. A menina britânica (era um casal) cai feio ao tentar descer. Diz que não doeu e corre para se sentar nas pedras. Enquanto tiramos o queijo e a água das mochilas, olhamos para trás, verificando o caminho que fizemos, o distante horizonte entre as montanhas. Lá em baixo, a uns dez quilômetros, dá para ver Kochkor. Sem nenhuma nuvem de poluição, sem filtros. De novo, a conversa e a risada se calam. Agora, todos juntos olhamos a paisagem.
Almoçamos e, antes de montar nos cavalos para a volta e o retorno da dor no traseiro, Iker, eufórico, me surpreende com um abraço. Companheiro, companheiro, onde você me trouxe, companheiro. Que lugar lindo.
No dia seguinte, 8h da manhã, me despeço de vez do meu querido companheiro de viagem. Costumo sempre viajar sozinho, mas Iker me lembrou da alegria imensa que pode ser ter companhia. Foi um amigo para conversar em minha língua em alguns dos locais mais lindos e inóspitos onde já estive. Foi um grande amigo para enfrentar junto comigo policiais corruptos e o mal de altitude, refeições horrorosas e banquetes maravilhosos, fronteiras ameaçadoras. De Dushanbe a Kochkor, três países. É passando por aventuras juntos que as pessoas se tornam parentes. Quanta gratidão. Desta vez, fui eu que não resisti e tomei a iniciativa de lhe dar um abraço, um forte abraço, feito de saudade imediata, traduzindo todos os meus desejos sinceros de boa fortuna.
Em seguida, Iker e os britânicos embarcam juntos em uma van rumo a Bishkek. O veículo arranca e eu fico do lado oposto da avenida, contra o Sol, olhando a van até vê-la sumir completamente, meio ofuscado pela luz, tremendo de frio, com o vento do inverno chegando.
A viagem continua. Estou sozinho de novo. Esperando o carro para Naryn.
* * *
A nova cidade chegou logo, em apenas duas horas de estrada.
Novamente, visões de faroeste. À beira do rio Naryn (que vai depois formar o Syr Darya), logo na entrada da cidade, uma baixa colina surge. Vermelha, vermelhíssima, a cor dos desfiladeiros do Grand Canyon, com a vegetação rasteira dos desertos. O monte vermelho, o rio, dois ou três quarteirões de casas; depois, adentro pela avenida Lênin, a principal artéria da cidade. O horizonte fica bloqueado de picos nevados. Seguindo pela Lênin, logo encontro a prefeitura no modesto centro da cidade.
A dois quilômetros da prefeitura, novamente à beira da mesma avenida, uma única construção chama muito a atenção. Trata-se de uma mesquita, mas uma mesquita como nenhuma outra.
Sua fachada é absolutamente bizarra. A fachada traz um mosaico de espelhos e "asas" ornamentais em cada um dos lados da entrada. Tudo azulado e verde, com brilhos. Parece algo inspirado em Gaudí, um desvario, uma tentativa clara de romper com qualquer estética tradicional. Nada que lembre a honrada simplicidade dos mazars sufis de Shymkent, ou os azulejos timuridas de Samarkand, ou os magilas de barro no Pamir, ou as intrincadas fachadas karakhanidas de Özgön. Nada da energia e força dessas construções assentadas na história, mas muita energia e força advinda de um atrevimento jovem, criativo, inocente. Algo que diz "sabemos como uma mesquita deve ser, vamos fazer algo diferente, inédito, que tenha a ver conosco".
O "a ver conosco" fica mais claro com a sutileza interna. Dentro da mesquita, a pequena sala de orações é coroada por uma abóboda sem frases na linda caligrafia árabe, como se vê em muitos templos do tipo. Em vez disso, o teto foi pintado com linhas que recriam o que uma pessoa vê no teto de uma tradicional iurta quirguiz.
Ver isso me fez automaticamente sorrir. Eis a beleza do sincretismo, a cultura local se mesclando com o Islã global, sendo que a cultura local é muitas vezes mais antiga que o próprio Islã. Nada mais natural do que criar uma mesquita-iurta.
As cores e os espelhos da fachada ajudam o templo a se destacar no frio intenso do inverno, refletindo o Sol nos meses de congelamento. Uma edificação pequena, mas que pode ser vista de longe, notada por quem vem pelas montanhas, com seus cavalos, voltando das jailoos.
Sim, uma mesquita estranhíssima, mas que faz completo sentido.
* * *
Após duas horas e meia em Naryn, novamente ponho o pé na estrada, novamente em direção ao sul, continuando na mesma direção que segui desde que deixei Kochkor. A ideia era dormir em algum lugar ainda mais perto da fronteira chinesa, continuando esse namoro com a divisa que vinha desde Murghab. Meu objetivo era visitar, no dia seguinte, o lendário Tash Rabat, provavelmente o mais conhecido caravançarai (estalagem de caravanas) da Rota da Seda, num lugar isolado em meio às montanhas.
A vila de At Bashi me pareceu um local perfeito para usar como base por ficar perto do Tash Rabat. Eu agora estava acompanhado de uma suíça que eu havia conhecido em Naryn e que, como eu, queria visitar o Tash Rabat no dia seguinte. Uma senhora de uns 60 anos, magra e miúda, loira e com olhos claros e tristes, fumante compulsiva, sorridente por ter encontrado alguém que falasse inglês, um ar de sedenta por aventura, mas também de cansada de viajar sozinha. Conversamos, fizemos uma aliança e decidimos dividir o táxi para At Bashi.
