O que é "Novas Fronteiras"?
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Este capítulo descreve uma visita à República do Caracalpaquistão (pertencente ao Uzbequistão) antes dos protestos de julho de 2022, nos quais pelo menos 18 pessoas morreram. Os confrontos foram motivados por uma proposta de emenda à constituição do Uzbequistão, apresentada pelo governo uzbeque, que previa o fim do status autônomo da república e de seu direito legal de reivindicar sua independência por meio da realização de um plebiscito. Após os protestos, o governo uzbeque retirou a proposta. Clique aqui para ler um resumo dos acontecimentos.
20/8/2018
No fim da tarde, sol e vento agradável. Temperatura perfeita, uns 22 graus. Em um passeio à beira-rio.
Jamais esperava ver isto nesta cidade.
A promenade estava sendo bem aproveitada: havia ciclistas, pessoas correndo, famílias passeando com seus bebês. No rio em si, mais atividade: remadores, caiaqueiros. Aliás, de longe vinha se aproximando, passando por baixo de uma ponte, a toda velocidade, um barco a remo com dois tripulantes. Me perguntei se os atletas estavam treinando para a Olimpíada.
Esta é uma cidade europeia?
É Nukus, capital da remota República autônoma do Caracalpaquistão, a maior cidade na região do Uzbequistão onde fica o moribundo Mar de Aral. Uma visão pré-concebida foi forjada na minha cabeça pela tragédia ambiental no mar. Imaginava toda esta região torturada pela natureza desolada, com pouca gente e, esses poucos restantes, todos doentes, magros, tristes. Imaginava um lugar seco, com residências sendo destruídas implacavelmente pelos elementos, vento horroroso trazendo sal e poeira, solo infértil, poucos pássaros, árvores raquíticas... céu azul sempre visto com um filtro cinza, por todos os lados a sombra da morte, os presságios do apocalipse.
O que vejo é o oposto disso. Em primeiro lugar, há o mesmo que se vê em tantos outros lugares do Uzbequistão, desde o agora longínquo vale de Fergana, no extremo leste, a agora este, no extremo oeste: o governo destruindo construções antigas e construindo prédios novos, criando e reformando calçadas, reformando tudo. Eu não estive em Nukus antes, então não posso saber exatamente o que existia aqui antes. Certamente, muitas memórias. Mas o que encontro é uma calçada agradabilíssima, uma área de prazer e lazer, uma oportunidade de admirar o rio — na verdade um canal com água desviada do Amu Darya (o rio em si passa alguns quilômetros a oeste). O canal é grande, amplo. Não é um regatinho de líquido contaminado com pesticidas, uma fonte de vergonha. Os remadores que o digam. Impressionante o contraste com o que eu tinha na minha cabeça. Impressionante como o Amu Darya é ainda poderoso por aqui, tão poderoso a ponto de alimentar este grande canal. Não consigo imaginar como era antes dos soviéticos, que durante seus anos foram construindo canais e canais para desviar água do Amu Darya para suas plantações antes de chegar a Nukus. O rio deve ter sido colossal no passado.
Vi muita gente no passeio ao longo do canal. Uma menina passou com patins, atrás veio a mãe e o pai, de braços dados, ambos arrumados com capricho, ela com seu vestido colorido, ele, barbeado, com o cabeço penteado cuidadosamente. Caminhei um pouco mais e me sentei em um banco à frente de um chafariz de águas dançantes, com música. Ao redor da fonte, alguns camelôs arrumavam as mercadorias no chão — claramente esperando a freguesia que viria mais tarde. Uma menina de uns 12 anos era um desses camelôs; chegou para vender doces industrializados e brinquedos de plástico coloridos. Estava completamente sozinha. Encontrou seu canto e fez tudo com habilidade e velocidade: abriu uma grande sacola, com metade de seu próprio tamanho, tirou um cobertor, o estendeu no chão, foi removendo das caixas cada tipo de mercadoria, ajeitou-as em fileiras sobre o cobertor, guardou de volta as caixas na sacola, a colocou em um lado e, finalmente, se agachou em frente à sua vitrine improvisada, com os braços cruzados. Passou a se dedicar a olhar para o chafariz. Não para os lados, nunca, olhava apenas para a fonte.
