O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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Este texto faz referência ao capítulo VIII do diário de minha viagem a Almaty (2013); relembre aqui
9/10/2012
Não longe do bochicho do centro da cidadezinha de Kochkor - o bochicho causado, basicamente, pelo mercado e por um ponto de táxi de onde sai todo o transporte para outras cidades -, uma pequena mesquita jaz sozinha, afastada, à beira de uma avenida que leva às montanhas.
Não é de séculos atrás. Pelo contrário, parece bem moderna. O prédio observa e é observado pelos lindos picos distantes, já com um pouco de neve nos cumes, anunciando o inverno que se aproxima. O Sol está morno. É fim da tarde. Poucas nuvens no céu. Tudo está muito bem, tudo está tranquilo, em paz.
O Sol dourado e o azul celeste profundo proporcionam à mesquita a moldura perfeita para fotos e fotos. De repente, surpreendendo a mim e a Iker, dois jovens com chapéus brancos islâmicos, aqueles que só cobrem o alto da cabeça, saem do salão de orações (que acreditávamos até então que estava vazio e trancado). Saem, nos cumprimentam com alegria, percebendo que estamos apreciando o templo, e se vão. Para eles, este é um lugar do cotidiano, não é nada de mais. Deve ser um espanto para eles que estrangeiros venham para cá tirar fotos. Deve ser uma honra.
Mas este lugar não é apenas uma feição do cotidiano desses jovens. Nem apenas um cenário para fotógrafos amadores. A mesquita tem uma história trágica para contar. Ela é mais um indício do legado soviético, do legado de Stálin. Um sinal de mais uma ferida que vai sendo, até hoje, sarada com o tempo. Deixando cicatrizes para sempre.
Sento-me para descansar do lado de fora da edificação. Um outro jovem aparece vindo de dentro, este, com uma longa barba e sem bigode. Nos saúda com o tradicional aperto de mão centro-asiático, segurando a nossa mão direita com suas duas mãos e curvando levemente a cabeça para o chão. Em seguida, pergunta (em russo) se sabíamos inglês. E na sequência, sem sequer esperar pela resposta, pergunta se falamos turco. Respondemos que sabíamos inglês. O jovem, coitado, parecia que queria muito nos falar algo, mas claramente não tinha conhecimento bom da língua. Ficou gaguejando, tentando dizer algo. Imagino que também não soubesse muito russo, porque nem tentou ir além das perguntas iniciais. Acabou se despedindo, com um olhar triste, e foi embora.
"Acho que ele queria nos mostrar a mesquita, falar sobre o que ela significa para ele", disse Iker. Concordei.
Imagino que o jovem fosse um descendente de turcos mesquetianos, um grupo étnico que, como muitos outros, entre eles chechenos e alemães, sofreu imensamente com as políticas de realocação de populações de Stálin nos anos 40. Algumas dessas populações, como os chechenos, enviados em grandes números para o Cazaquistão, acabaram voltando anos depois. Isso ocorreu quando, após a morte de Stálin, Krushchov tentou corrigir alguns dos crimes atrozes de seu antecessor.
Todavia, muitos grupos jamais voltariam a suas terras ancestrais. Foi o caso dos mesquetianos. Embora quisessem, nunca foram autorizados pelo governo soviético a retornar a seu lar, uma região da Geórgia na fronteira com a Turquia, da qual foram arrancados por Stálin. Eles foram amaldiçoados pelo temor de que pudessem ter mais afinidade com os turcos do outro lado da fronteira do que com Moscou. Literalmente pagaram pela animosidade entre Turquia e Rússia, pela paranoia do líder soviético.
A deportação ocorreu em 1944. Embora existam poucos registros conhecidos, acredita-se que os cerca de 120 mil turcos mesquetianos foram todos colocados em trens e despachados para a Ásia Central. Milhares morreram na jornada, e a maioria dos que sobreviveram foi parar no Uzbequistão.