Lá chegando, ficamos impressionados com as montanhas nevadas no horizonte ao redor da vila. Os picos, disse ela, a faziam lembrar de seu país.
Logo encontrei um família disposta a nos acolher para passar a noite. A casa ficava ao lado de um planalto. Era possível subir por uma trilha até a parte superior, um descampado onde ficava um cemitério. Um cemitério que, à distância, de baixo, parecia uma pequena cidade, com seus curiosos mausoléus. Um cemitério com uma vista gloriosa dos picos nevados. Uma vista para ressuscitar os mortos. Na ausência de atrações óbvias na vila, foi para onde fomos, aproveitar o dócil Sol do fim de tarde.
Os curiosos mausoléus foram, como em Naryn, mais uma manifestação de sincretismo religioso.
Eram tumbas com formatos diversos, quase sempre coroadas com o crescente do Islã. Havia tumbas na forma de pequenas mesquitas. Algumas, muito simples e antigas, feitas de barro moldado, quase tão primitivas quanto os magilas do Pamir. Outras, mais elaboradas, com cúpulas perfeitas. Várias tumbas copiavam iurtas. Expostas aos elementos, algumas estavam semidestruídas - em alguns casos, apenas os esqueletos de metal das tumbas-iurtas sobreviveram.
São estruturas melancólicas. Iurtas que hoje nada protegem, que um dia foram fortalezas, hoje, apenas metal nu fazendo sombra.
Além da vista incrível das montanhas, o cemitério oferece um panorama privilegiado também do vilarejo em si. É tão bem localizado que poderia ter sido o lugar de uma fortaleza ou castelo. Muitas tumbas ficam logo ao lado da encosta do planalto, uma queda de uns 30 ou 40 metros até onde está a vila. As montanhas gigantes à distância ao redor encurralam uma névoa sobre as casas. Só é possível ver os tetos. O resto delas está mergulhado em um branco que se dissolve e volta a se formar, delicado como seda.
O Sol dourado das seis da tarde torna tudo mágico. Ele se despede com força diretamente sobre os olhos, forçando piscadas e piscadas, e entre piscadas fazendo surgir delírios de sombras no cemitério.
As sombras fantasmagóricas ficam douradas, os mortos agora vestem suas ricas roupas de festa e saem para passear.
Nas lufadas inconstantes de vento gelado se ouvem canções que não se parecem com nada que já ouvi. Melodias difusas, duas ou três notas que se repetem. Produzidas pelo vento tocando os esqueletos de metal das tumbas-iurtas como se as barras metálicas fossem flautas. Ou tocando a própria imaginação.
Quatro vacas lá em baixo na cidade ouvem a melodia arcana e mugem em resposta.
Silêncio uns segundos. Depois, volta o vento, mais melodia e mais melancolia.
O baile dourado dos mortos acaba em poucos minutos, quando a noite chegar.
Desço do planalto, de volta ao mundo dos vivos. Encontro crianças andando de bicicleta na rua. Já era lusco-fusco. Aproximam-se de mim, curiosíssimas, como sempre. Sou um portal para outra realidade, a que muitos deles nunca verão. Um barbudo brasileiro tão longe de casa.
Respondo às perguntas que entendo. Saúdo uma velhinha que aparece com sua neta e peço para tirar fotos dela com as crianças. A velhinha sorri, meio sem acreditar que se transformou numa atração turística. Todos, não só ela, me olham com incredulidade. Na hora da foto, todos sorriem. Que lindos que eles são.
Volto para a casa, plov e cerveja, papo com a suíça, perfeito. Mas quando me enfio embaixo dos edredons, percebo que terei problemas. É a noite mais gelada de toda a viagem até agora. O quarto não tinha aquecimento. Dentro dele, temperatura seguramente próxima de zero. Peço mais edredons, mais cobertores. Tremendo, aos poucos vou esquentando. Sou engolido pela cama.
Não longe do bochicho do centro da cidadezinha de Kochkor - o bochicho causado, basicamente, pelo mercado e por um ponto de táxi de onde sai todo o transporte para outras cidades -, uma pequena mesquita jaz sozinha, afastada, à beira de uma avenida que leva às montanhas.
Não é de séculos atrás. Pelo contrário, parece bem moderna. O prédio observa e é observado pelos lindos picos distantes, já com um pouco de neve nos cumes, anunciando o inverno que se aproxima. O Sol está morno. É fim da tarde. Poucas nuvens no céu. Tudo está muito bem, tudo está tranquilo, em paz.
O Sol dourado e o azul celeste profundo proporcionam à mesquita a moldura perfeita para fotos e fotos. De repente, surpreendendo a mim e a Iker, dois jovens com chapéus brancos islâmicos, aqueles que só cobrem o alto da cabeça, saem do salão de orações (que acreditávamos até então que estava vazio e trancado). Saem, nos cumprimentam com alegria, percebendo que estamos apreciando o templo, e se vão. Para eles, este é um lugar do cotidiano, não é nada de mais. Deve ser um espanto para eles que estrangeiros venham para cá tirar fotos. Deve ser uma honra.
Mas este lugar não é apenas uma feição do cotidiano desses jovens. Nem apenas um cenário para fotógrafos amadores. A mesquita tem uma história trágica para contar. Ela é mais um indício do legado soviético, do legado de Stálin. Um sinal de mais uma ferida que vai sendo, até hoje, sarada com o tempo. Deixando cicatrizes para sempre.