A fonte. Os jatos d'água estavam desajustados, deveriam ir todos para o alto e em direção ao centro, mas uns iam para um lado, outros, para o lado oposto, criando poças ao redor. Do lugar onde eu e a menina camelô estávamos, o sol estava na posição oposta. A luz atravessava os jatos subindo e descendo, começando e recomeçando a dança. A música saia de algum lugar que eu não conseguia identificar, acho que da própria fonte. A luz atravessava a água voadora e a dissociava em cores infinitas.
De repente, o vento veio e meu rosto se molhou. Que sonho refrescante.
Havia algumas árvores ao redor. Verdes, vibrantes. E passarinhos. Cantoria de andorinhas em grupos, outras aves maiores que nem consegui identificar.
Onde está a desolação? Onde está a morte?
Uns dez minutos hipnotizado. Nesse tempo, uma única pessoa, uma garota, passou entre a fonte e mim, bloqueando o sol por um instante. Só vi seu perfil escurecido pelo contraste, cabelo puxado para trás num rabo de cavalo. Tirei uma foto. A imagem do seu perfil ficou marcada também na minha retina, a luz do sol ao redor de sua cabeça, criando uma aura.
Me levantei. A menina camelô estava muda, ainda agachada exatamente da mesma maneira. Olhando para o mesmo lugar. Nem notou minha existência. Fiquei com pena.
Ao lado do canal e do passeio fica o mercado central de Nukus. Naquele momento estava fervilhando, todos correndo para comprar comida após um dia de trabalho. Fartura de tudo, frutas, legumes, carne. Vi crianças sapecas, correndo e pulando entre as caixas, entre os sacos, entre os velhos com sacolas, entre os odores de endro e de gases de escapamento. Ao lado, um terminal de vans serve o mercado. Veículos partiam cheios. A gritaria caótica dos cobradores e motoristas, dos clientes correndo de lá para cá para apanhar a condução que já estava partindo.
A sensação era de arrebatamento dos sentidos, muita coisa acontecendo simultaneamente. Meus olhos flutuavam em cada rosto enrugado, murcho pelo sol forte. Meus olhos flutuavam em cada cor nas barracas do mercado. O nariz, em cada cheiro.
De repente, quase atropelei uma velhinha baixinha. Usava uma roupa suja, cores desbotadas, lenço puído na cabeça. Vinha com uma panela pequena na mão. Dentro dela, brasas e um maço de uma planta que estava queimando. Saia uma tremenda fumaça, e eu não sentia nenhum aroma agradável. Ela aproximou a panela do meu rosto, fez movimentos circulares verticais com ela no ar. A erva queimada é chama de ishrik; seu uso em bênçãos supostamente tem raízes anteriores à chegada dos muçulmanos à Ásia Central. Dizem que a erva tem propriedades medicinais, mas era impossível identificar naquele momento se essa era mesmo alguma erva boa para a saúde ou se era apenas um mato qualquer que a mulher pegou e botou fogo. Fiquei desconfortável. A velhinha insistiu em circular a fumaça em meu rosto. Parecia ser cigana, queria um trocado, mas eu não poderia tirar do bolso minha carteira no meio do mercado, alguém poderia facilmente pegá-la e sair correndo. Sorri, fiz um gesto para ela se afastar, e ela se distanciou sem reclamar.
Mirei o outro lado do terminal de vans, para onde saíam os veículos. Era uma avenida. Negociei passagem entre as buzinas, atravessei tudo. Da calçada à beira da via, enxerguei um lindo mural de visual soviético adornando um dos prédios antigos ao redor. Os edifícios pareciam ser sedes de escritórios do governo local. Nas fachadas, um estranhamento; vi grandes cartazes de propaganda. Estavam em uma língua estranhíssima, que não conhecia, nunca havia visto antes.
E lembrei, então. Nukus fica no Uzbequistão. E não fica. Isso não é uzbeque, é caracalpaque.
A primeira vez que ouvi falar dessa nacionalidade obscura foi também na minha primeira vinda ao Uzbequistão, em 2001. Naquela época, e até hoje, os caracalpaques respondiam por boa parte dos imigrantes pobres que iam tentar a vida em Tashkent. Fugiam da miséria causada pelo assassinato do Mar de Aral — inclusive o fim da indústria pesqueira. Certamente em 2001 as melhorias do governo que vejo criando hoje um pequeno paraíso em Nukus estavam longe de se tornar realidade. Caracalpaque era sinônimo em Tashkent de miserável, de pessoa sem perspectiva. Existia preconceito na capital contra eles. Como o que os nordestinos que imigram sofrem no sudeste e sul do Brasil.
