O que é "Novas Fronteiras"?
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4/8/2018
Percebi que estava mesmo de volta à Ásia Central apenas quando estava atravessando as montanhas entre Tashkent, capital do Uzbequistão, e o Vale de Fergana, no leste do país. Sol, calor, mas um vento que às vezes vinha forte e interrompia a sudorese, dava um arrepio ao entrar pela janela do táxi, compartilhado, a caminho do vale. Éramos o motorista e eu na frente, uma mãe com um filho adolescente e uma menininha de uns dez anos nos bancos detrás.
Após umas duas horas de estrada, o motorista parou para que outros passageiros pudessem fazer compras em um mercado à beira da estrada.
O mercado: um caleidoscópio de cores, formas e cheiros. Reunidas em um longo balcão em estreito corredor, dezenas de vendedoras de pão non exibiam seus discos deliciosos. Os típicos pães uzbeques, tão importantes para o povo daqui como o ar que respiram. Com uns 20-30 centímetros de diâmetro e a borda mais alta do que o centro, perfeitos para acompanhar um churrasquinho. Cada um com seu desenho diferente, marcas no centro e na crosta que identificam o padeiro. Alguns, assados com gergelim na face de cima. Outros, com sementes de papoula. Outros até com a massa misturada com carne. No nariz, o cheiro de gostosura, subindo dos pães recém-saídos dos fornos de barro. Nos olhos, as sedas. Os vestidos das vendedoras, todos, com o colorido ancestral que tem sua melhor expressão justamente no vale para onde eu estava viajando.
Enquanto minha mente zanzava como um inseto nesse mundo sensorial, fui surpreendido pela passageira do táxi e seus filhos, meus companheiros na viagem até a cidade de Margilan. Assim que o táxi parou, eles haviam saído do veículo e desaparecido. Reapareceram carregados — a mãe havia comprado uma pilha de nons e dois sacos de frutas. Sorriu para mim. Havia lhe dito no caminho desde Tashkent que eu era um viajante e amava seu país. Agora, ela me oferecia um pão e um dos sacos que levava, cheios de maçãs, pequenininhas, bem doces e azedas. Fiquei fascinado com o carinho, a bondade, o amor da desconhecida, com quem eu apenas tinha tido contato superficial.
Pensei: bem-vindo de volta. Foram-se seis anos longe e é como se fosse ontem que eu estive no Uzbequistão na última vez. Na verdade, é como se nunca tivesse partido.
Cheguei para conhecer novas fronteiras e, ao cruzá-las, novos tesouros. Mas comecei pelos antigos.
Desembarquei no aeroporto de Tashkent pela primeira vez em um horário decente, que não exigiu esforço para vencer o sono. É minha quarta visita à capital uzbeque, sendo que em apenas uma delas eu cheguei por terra. Nas duas vezes que havia vindo de avião havia chegado no meio da noite, lá pelas três da manhã. Agora, cheguei às 8h30 e encontrei imediatamente mudanças que facilitam a vida do visitante. A morte do ditador Islam Karimov, em 2016, foi um empurrão positivo em muitos sentidos. A burocracia de outrora ao desembarcar, com a exigência de preencher um formulário com cada centavo de cada moeda estrangeira na carteira, foi deixada no passado, com exceção apenas dos visitantes que trazem mais de US$ 2 mil. Um novo terminal internacional ficou pronto no aeroporto, limpo e amplo, com muitos guardas esperando para dar o carimbo de entrada no passaporte dos turistas. Sem confusão. Que contraste com as tensas chegadas em 2001 ou 2003. No entanto, talvez a mudança mais radical foi a autorizada pelo atual presidente uzbeque, Shavkat Mirziyoyev, em 2017: houve uma grande reforma cambial, com uma desvalorização significativa do moeda local, o sum, na cotação oficial. Até minha última visita, em 2012, um lucrativo mercado negro oferecia uma fortuna em sums aos que chegassem ao país com um punhado de dólares, muito mais do que oferecia o câmbio oficial. Os turistas, eu inclusive, evitavam trocar dinheiro nos locais de câmbio oficiais, iam para as sombras. Agora, a taxa oficial é a mesma que seria paga no mercado negro, e os vendedores secretos de sums perderam o sentido. Em vez de ir a um mercado de rua trocar tudo com sussurros, com medo de ser flagrado pela polícia, desta vez pude trocar o dinheiro no aeroporto.