Sento-me para descansar do lado de fora da edificação. Um outro jovem aparece vindo de dentro, este, com uma longa barba e sem bigode. Nos saúda com o tradicional aperto de mão centro-asiático, segurando a nossa mão direita com suas duas mãos e curvando levemente a cabeça para o chão. Em seguida, pergunta (em russo) se sabíamos inglês. E na sequência, sem sequer esperar pela resposta, pergunta se falamos turco. Respondemos que sabíamos inglês. O jovem, coitado, parecia que queria muito nos falar algo, mas claramente não tinha conhecimento bom da língua. Ficou gaguejando, tentando dizer algo. Imagino que também não soubesse muito russo, porque nem tentou ir além das perguntas iniciais. Acabou se despedindo, com um olhar triste, e foi embora.
"Acho que ele queria nos mostrar a mesquita, falar sobre o que ela significa para ele", disse Iker. Concordei.
Imagino que o jovem fosse um descendente de turcos mesquetianos, um grupo étnico que, como muitos outros, entre eles chechenos e alemães, sofreu imensamente com as políticas de realocação de populações de Stálin nos anos 40. Algumas dessas populações, como os chechenos, enviados em grandes números para o Cazaquistão, acabaram voltando anos depois. Isso ocorreu quando, após a morte de Stálin, Krushchov tentou corrigir alguns dos crimes atrozes de seu antecessor.
Todavia, muitos grupos jamais voltariam a suas terras ancestrais. Foi o caso dos mesquetianos. Embora quisessem, nunca foram autorizados pelo governo soviético a retornar a seu lar, uma região da Geórgia na fronteira com a Turquia, da qual foram arrancados por Stálin. Eles foram amaldiçoados pelo temor de que pudessem ter mais afinidade com os turcos do outro lado da fronteira do que com Moscou. Literalmente pagaram pela animosidade entre Turquia e Rússia, pela paranoia do líder soviético.
A deportação ocorreu em 1944. Embora existam poucos registros conhecidos, acredita-se que os cerca de 120 mil turcos mesquetianos foram todos colocados em trens e despachados para a Ásia Central. Milhares morreram na jornada, e a maioria dos que sobreviveram foi parar no Uzbequistão.
Durante muitos anos, os soviéticos mantinham qualquer esboço de tensão étnica na URSS sob controle, à base de repressão e também mecanismos políticos. As autoridades moscovitas eram ao mesmo tempo árbitros, policiais e carcereiros, responsáveis por manter a unidade e a paz do imenso país. Todavia, na reta final da grande aventura bolchevique, toda a estrutura começou a desmoronar. A distensão política motivada pela Perestroika e pela Glasnost de Mikhail Gorbachov logo se traduziu em um incentivo para que grupos políticos nacionalistas expressassem mais abertamente suas opiniões. Daí para surgirem violentos conflitos foi um pulo. Foi assim em 1990 entre quirguizes e uzbeques na região de Osh. E um ano antes no Vale de Fergana uzbeque. Em junho de 1989, nas áreas de Kokand e da cidade de Fergana, os uzbeques explodiram após anos de ressentimento em relação a seus estranhos vizinhos mesquetianos. Sentiam-se injustiçados ao ver as propriedades dos "estrangeiros", seus pequenos negócios, enfim, sua aparente prosperidade em terras que, na visão dos nacionalistas, não lhes pertenciam.
De acordo com um relato oficial, mais de cem pessoas morreram e mil ficaram feridas, embora se acredite que tenham sido muito mais. A violência foi tão extrema que as autoridades soviéticas não tiveram outra opção a não ser realocar, novamente, toda a população de turcos mesquetianos que se encontrava na região do conflito. Lá foram eles de novo ser reassentados em outros pontos da União Soviética.
A mesquita em Kochkor é uma das que foram construídas pelos mesquetianos. Neste momento, quando a geração desenraizada que viu os horrores de Stálin está morta ou prestes a desaparecer, seus descendentes mantém a lembrança. Para esses descendentes, já não faz mais sentido acalentar o sonho de voltar às terras de origem de seus ancestrais. Talvez fosse isso que o jovem queria nos falar: do sofrimento contido em cada tijolo desta construção; da tristeza eterna, mas hoje resignada, do exílio; e também da esperança de vida tranquila, deixando para trás o sangue do passado. Talvez quisesse falar também da dor que é ver o crescimento de partidos nacionalistas nesta região do mundo, em que a nação, em termos de identidade, está diluída pela construção ainda presente do Homo sovieticus. Onde um turco mesquetiano pode ser tão quirguiz quanto um quirguiz que nunca, há gerações, deixou Kochkor.
Ao deixar a mesquita, reflito, mais uma vez, sobre a riqueza de povos na antiga União Soviética e a fraternidade desconfortável mantida sob controle pelos comunistas em Moscou. Fraternidade desconfortável, sob controle. Paz à força. Evidentemente, as divisões eram exploradas como estratégia de dominação política pelos soviéticos. Os grupos étnicos competiam por recursos, e Moscou os distribuía de acordo com os seus interesses, mantendo populações que viviam num mesmo lugar sempre na palma de sua mão. Dividindo, mantendo a tensão, para controlar.
A dependência dessa mediação do Kremlin gerou conflitos ainda mais horríveis do que os entre turcos mesquetianos e uzbeques quando a URSS caiu. Os piores, na verdade, não foram entre povos transplantados por Stálin e as populações nativas, mas sim entre povos irmãos que há séculos dividiam a mesma terra. A guerra civil no Tajiquistão (1992-1997), por exemplo. Neste caso, floresceram as dores do regionalismo: as elites de Khojand enfrentando elites de Kulob, com a complicação provocada pela extrema pobreza e pela existência de ativistas islâmicos.