Mas o preconceito ia, e vai, além do fato de que os caracalpaques vêm de uma região mais pobre. Há mais razões, baseadas em diferenças culturais.
Ainda os estudiosos não têm inteira certeza sobre a origem dos caracalpaques. Há uma crença de que a etnia tem sua origem em uma tribo túrquica conhecida por ser a origem de mercenários ativos na Rússia medieval, anterior à invasão dos mongóis (a chamada Rússia de Kiev). Eram então chamados pelos russos de "chapéus pretos". Essa é justamente a etimologia da palavra "caracalpaque" (em túrquico, kara é preto, kalpak, chapéu). Mas a teoria nunca foi provada. O mais possível é que os caracalpaques tenham sido um grupo que se separou dos cazaques em determinado momento do século XVII — sendo que os cazaques, da mesma forma, também teriam sido um dia parte de uma grande tribo que os unia com os uzbeques, dos quais teriam se separado no século XV e então seguido uma evolução paralela, criando sua própria cultura. Na sua suposta separação, os caracalpaques, assentados na região do Mar de Aral, levaram consigo a maior característica dos cazaques, o pastoralismo nômade, segundo o qual os cidadãos vivem nas estepes circulando com seus cavalos em busca das melhores pastagens e se fixando em algum lugar por mais tempo apenas para passar os rigores do inverno. Diferentemente dos uzbeques, que têm uma forte associação com o sedentarismo, os caracalpaques usam tradicionalmente a iurta, a barraca circular dos nômades da Ásia Central, tal qual os cazaques, os quirguizes e os turcomenos.
A língua, inevitavelmente levando em conta a provável origem dos caracalpaques, é outra diferença fundamental que eles têm em relação aos uzbeques, e, é claro, a mais chamativa ao visitante. Se parece tanto com o cazaque que há quem julgue que são a mesma língua, apenas escrita de forma diferente de cada lado da fronteira. Eu esperava, na prática, que ela não se fizesse sentir de forma clara em Nukus. Esperava que a língua local fosse reservada a alguns, deixada como uma peculiaridade semioculta em meio à dominância do uzbeque, essa sendo a língua nacional de um governo com forte orgulho nacionalista. Ou seja, eu previa que a língua caracalpaque nunca fosse visível em grandes cartazes em prédios. Que surpresa. Esses cartazes de propaganda que encontrei perto do mercado estavam apenas em caracalpaque, não eram sequer cartazes bilíngues, incluindo o uzbeque. Escrito com o alfabeto latino, o caracalpaque me lembrou visualmente o holandês (talvez pela presença constante da letra W, ausente no uzbeque).
Mais além da língua, eu julgava improvável que o Caracalpaquistão exercitasse de forma explícita e contundente qualquer coisa que pudesse enaltecer seu direito a uma hipotética independência. Contudo, não foi isso que vi. Alguns detalhes falam muito, reforçando a ideia de uma identidade distinta. Os homens caracalpaques, por exemplo, não costumam usar o chapéu típico uzbeque, o dope. Desde minha chegada, não vi absolutamente nenhum com ele nas ruas, no mercado, à beira do canal, no hotel onde fiz check-in. As iurtas são uma referência constante em Nukus. No hotel, construíram uma num pátio, o turista pode se hospedar nela se quiser. Há lembranças temáticas de iurtas em lojas de suvenires. Claramente os caracalpaques se orgulham da barraca e a usam para estressar sua diferença dos uzbeques. Também há a ausência das camas quadradas, colocadas em baixo de árvores ao ar livre, nas quais os uzbeques gostam tanto de se recostar para tomar chá, os tapchans. Em termos de religião, o Islã sempre teve uma penetração mais fraca entre os povos de origem nômade. Não vi madrassas por aqui e só encontrei até agora uma mesquita, algo impensável nos centros velhos de Samarkand, Khiva e Bukhara. Simplesmente não há no Caracalpaquistão tesouros arquitetônicos ancestrais como nessas joias da Rota da Seda a leste daqui, como também eles são raros no Cazaquistão, com exceção da região mais ao sul onde os cazaques disputam espaço com os uzbeques. Até mesmo no aspecto físico, uzbeques e caracalpaques parecem ter uma ligação mais distante que caracalpaques e cazaques, estes dois tendo olhos mais puxados, rosto mais redondo. Assim, estranhamente, me sinto muito mais próximo de Almaty do que de Tashkent em Nukus. Há até, segundo cartazes colados em paredes no mercado, um serviço de ônibus direto conectando Almaty e a capital caracalpaque. Imagino que seja um destino atraente para migrantes econômicos que falem melhor caracalpaque que uzbeque. Imagino que, se eu fosse caracalpaque e tivesse a escolha, sem problemas envolvendo vistos ou permissão oficial e se eu tivesse fluência na língua da república autônoma, certamente escolheria imigrar para Almaty em vez de Tashkent. Assim, evitaria o preconceito dos uzbeques. Aliás, os cazaques eram, até meados de 2010, aproximadamente um terço da população do Caracalpaquistão. Esses podem ser imigrantes cazaques que se fixaram no território, caracalpaques que têm passaporte cazaque e preferem se identificar assim ou mesmo caracalpaques que, questionados pelo censo, sequer identificaram qualquer diferença entre a sua própria identidade e a de seus irmãos ao norte da fronteira.