O que sim não mudou foi a postura dos taxistas que ficam à espreita, esperando os turistas na saída do terminal de desembarque e buscam lucrar com a ignorância dos mesmos em relação às tarifas da cidade. Desta vez, me preparei muito bem para enfrentá-los. Nas duas vezes anteriores combinei com os hotéis onde me hospedei que enviassem um motorista para me buscar. Desta vez, não, já que, por causa do horário de chegada, teria plena possibilidade de negociar com um taxista sem enfrentar sono e cansaço. Minhas conversas com amigos uzbeques indicavam que o preço justo para me levar ao meu destino, do aeroporto ao centro de Tashkent, seria entre 5 mil e 10 mil sums. Um taxista me abordou na saída do terminal, perguntei quanto queria pela corrida. Ele disse três mil. Barato. Perguntei "três? Três mesmo"? Ele confirmou. Pensei: se meu russo for pior do que penso, ele pode ter dito 13. A jornada foi curta (15 minutos) e, ao chegarmos, ofereci os 3 mil ao motorista. Ele disse que, na verdade, tinha pedido 30 mil. 30 mil! Reagi como deveria reagir, como se a sugestão do taxista fosse um insulto. Mesmo que a vida dos taxistas seja muito difícil, e seja fácil entender por que tentam explorar os turistas, não poderia aceitar jamais tamanha manifestação de desonestidade. Dada minha reação, o próprio taxista não brigou. Talvez tenha ficado envergonhado e aceitou sem relutância os 5 mil que por fim lhe ofereci.
Como pedi, ele me deixou em uma praça perto da estação de metrô Kosmonavtlar (Cosmonautas) onde ficava o escritório de uma agência de turismo que contratei e que agora teria que encontrar para fazer um pagamento. A empresa organizou uma excursão privada para que eu pudesse visitar, pela primeira vez, o Turcomenistão, o único dos cinco países centro-asiáticos da ex-URSS que não conheço. Trata-se de uma visita muito esperada, muito sonhada por mim, há décadas, e que viria finalmente dentro de algumas semanas.
O trâmite com a empresa foi no "estilo KGB", envolto em mistério, com uma aura de ilegalidade. O dinheiro para pagar a excursão, uma pilha de dólares, se foi na mão do meu contato, um russo que me passara as pistas para localizar seu escritório, que só encontrei após, evidentemente, me perder no verde da praça. A agência ocupava umas salinhas escondidas em um velho bloco habitacional soviético entre as árvores. O escritório era pequeno e sombrio, realmente me senti comprando algo proibido, mas o russo — um senhor forte e alto, mas excessivamente enrugado, provavelmente muito menos velho do que aparentava — foi cortês e amigável, me passou confiança. Após receber o pagamento, confirmou que estava tudo certo, me deu um recibo e uma passagem de trem que eu também havia encomendado à agência, de Tashkent para Termez. Para lá eu me dirigiria depois de revisitar ainda hoje Margilan, cidade no Vale de Fergana onde estive uma única vez em 2003.
Minha terceira viagem de Tashkent ao vale. Tomei muito cuidado ao negociar o preço da viagem com o taxista, que encontrei no lugar habitual de onde saem os taxistas para a região, um mercado ao ar livre na periferia da capital uzbeque. Na negociação, desta vez deixei muito claro e repeti ao taxista quanto eu estava disposto a pagar, cuidadosamente pechinchando em russo, uma tarefa inglória, mas recompensadora. Depois, na jornada em si, novamente muito cuidado para não enjoar nas curvas, subidas e descidas tortuosas do caminho.
Contudo, nada que eu fizesse poderia me salvar.
No caminho, antes da parada em que ganhei as maçãs e o non da companheira de viagem, o taxista parou em um posto de gasolina. Eu estava apertado, e me apontaram onde ficava a casinha de alívio, em um terreno vizinho. Indicaram o caminho para chegar lá, com uma escada curta para descer. A escada me trouxe para uma área de videiras carregadas, através da qual seguia o caminho para o banheiro, a uns 20 metros. Passando por baixo das uvas maduras, senti uma vespa amarela dando um rasante no meu rosto. Usei a mão direita para espantá-la, numa reação instintiva, sem pensar. O bicho agarrou com força o dedo indicador da mesma mão e me castigou. Uma dor lascinante. Nunca antes eu havia sido picado por uma vespa.