Nas montanhas do Cáucaso, entre Armênia e Azerbaijão surgiu a notória disputa pelo território de Nagorno-Karabakh. Foram seis anos de guerra (1988-1994), seguida por um tenso armistício em que periodicamente há troca de tiros e ameaça de retorno ao conflito total. Hoje, o Nagorno-Karabakh está sob controle de uma "república independente" cuja língua é o armênio e onde se usa a mesma moeda da Armênia, mas cujo território é reconhecido pela maioria esmagadora do mundo como parte do Azerbaijão. Na vizinha Geórgia, houve guerras nas regiões da Abecásia e Ossétia do Sul. Novamente, se enfrentaram nacionalistas georgianos e dos dois territórios. Fora do Cáucaso, na Moldávia, houve o conflito da Transnístria, uma região estreita na fronteira com a Ucrânia. Todos esses territórios, Abecásia, Ossétia do Sul e Transnístria, seguiram os passos de Nagorno-Karabakh e são hoje "repúblicas independentes" não reconhecidas por praticamente nenhum país e onde às vezes a tensão volta a aflorar. Nesses "conflitos adormecidos", a Rússia de Vladimir Putin encontrou um caminho para manter sua influência. Analistas acreditam que Moscou de fato mantém a tensão nessas regiões para que possa, assim, continuar com uma maneira de direcionar os governos dos países envolvidos de acordo com seus próprios interesses. Para que possa manter, de uma maneira enfraquecida, os mecanismos que arbitragem dos tempos soviéticos.
Em outros lugares, a divisão existiu e existe, mas não aparece nas manchetes dos jornais porque nunca houve guerras e seus efeitos são mais sutis. Quantas línguas se falam nas casas de Kochkor? Quantas identidades coloridas, maravilhosas, guardam estes telhados? O quirguiz que vive até hoje seminômade com suas iurtas. O russo que chegou no século XVIII com sua vodka. O turco trazido à força por Stálin. Chineses, cazaques, uzbeques, uigures (etnia que habita principalmente o oeste da China). E quanto dessa beleza corre o risco de morrer no futuro se o Quirguistão for tomado por um governo que favorece apenas um grupo étnico, uma língua, uma identidade?
Boa sorte aos turcos mesquetianos e seus descendentes, boa sorte a todos os órfãos da URSS, no limbo dentro das fronteiras do finado grande país.
* * *
Eu e Iker chegamos à pequena Kochkor após uma torturante jornada de três horas em um táxi com seis pessoas, no qual o motorista nos jogou nos bancos de trás e ficamos tão apertados que eu não conseguia mexer meus pés. Não havia espaço físico sequer para dar uma chacoalhada e evitar que eles adormecessem. Aliás, foram três horas em que minhas pernas ficaram se alternando entre adormecidas e doendo (doíam quando algum passageiro vizinho, Iker ou o outro, as apertava ainda mais em uma curva, por exemplo).
Pegamos boa parte do caminho que eu havia feito para ir de Bishkek para o Issyk-Kul. A obra que eu tinha visto em agosto na estrada do Desfiladeiro do Cadarço estava completa. O asfalto agora estava tão perfeito e liso que parecia uma pista de patinação. Pelo menos, nesse desconforto todo, não tivemos buracos no caminho. Ao final do desfiladeiro, em vez de seguir reto em direção a Cholpon-Ata, pegamos uma saída à direita.
Novamente, a agência local de Turismo Comunitário foi muito eficiente. Nos encaminhou a uma casa de uma família de origem uigur. Por módicos 500 som (aproximadamente US$ 7), ganhamos um quarto confortável e o direito de usar um chuveiro de água quente. Jantamos o que nos ofereceram e foi ótimo - um maravilhoso oromo, talvez melhor do que o que comemos em Osh ao chegar do Pamir. Para acompanhar, salada de repolho com pimenta do reino. Para sobremesa, geleias diversas e pão. Nota dez, idem para o chuveiro. Não tinha tanta mordomia desde o luxuoso hotel de Tashkent.
Na cidade, passeamos sem destino pelas ruas empoeiradas até encontrar o museu regional, uma casinha esquecida em um canto, com o ar triste de quem já viu dias melhores. A tristeza aumentou em mim ao ver o seu interior, em péssimo estado de conservação. Pela primeira vez na minha vida tive medo de entrar nas salas de um museu. O motivo: em várias delas, o chão de madeira havia cedido, criando buracos profundos que pareciam estar aumentando a cada dia. Mas, se me deu medo, seu acervo era ao menos mais interessante do que o do lamentável museu perto de Otyrar, no Cazaquistão, até então o pior da viagem. Neste, achamos lindos pôsteres de propaganda soviética, uma iurta completa e uma incrível peça de tapeçaria contendo cada um dos brasões das antigas repúblicas soviéticas. Uma obra maravilhosa de união do universo soviético com o artesanato quirguiz, que criou uma linda pintura feita com tecelagem. Aliás, esse sincretismo está em tudo no museu, apresentando um pouco do que aconteceu quando a fascinante cultura de séculos dos quirguizes se juntou com o que foi trazido pelo comunismo.
Do lado de fora, vejo um amontoado de pedrinhas, daquelas usadas em construção. Talvez eles estejam começando a reformar o museu. Torço para que estejam mesmo.
* * *
Ando profundamente irritado, sem paciência, preguiçoso para tudo. Triste admitir, mas, dada a oportunidade, provavelmente ficaria o dia inteiro trancado em casa assistindo filmes na TV.