Durante muitos anos, os soviéticos mantinham qualquer esboço de tensão étnica na URSS sob controle, à base de repressão e também mecanismos políticos. As autoridades moscovitas eram ao mesmo tempo árbitros, policiais e carcereiros, responsáveis por manter a unidade e a paz do imenso país. Todavia, na reta final da grande aventura bolchevique, toda a estrutura começou a desmoronar. A distensão política motivada pela Perestroika e pela Glasnost de Mikhail Gorbachov logo se traduziu em um incentivo para que grupos políticos nacionalistas expressassem mais abertamente suas opiniões. Daí para surgirem violentos conflitos foi um pulo. Foi assim em 1990 entre quirguizes e uzbeques na região de Osh. E um ano antes no Vale de Fergana uzbeque. Em junho de 1989, nas áreas de Kokand e da cidade de Fergana, os uzbeques explodiram após anos de ressentimento em relação a seus estranhos vizinhos mesquetianos. Sentiam-se injustiçados ao ver as propriedades dos "estrangeiros", seus pequenos negócios, enfim, sua aparente prosperidade em terras que, na visão dos nacionalistas, não lhes pertenciam.
De acordo com um relato oficial, mais de cem pessoas morreram e mil ficaram feridas, embora se acredite que tenham sido muito mais. A violência foi tão extrema que as autoridades soviéticas não tiveram outra opção a não ser realocar, novamente, toda a população de turcos mesquetianos que se encontrava na região do conflito. Lá foram eles de novo ser reassentados em outros pontos da União Soviética.
A mesquita em Kochkor é uma das que foram construídas pelos mesquetianos. Neste momento, quando a geração desenraizada que viu os horrores de Stálin está morta ou prestes a desaparecer, seus descendentes mantém a lembrança. Para esses descendentes, já não faz mais sentido acalentar o sonho de voltar às terras de origem de seus ancestrais. Talvez fosse isso que o jovem queria nos falar: do sofrimento contido em cada tijolo desta construção; da tristeza eterna, mas hoje resignada, do exílio; e também da esperança de vida tranquila, deixando para trás o sangue do passado. Talvez quisesse falar também da dor que é ver o crescimento de partidos nacionalistas nesta região do mundo, em que a nação, em termos de identidade, está diluída pela construção ainda presente do Homo sovieticus. Onde um turco mesquetiano pode ser tão quirguiz quanto um quirguiz que nunca, há gerações, deixou Kochkor.
Ao deixar a mesquita, reflito, mais uma vez, sobre a riqueza de povos na antiga União Soviética e a fraternidade desconfortável mantida sob controle pelos comunistas em Moscou. Fraternidade desconfortável, sob controle. Paz à força. Evidentemente, as divisões eram exploradas como estratégia de dominação política pelos soviéticos. Os grupos étnicos competiam por recursos, e Moscou os distribuía de acordo com os seus interesses, mantendo populações que viviam num mesmo lugar sempre na palma de sua mão. Dividindo, mantendo a tensão, para controlar.
A dependência dessa mediação do Kremlin gerou conflitos ainda mais horríveis do que os entre turcos mesquetianos e uzbeques quando a URSS caiu. Os piores, na verdade, não foram entre povos transplantados por Stálin e as populações nativas, mas sim entre povos irmãos que há séculos dividiam a mesma terra. A guerra civil no Tajiquistão (1992-1997), por exemplo. Neste caso, floresceram as dores do regionalismo: as elites de Khojand enfrentando elites de Kulob, com a complicação provocada pela extrema pobreza e pela existência de ativistas islâmicos.