Quantas diferenças em relação aos uzbeques. Me pergunto se já houve alguma discussão séria sobre separatismo entre os caracalpaques.
De fato, sim e ela segue existindo. O debate se fundamenta no que ocorreu nos tempos da URSS. Um território para os caracalpaques surgiu na região pela primeira vez em 1925, inicialmente como uma região autônoma da República Soviética do Cazaquistão. Em 1932, passaria a ser uma república autônoma, ainda do Cazaquistão soviético, e, em 1936, passaria ser incluída no território da República Socialista Soviética do Uzbequistão. Durante os primeiros anos da URSS, outras duas repúblicas autônomas foram criadas por Moscou na Ásia Central, a dos tajiques e as dos quirguizes, mas ambas, alguns anos após criadas, seriam promovidas a repúblicas soviéticas, um grau acima. Que o Caracalpaquistão nunca tenha subido de status é algo um tanto misterioso, mas provavelmente reflete a significativa influência das elites políticas uzbeques ou a falta de influência das elites caracalpaques nos tempos da URSS. Após a queda do comunismo, todas as repúblicas soviéticas fizeram a transição para virar países independentes. O Caracalpaquistão, ainda como república autônoma, não. Tal figura jurídica, "república autônoma", existe, aliás, em outros países da ex-URSS. Na Rússia, por exemplo, há dezenas de repúblicas autônomas, cada qual com sua língua, governo, bandeira, estrutura burocrática. Mas, lá, essas repúblicas são parte integrante de uma federação, algo que não ocorre no Uzbequistão. Além disso, nenhuma república autônoma russa tem, isoladamente, a mesma importância geográfica dentro da Federação Russa que o Caracalpaquistão tem dentro do Uzbequistão. O território da república autônoma equivale a cerca de um terço do território uzbeque. Em caso de separação, o Uzbequistão ficaria seriamente desfigurado nos mapas.
Por via das dúvidas, é claro, o governo uzbeque investe em sua república autônoma, embeleza Nukus, e mostra sua tolerância com a identidade local.
Seguindo pela avenida ao lado do mercado, depois de tentar encontrar algum sentido nos Ws alienígenas nos cartazes nos velhos prédios, fui me afastando do bazar. E a verdade transpareceu clara. Se há prédios novos, se aqui e ali uma avenida parece recém-construída ou reconstruída, com sua calçada reluzente e lojas que parecem ter fachadas pré-fabricadas, nas quadras ocultas atrás dessas vias um retrato de miséria ainda existe. Encontrei velhos conjuntos habitacionais soviéticos, alguns em estado tão deplorável que pareciam cortiços. Esses conjuntos existem por toda a Ásia Central, mas nunca os vi no estado que estavam alguns que achei em Nukus. Imagino que, antes da sanha higienizante e modernizadora dos presidentes Karimov e Mirziyoyev, tudo por aqui fosse assim, caindo aos pedaços, triste, exatamente como eu esperava encontrar. Neste caso, sem ter conhecido a cidade antes, mas sabendo o quanto ela foi afetada pela tragédia do Aral, sabendo que ela nem tem tesouros arquitetônicos ou uma profundamente enraizada cultura urbana (visto que a tradição por aqui era ancestralmente o nomadismo), só consigo ver vantagens na febre de reconstrução imposta por Tashkent. Faz sentido. E espero que continue, respeitando as comunidades, permitindo que os moradores possam permanecer onde estão.