Evidentemente isso tem a ver com o fato de minha jornada já durar sete semanas - sete semanas de rotina nômade, arrumando e desarrumando a mochila. Engraçado como algo que parece um sonho também pode cansar logo. Fico me perguntando sobre os mochileiros que ficam um ano na estrada, ou que ficam ainda mais. Deve haver um limiar, uma fronteira que se cruza, depois da qual a viagem passa a ser uma segunda natureza, toda a rotina de movimento e transporte em panoramas desconhecidos passa a ser simplesmente o cotidiano, e então esse cotidiano passa a ser confortável. Um conforto que surge da aceitação do inevitável - sim, viajo, e viajar é o natural a fazer, tão natural quanto respirar ou piscar os olhos, tão natural que não se pensa nisso, é algo que apenas acontece.
Temo, porém, que esse conforto venha juntamente com o tédio. Ou com a indiferença (que vacina você contra a irritação, algo tão natural). Ou com a incapacidade de se emocionar ao ver locais novos, incomuns, curiosos, belíssimos. Assim, que bom que ainda não cruzei meu limiar. E hoje enfrentei as consequências disso. Tive um episódio de descontrole emocional que me envergonhou muito, revelando a dificuldade que tenho de lidar com o imprevisto, o imprevisto que é tudo que se encontra em longas jornadas.
Decidimos, eu e Iker, visitar um mercado no centro de Kochkor para comprar alimentos para um passeio que faremos amanhã. Ao entrar, relaxado, peguei pão, manteiga, chocolates e um litro de água mineral. Quando me dirigi ao caixa, a mulher me recebeu com o rosto fechado, me metralhando com palavras em russo que eu nem entendi. Simplesmente ignorei: imaginei que não fosse nada importante e, afinal, o que eu queria fazer era algo simples, à prova de erros, eu só queria mostrar as mercadorias, pagar e sair. Fiz isso. Quando saí do mercado, veio uma outra funcionária atrás de mim, esbaforida, reclamando que eu não havia pago. "Como não?! Eu paguei!", respondi, ríspido e mal-educado.
Era uma loja como a que eu havia encontrado em Almaty em abril, e eu não sabia, ou não imaginava, que outras lojas como a da cidade cazaque existissem. Embora todas as mercadorias estivessem sobre o mesmo teto, elas pertenciam a vendedores diferentes, que simplesmente compartilhavam o mesmo espaço. Assim, algumas mercadorias são de um, outras são de outro, e você tem que pagar algumas em um caixa, onde está um dos vendedores, ou no outro. Lembrei-me de repente de como a mesma situação me irritou em Almaty, quando assumi que se tratava de pura desorganização. De fato, difícil entender - como assim? É um mercado só! Como pode ser dividido em dois, três? Depois, me contaram que há ainda muitas lojas assim. Outro legado soviético.
Neste caso, quando paguei, paguei apenas as mercadorias relativas ao caixa ao qual me apresentei. Paguei as mercadorias que faltavam para a outra mulher, a que me perseguiu fora da loja. Saí bufando pelo transtorno. Eu já entendia bem o que havia ocorrido. Erro meu, duas vezes, em Almaty e agora, em Kochkor.
Na volta do mercado, já tinha se posto o Sol, mais uma noite fria e clara tinha chegado. Jantar, chuveiro, pijama. Só no fim da noite finalmente minha irritação baixou.
Na cama, no escuro, sinto muito cansaço, mas não consigo dormir. Ouço ao longe cachorros que não param de latir. E, na sala ao lado, o dono da casa assiste TV com o volume alto demais. Meu russo milagrosamente funciona bem e, na penumbra, ouço o telejornal e fico sabendo de coisas estranhas ocorrendo longe, muito longe, muito além dos cachorros. No resto do mundo, não na escuridão em Kochkor, onde tudo, pelas próximas horas, graças a Deus, vai permanecer parado.
Algumas delas: A ausência frequente de banheiros dentro das casas no interior, obrigando todos a enfrentar o frio lá fora no meio da noite. A presença constante e chamativa de dentes de ouro na boca dos simpáticos locais, muitas vezes substituindo todos os incisivos, os caninos, enfim, a maior parte da dentição. A ausência frequente de facas em restaurantes no Pamir. A presença constante, quase universal, de TVs mostrando videoclipes em restaurantes um pouco mais sofisticados (ou seja, aqueles que têm TVs), talvez um sinal de quão detestada é a TV aberta (pela presença dos políticos? Por só trazer programas velhos? Pelo sinal ser ruim?) ou de como todos amam a música pop (fascinação com o estilo de vida americano, carros, rappers, mulheres maravilhosas?). Todos esses temas dariam excelentes dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros com vários volumes. Assim como os chapéus maravilhosos, as línguas, todas as cores e personalidades dos povos deste universo.
Mas se há uma idiossincrasia que representa um desafio formidável ao visitante na Ásia Central é a comida. Difícil morrer de amores pelo que comem tradicionalmente os quirguizes e cazaques, povos cujas culinárias se misturam. A vida nômade do passado gerou uma culinária entediante, muitas vezes sem gosto e às vezes, como vi inúmeras vezes no Pamir, praticamente intragável.
Os nômades das estepes não tinham lavouras, mas tinham cavalos, cabras, carneiros. E comiam carne. Muita carne. É assim até hoje. Nos restaurantes há uma predominância especialmente da carne de carneiro. Nos locais mais tradicionais, ou em festas, come-se também a de cavalo. A carne suína, proibida para os muçulmanos, é quase que completamente ausente.