Me aliviei, rezei ao passar pelas parreiras na volta para não ser atacado de novo e entrei no carro. Meu dedo estava com o dobro do seu tamanho normal. Me esforcei para fingir que estava tudo bem, não queria incomodar a mulher e seus dois filhos ou o motorista, que, certamente, iriam tentar me oferecer algum remédio. Era apenas uma picada, mas, Deus do céu, que agonia.
Paramos em seguida no mercado à beira da estrada. Retomamos a viagem, eu, mordiscando uma das maçãs que a gentil senhora me deu.
O vale nos recebeu solar, verde e vivo como sempre. Uma hora depois, em Margilan, fui deixado na porta da fábrica e loja Yodgorlik (suvenir, em uzbeque), a mesma que visitei em 2003.
Margilan era, e é, o principal centro de produção de seda do Uzbequistão, país que por sua vez representa o tradicional coração da ancestral Rota da Seda. Aqui, a seda mais tradicional é chamada khan-atlas; possui faixas ou losangos com cores contrastantes, berrantes, tingidas com uma variedade de pigmentos para criar todo o arco-íris. Obviamente, hoje em dia a concorrência chinesa só permite que empresários com um modelo de negócios diferenciado sobrevivam. Yodgorlik mantém sua produção artesanal, usando métodos tradicionais para a produção do tecido que por aqui é sempre deslumbrante (releia aqui o relato de minha visita à fábrica em 2003). Precisava voltar à fábrica, após ter ficado impressionado com o que vi daquela vez.
Ao chegar, ela estava fechada, e por pouco fico sem visitar também a loja anexa onde centenas de artigos lá produzidos aguardam os visitantes, todos com preços salgados para os padrões locais, em dólares, mas de excelente qualidade. Minha memória me traiu, ou a fábrica, e a própria Margilan, mudaram muito. A entrada da Yodgorlik, o seu pátio interno, a loja... eu já havia esquecido de tudo. Era como se nunca estivesse estado por lá. Logo percebi, por exemplo, que a loja ocupava o lugar de uma antiga mesquita, incluindo um lindo teto de madeira colorida. Passei um bom tempo olhando as sedas e conversando com o vendedor, que, falando inglês fluente, achou graça de minhas tentativas de falar com ele em russo. Demos boas risadas falando sobre as dificuldades do russo. Gastei uma fortuna, mais de US$ 100, o que no Uzbequistão representa quase um mês no salário médio das pessoas. Foi uma compra por impulso. Fui enfeitiçado pela boa impressão de 2003 e senti um desejo irrefreável de repetir as compras de então. Mas, ainda na loja, mas já com as sedas na mochila, tive certeza de que no mercado de Margilan que eu visitaria no dia seguinte o preço estaria bem mais em conta. Depois, já caminhando à beira de uma agitada avenida (que, novamente, nem lembrava que existia, se é que existia em 2003) em busca de um lugar para passar a noite, o arrependimento foi ao pouco evaporando. O sol me fez ver mais claramente. Caro? Sim. Vale a pena? Sim! Ajudar uma empresa local, que mantém viva técnicas antigas, e produz um tecido tão, tão bonito, isso vale mais a pena do que uns trocados a mais. Disso me convenci.
Andei por meia hora até chegar a um hotel. Ao entrar, percebi como eu estava cansado. Exausto. Desde o desembarque de manhã, até agora, nada de parar. Entrei no quarto, joguei a mochila para o alto, me atirei na cama. Senti minha camiseta encharcada de suor nas costas, mas não tinha forças para tirar. Desmaiei. Acordei duas horas depois só para tomar um banho e voltar para a cama, com o dedo latejando com os efeitos do beijo da maldita vespa.
Que amanhã os insetos não sejam tão inclementes.
Margilan, 23h10, 4/8
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Novas Fronteiras é um diário de uma viagem feita em 2018 a três países da antiga URSS na Ásia Central — Uzbequistão, Tajiquistão e Turcomenistão. Novos capítulos são publicados neste blog duas vezes por semana, às quintas-feiras e domingos, e seguem ordem cronológica. Novas Fronteiras é parte de um projeto maior que inclui outros diários de viagem pela Ásia Central publicados neste blog pelo autor, que tem viajado regularmente à região desde 2001. O objetivo do projeto é apresentar um panorama detalhado e em profundidade das sociedades dos países da antiga URSS na Ásia Central, em um processo de busca e exploração em que o autor executa uma viagem simultânea, de autodescoberta e entendimento do universo centro-asiático como espelho de sua própria existência.
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