Dobrei uma esquina. Encontrei do outro lado da avenida, oposto a mim, o palácio do Parlamento local, moderno, lindo, perfeito, uns cem metros atrás de um portão que impede qualquer um de chegar perto. As duas bandeiras na cúpula do edifício baixo são do Uzbequistão e do Caracalpaquistão, esta quase idêntica à bandeira uzbeque, mas com a faixa central branca substituída por um amarelo alaranjado, cor que remete ao deserto. Observei à distância. Tive pouco interesse, a arquitetura do palácio não me chamou a atenção. Fui caminhando de volta para o hotel.
À direita do portão, vi dois turistas parados, olhando para a edificação. Dois homens, um alto, outro menor, vestindo roupas surradas e suadas. Pensei que algum policial ia chegar perto e dar uma bronca naqueles malucos por estarem perto demais do portão. Olhei melhor. Eles me pareceram familiares.
Shackleton e o moleque, vestidos da mesma forma que os encontrei pela última vez em Samarkand.
Esfreguei os olhos. Como assim? Inacreditável! O que estão fazendo aqui?
Gritei para chamar a atenção, eles não ouviram. Estavam, na verdade, longe: entre nós, havia uma avenida de várias faixas, movimentada, com ônibus, táxis, barulho. Para atravessar, só havia um ponto possível, também distante; eu teria que voltar umas duas quadras do meu lado da avenida até alcançar a faixa de pedestres. Mesmo assim, fui para lá, de olho nos meus dois amigos. Eles cobriam o rosto para proteger os olhos do sol e ver direito a fachada. Pouco depois seguiram caminhando bem devagar para o sentido oposto ao que eu seguia.
Me veio uma sensação de desespero, de repente. Uma vontade imensa de vê-los de perto, de conversar com eles. Um vácuo me puxava por dentro, ameaçando me engolir se eu não os abraçasse. Era um desespero, louco, agudo.
Gritei. Meus amigos! Aqui! Aqui! Olhem para cá!
Parei de gritar. Fechei os olhos uns segundos, ainda caminhando para a travessia de pedestres.
Abri os olhos. Olhei de novo. Eles não estavam mais lá. No lugar deles, estava lá, do nada, perfeitamente nítida, ML.
Ela estava com o mesmo vestido florido de ontem.
Que diabos estava acontecendo?
Gritei de novo. Nada, ela não me ouvia. Como antes estavam Shackleton e o moleque, estava imersa demais na arquitetura do palácio para perceber algo além disso.
Senti como se ML ou os meus dois companheiros das montanhas fossem uma boia no oceano e eu estivesse me afogando.
Corri com o máximo de velocidade. Finalmente cheguei à faixa de pedestres. Maldita dificuldade proposital para atravessar, pensei, com muita raiva, a faixa ficava longe demais, as autoridades simplesmente não querem que as pessoas se aproximem muito do Parlamento.
Olhei para os dois lados da via, não esperei o sinal verde para os pedestres. Atravessei as faixas negociando com os carros em alta velocidade.
Cheguei ao outro lado, enfim. Mas ML tinha desaparecido. Shackleton e o moleque não tinham voltado.
Não me passou pela cabeça nenhuma explicação racional, apenas que o que ocorrera não poderia ter ocorrido. A visão dos três foi extremamente real, tão real quanto a visão do prédio do governo caracalpaque do outro lado do portão agora à minha frente.
Olhei para o portão fixamente. Para o palácio.
Nada.
Meus amigos evaporaram.
O vácuo me engoliu.
Atravessei a rua de volta. Apesar de não fazer tanto calor, pois já estava anoitecendo, senti uma gosta de suor escorrendo em minha testa, entre as sobrancelhas.
Desapareceram.
Eu queria perguntar aos meus amigos das montanhas porque decidiram estender suas viagens para tão longe do Tajiquistão. Queria perguntar a ML de sua viagem de Khiva até aqui, ouvir novamente seus planos de total liberdade e fascinante imprudência, contar a ela da linda promenade em que passeei à beira do canal hoje, mais cedo.
Tudo ao redor parecia, de repente, repelir minha existência. Por que eu estou tão longe do mundo? Por que o mundo está tão longe de mim?
Entrei no quarto do hotel. Me joguei na cama e comecei a chorar.
Nukus, 23h20, 20/8
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"Solidão, palavra cravada no coração resignado e mudo, no compassso da desilusão". A diferença entre o turista e o viajante é que este se permite encontrar no compasso da Solidão.
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