Há muitas variedades de pratos para os não-vegetarianos, sendo que a mais palatável para o brasileiro é o shashlik, o espetinho de carne - que aliás é comido em toda a região, por uzbeques, turcomanos e tajiques também. Bem feito, é maravilhoso, assim como os Mantis, grandes raviolis cozidos, servidos em geral com creme de leite e uma pitada de endro em cima. Há o Beshbarmak (que significa "cinco dedos", numa referência à forma como deveria ser devorado), o prato mais festejado dos cazaques e quirguizes: carne de carneiro cozida e despejada sobre um ninho de talharim, como o de Osh. O talharim centro-asiático, o laghman, é comido como parte do beshbarmak ou em uma sopa com carne. São muito populares e fáceis de encontrar também as sopas russas, borsch, de beterraba - uma das poucas opções para os vegetarianos -, e salianka, com linguiça. Há o plov, o risoto uzbeque que se tornou um sucesso em toda a Ásia Central. Por fim, há as samsas, os pastéis triangulares semelhantes às samosas indianas, assados e com recheios diversos. Tudo muito simples.
Em alguns desses pratos, se nota a influência russa, como o uso do endro, ou chinesa, provável origem do laghman. Contudo, em se tratando de pratos realmente típicos cazaques e quirguizes, há alguns que realmente causam arrepios até nos mais aventureiros fãs da gastronomia. Hoje em dia, eles são vistos mais frequentemente em eventos especiais, como parte de um banquete. Falo, por exemplo, da cabeça de caneiro cozida (com os olhos, o cérebro e a língua). Ela deve ser fervida em um kazan, uma grande panela funda, e servida com algumas rodelas de cebola crua jogadas caoticamente por cima do crânio. Ao mais distinto convidado da festa, ou o mais velho membro da família, reserva-se a honra de comer um dos olhos. Nunca vi o prato por aqui, embora, em minha viagem, tenha encontrado cabeças de carneiro à venda no grande mercado de Almaty.
Hoje, em um restaurante de beira de estrada, enfrentando 10h de viagem de Arslanbob a Bishkek, relembrei mais duas possibilidades da culinária centro-asiática. Estávamos esfomeados, e o lugar estava às moscas (eram umas 15h, talvez todos já tivessem almoçado). Nos deram o menu. Eu e Iker escolhemos logo de cara shashlik. Não tinha mais. Escolhemos então outro prato, manti. Também não tinha mais. O que tinham eram apenas outras duas opções. Perguntei: oras, mas então para que nos dar menu? Bastava nos falar de cara o que tinham. Que piada. Apesar da fome, demos risadas.
A primeira opção disponível era um ensopado de batatas com pedaços de carne de carneiro, um prato chamado shorpo. Nada contra o shorpo. No Pamir, era geralmente isso ou laghman. E o shorpo do Pamir vinha sempre com carne de carneiro com muita gordura e muita batata. Enche a barriga e enjoa demais. Você sente toda a boca e a garganta cobertas de graxa. O gosto de água com gordura. Minha solução foi sempre colocar muita pimenta. Digo ao garçom, não, obrigado, estou evitando no momento. Quem sabe daqui a algumas semanas, quando o gosto de gordura tenha finalmente deixado minha boca, volto ao shorpo.
A segunda opção era pelmeni. Prato russo, é uma espécie de ravioli, mais pequeno que o manti, com recheio de (adivinhe) carne. Na Ásia Central inteira o pelmeni é servido numa sopa de caldo de (adivinhe) carne. Pedimos.
Nos trazem após longos dez minutos. Os raviolizinhos nos chegam boiando na sopa fervente com uma grossa camada de óleo na superfície. Pesco um, sopro, sopro mais, mas estou com fome demais e avanço no farol vermelho. Mordo. Queimo a língua e as gengivas. Dentro do pelmeni, gordura pura. Engulo. Aquela sensação familiar volta à garganta. O restaurante sequer tem uma coca-cola para acompanhar. De bebida, apenas uma opção, chá. Em duas variedades: verde ou preto. Ultimamente, tenho preferido tomar água quente.
Com Iker, passo aquele almoço tenebroso lembrando como sinto falta de gostos familiares, de boa pimenta e curry, principalmente. E lembrando da grata surpresa que foi aquele restaurante que descobrimos em Osh na noite em que chegamos. Excelente pimenta, excelente beshbarmak. Osh foi um oásis gastronômico, uma alegria maravilhosa.
Mas não tanto quanto Bishkek será. Comento com Iker: sim, lá é possível comer bem. Comer, aliás, todas as porcarias que os países de onde viemos nos dão. Pizza, hambúrguer. Fico salivando, num misto de fome e saudade. Meio envergonhado, afinal, pois parece que entrego a alma ao demônio toda vez que admito que quero um sanduíche com maionese. Meio envergonhado também porque eu adoraria me vangloriar de que comi os pratos da Ásia Central e descobri uma culinária misteriosa e divina, a comida de Shangri-lá! Fico pensando como alguns quirguizes devem achar tudo o que eu gosto de comer intragável. Da mesma forma que eu em relação aos pelmenis de gordura que eles aceitam sem pestanejar.
Enfim, terminamos aquele suplício de refeição. Me prometo devorar um x-hambúrguer ao chegar à capital quirguiz.
* * *
Bishkek, voltei, mas por pouco tempo. Desembarcamos na cidade no fim da tarde. Que felicidade reencontrar a capital! Já penso meu futuro. Em pouco tempo, voltarei para cá para viver por dois meses. Mas desta vez, será apenas uma noite. Em algumas horas, estarei a caminho de Kochkor, mais uma parada na viagem.
Bishkek nos recebeu com tempo e temperatura ótimos. Lembrei o já distante início desta aventura, com o Sol e o calor, quando eu ainda imaginava como seriam Khojand, o Pamir, Murghab.
O motorista que nos trouxe de Arslanbob nos deixou perto de onde iríamos passar a noite, um "hotel" no terceiro andar de um bloco de prédios soviéticos. Dificílimo de encontrar o tal "hotel". Tivemos que ligar duas vezes para o gerente para pedir orientação e ainda conversar com as pessoas que andavam nas redondezas - que ficaram surpresas ao saberem que ali funcionava um lugar para hospedar turistas. Uma senhora russa, com seu bebê no carrinho, foi categórica, espantadíssima, jurando que lá só havia apartamentos residenciais.
A nossa insistência deu resultado. Vencemos três lances de escadas mal iluminadas e sujas em um dos blocos e lá encontramos o lugar, que nada mais era do que o apartamento de um jovem que oferecia seus quartos para visitantes. Nada de especial no lugar, realmente parecia apenas um apartamento, mas cheio de mochileiros sem muito dinheiro. Provavelmente, algo totalmente ilegal, sem nenhum tipo de autorização especial das autoridades.
Foi melhor do que eu esperava. fiquei com Iker em um quarto espaçoso, o gerente falava inglês perfeito e recebi uma cama queen size. Na área comum, uma pequena sala com TV, cozinha coletiva e o acesso a dois outros quartos. Descarregamos as coisas, nos preparamos para voltar para rua para jantar e trocar dinheiro.
Perto da avenida Chuy e da praça Ala Too, dezenas de jovens bens vestidos, relaxados, namorando ou flertando, homens e mulheres. Comendo cheirosas samsas e shashliks.
Minha saudade de comer porcarias acaba - no afã do fast food quirguiz. Não cumpro minha promessa a mim mesmo. Pego duas sansas, uma de queijo e uma de carne, e uma coca-cola. Estou satisfeitíssimo.
Um cheiro doce ao redor. Agradável, um pouco azedo. Lembra cheiro de limão. Mas onde estou não há limoeiros. É um bosque de árvores altas, frondosas, mas bem separadas entre si. Tenho muito espaço para caminhar entre elas chutando as folhas secas, para zanzar entre um e outro um pedacinho de luz que penetra pelos galhos. Nesses lugares em que o Sol entra, ele pinta as folhas secas que cobrem cada milímetro do chão. Elas ficam douradas, ocres.
Caminho rumo a um grande aclive no bosque. Lá em cima, ao lado de uma cerca de arame farpado, uma senhora, com um longo vestido verde e um lenço vermelho cobrindo os cabelos, usa um pau para revirar as folhas no chão. Tem um grande saco surrado de tecido em uma das mãos. Procura nozes.
Nogueiras. Este é o maior bosque de nogueiras do mundo - nada menos que 11 mil hectares, ou 110 quilômetros quadrados. Parece piada: eu jamais havia visto sequer uma nogueira; agora, é como se tivesse encontrado todas elas juntas no mesmo lugar, dezenas, centenas, milhares.
É grandioso.
Estamos no fim da colheita. As árvores já estão meio nuas para o inverno. Mas ainda há os aldeões de Arslanbob ziguezagueado, cutucando o chão. Eles passam o dia aqui, assim, com sacos, enchendo-os com os frutos caídos que encontram. O fruto, para mim, que sempre foi o símbolo do Natal e um mistério em termos de origem. Nunca vindo de perto de onde vivo. Sempre lançando a imaginação para algum lugar distante. Sempre chegando até mim como um presente de um mundo além de minhas fronteiras.
A primeira surpresa: não ficam pendurado nas árvores como encontramos no supermercado, com a casca bege cheia de rugas duras. Fiquei um tempo olhando para cima, ofuscado pelos flashes de luz nos meus olhos, tentando encontrar exemplos pendurados. Nada. Então, piso em algo e quase torço o tornozelo esquerdo. Uma esfera verde, meio rachada. Retiro a casca verde devagar e lá está, a familiar casca enrugada. Fico bobo. Bobamente maravilhado. Quantas coisas tão simples como esta fazemos pela primeira vez quase aos 40 anos de idade?
Levanto os olhos. Perto de mim, surge do nada uma mulher que calculo ter minha idade. Vem com sua filhinha de uns doze anos, as duas com vestidos coloridos e os véus, azul a mãe, vermelho, a filha. A mulher leva um bebê nas costas. Ela está com uma mão dada à outra, por trás, na altura dos quadris. A criança senta sobre as mãos dadas da mãe, com as pernas colocadas entre os braços e as ancas da mulher. E, ao mesmo tempo, a mulher leva nas mãos dadas um saco com nozes. Mesmo ainda longe de estar cheio, deve ser um suplício carregá-lo e ao mesmo tempo usar as mãos de cadeira para o bebê. A menina ao lado é forte - carrega uma pesada sacola, bem cheia dos frutos, imensa para seu tamanho, quase da metade de sua altura. Calculo que, talvez, esteja levando metade de seu próprio peso em nozes. E não vejo traço de exaustão em seu rosto.
Encontramos um portão aberto na cerca, depois de termos subido todo o aclive. Atravesso. Uma clareira no bosque vem a seguir, à beira de um vale. Lá em baixo, um riozinho quase invisível, com pequenas cascatas. À frente, do outro lado do vale, a uns 1600 metros de altura, Arslanbob. Por toda a parte no panorama, altos e esguios álamos. Atrás da cidade, iluminadas em cheio pelo Sol da tarde, montanhas nevadas, altíssimas, chamadas de montanhas Babash-Ata.
Ruazinhas de terra, um ou outro Lada 4x4 enfrentando os buracos. A cidade tem todo um clima alpino e rural, com vacas e ovelhas livremente nas ruas. Além de colher o que sobra das nozes, os moradores parecem todos muito ocupados empilhando feno para o inverno que, dizem, por aqui é feroz.
Mais uma cidade de lendas. A mais conhecida diz que um discípulo do Profeta Maomé saiu pelo mundo a procura do paraíso e encontrou um lindo vale, o vale onde está a vila. Mas, ao chegar, havia um problema. O lugar estava vazio de árvores. Ele enviou então uma mensagem ao Profeta comunicando sua descoberta. Em resposta, Maomé lhe mandou um saco com sementes e frutas, pedindo que as espalhasse pelo vale. Entre elas, nozes. O discípulo subiu no topo das montanhas e as lançou ao vento; as sementes brotaram e se transformaram numa linda floresta.
Mas há uma outra lenda que contradiz essa. Essa segunda fala da chegada de Alexandre, o Grande, a Arslanbob. O grande conquistador, que viveu séculos antes de Maomé, teria descoberto aqui a noz e a levou consigo. De alguma forma, ela teria assim chegado à Europa, teria originado os bosques de nogueiras do Velho Continente. Essa seria a origem do nome que os russos dão para o fruto, noz grega, supostamente por causa de Alexandre.
Dada a associação lendária com o Profeta, muitos por aqui consideram o vale de Arslanbob sagrado.
Certamente ele tem algo de mágico. Em um mirante à beira da floresta, ficamos, eu e Iker, uns 20 minutos descansando. Adormeci com rapidez e profundamente por metade desse tempo, aquecido pelo Sol que me ofuscava quando lentamente fugia para trás das montanhas. Sonhei com o sul de Minas Gerais, com a serra da Mantiqueira, com o conforto das pousadas, com o calorzinho e o friozinho.
Acordei sem sobressaltos. Serenamente abri os olhos, me sentei. E olhei ao redor. Arslanbob, a neve no topo das montanhas, as nogueiras. Que longa e curta viagem em um abrir de olhos. Talvez os olhos nem tenham se fechado, nem se aberto.
* * *
No caminho saindo da floresta para a casa onde estávamos hospedados, o Sol rapidamente se foi. Acompanhamos no ocaso uma família de ovelhas pelas ruas de terra, todos seguindo pelo melhor roteiro para evitar os dois ou três carros que circulavam pela cidadezinha. A casa-pousada, como em Tamchy, era associada a uma agência de turismo comunitário, que incentiva as pessoas a abrirem suas próprias moradas para que turistas possam se hospedar. A ideia parece ter sido abraçada com gosto pelos quirguizes, de norte a sul, para ganhar uns trocados a mais e, claro, manter a tradição milenar da hospitalidade e ampliar horizontes por meio dos viajantes. Foi só no Quirguistão que encontrei a iniciativa realmente funcionando e muito bem.
Chegamos a Arslanbob vindos de Osh às 14h30 e, logo ao descer da van, fomos abordados por um senhor simpático, falando inglês melhor do que o meu e o do meu amigo espanhol. Era o chefe da agência local de turismo comunitário, um uzbeque com um nome inesquecível - Hyatt, como o da rede de hotéis. (Ele certamente estava predestinado a trabalhar com hospedagem de turistas!)
Hyatt nos levou à sua casa, onde funcionava seu escritório. Lá encontramos uma sala com mapas e fotos de hospedagens pelas paredes e tudo escrito em inglês. Fiquei impressionado com a organização. Ele nos mostrou um catálogo com uma lista de possíveis hospedagens locais, umas dez ou quinze. Escolhemos, ele ligou para a dona da casa e pouco depois um motorista apareceu com um carro para nos levar lá. Hyatt comentou que agora Arslanbob tem turismo comunitário o ano inteiro, inclusive no inverno, já que turistas vêm para cá para esquiar. A cidade não tem uma estação de esqui, mas alguns entusiastas mesmo assim sobem as montanhas e exploram caminhos selvagens para descer a toda velocidade.
A acomodação. Fantástica. Ficamos na casa de uma senhora. Sua filha e netos (nenhum homem à vista) estavam ocupadíssimos ensacando milhares de nozes que tinham coletado na floresta e colhendo batatas da plantação no quintal para o inverno. As nozes estavam em um tapete em frente à casa, nunca vi tantas em minha vida, milhares, espalhadas por uma área de pouco mais de um metro quadrado. Nos deram um quarto com uma cama de casal e outra cama, de solteiro, e quilos de edredons. Café da manhã e jantar incluídos e um preço excelente, 530 som (cerca de US$ 24).
A tarde havia sido com uma temperatura amena, uns 16, 15 graus. À medida que a noite foi chegando, juntamente com ela veio um frio assombroso, que tomou conta do quarto sem calefação (o que explicava os quilos de edredons). Minha mão direita foi particularmente afetada pelo ar gélido. Fiquei sem sentir meu dedo indicador até a comida chegar: uma tigela de sopa quentíssima com legumes diversos, arroz, pedacinhos de carne e pão para acompanhar. Aqueci-me com piadas e risadas, planejando com Iker os próximos passos do nosso caminho.
Uma hora depois, novamente dormi com rapidez e profundamente. Sob as pesadas cobertas, em um dos locais mais abençoados pela natureza que eu já vi.