Nas montanhas do Cáucaso, entre Armênia e Azerbaijão surgiu a notória disputa pelo território de Nagorno-Karabakh. Foram seis anos de guerra (1988-1994), seguida por um tenso armistício em que periodicamente há troca de tiros e ameaça de retorno ao conflito total. Hoje, o Nagorno-Karabakh está sob controle de uma "república independente" cuja língua é o armênio e onde se usa a mesma moeda da Armênia, mas cujo território é reconhecido pela maioria esmagadora do mundo como parte do Azerbaijão. Na vizinha Geórgia, houve guerras nas regiões da Abecásia e Ossétia do Sul. Novamente, se enfrentaram nacionalistas georgianos e dos dois territórios. Fora do Cáucaso, na Moldávia, houve o conflito da Transnístria, uma região estreita na fronteira com a Ucrânia. Todos esses territórios, Abecásia, Ossétia do Sul e Transnístria, seguiram os passos de Nagorno-Karabakh e são hoje "repúblicas independentes" não reconhecidas por praticamente nenhum país e onde às vezes a tensão volta a aflorar. Nesses "conflitos adormecidos", a Rússia de Vladimir Putin encontrou um caminho para manter sua influência. Analistas acreditam que Moscou de fato mantém a tensão nessas regiões para que possa, assim, continuar com uma maneira de direcionar os governos dos países envolvidos de acordo com seus próprios interesses. Para que possa manter, de uma maneira enfraquecida, os mecanismos que arbitragem dos tempos soviéticos.
Em outros lugares, a divisão existiu e existe, mas não aparece nas manchetes dos jornais porque nunca houve guerras e seus efeitos são mais sutis. Quantas línguas se falam nas casas de Kochkor? Quantas identidades coloridas, maravilhosas, guardam estes telhados? O quirguiz que vive até hoje seminômade com suas iurtas. O russo que chegou no século XVIII com sua vodka. O turco trazido à força por Stálin. Chineses, cazaques, uzbeques, uigures (etnia que habita principalmente o oeste da China). E quanto dessa beleza corre o risco de morrer no futuro se o Quirguistão for tomado por um governo que favorece apenas um grupo étnico, uma língua, uma identidade?
Boa sorte aos turcos mesquetianos e seus descendentes, boa sorte a todos os órfãos da URSS, no limbo dentro das fronteiras do finado grande país.
* * *
Eu e Iker chegamos à pequena Kochkor após uma torturante jornada de três horas em um táxi com seis pessoas, no qual o motorista nos jogou nos bancos de trás e ficamos tão apertados que eu não conseguia mexer meus pés. Não havia espaço físico sequer para dar uma chacoalhada e evitar que eles adormecessem. Aliás, foram três horas em que minhas pernas ficaram se alternando entre adormecidas e doendo (doíam quando algum passageiro vizinho, Iker ou o outro, as apertava ainda mais em uma curva, por exemplo).
Pegamos boa parte do caminho que eu havia feito para ir de Bishkek para o Issyk-Kul. A obra que eu tinha visto em agosto na estrada do Desfiladeiro do Cadarço estava completa. O asfalto agora estava tão perfeito e liso que parecia uma pista de patinação. Pelo menos, nesse desconforto todo, não tivemos buracos no caminho. Ao final do desfiladeiro, em vez de seguir reto em direção a Cholpon-Ata, pegamos uma saída à direita.
Novamente, a agência local de Turismo Comunitário foi muito eficiente. Nos encaminhou a uma casa de uma família de origem uigur. Por módicos 500 som (aproximadamente US$ 7), ganhamos um quarto confortável e o direito de usar um chuveiro de água quente. Jantamos o que nos ofereceram e foi ótimo - um maravilhoso oromo, talvez melhor do que o que comemos em Osh ao chegar do Pamir. Para acompanhar, salada de repolho com pimenta do reino. Para sobremesa, geleias diversas e pão. Nota dez, idem para o chuveiro. Não tinha tanta mordomia desde o luxuoso hotel de Tashkent.
Na cidade, passeamos sem destino pelas ruas empoeiradas até encontrar o museu regional, uma casinha esquecida em um canto, com o ar triste de quem já viu dias melhores. A tristeza aumentou em mim ao ver o seu interior, em péssimo estado de conservação. Pela primeira vez na minha vida tive medo de entrar nas salas de um museu. O motivo: em várias delas, o chão de madeira havia cedido, criando buracos profundos que pareciam estar aumentando a cada dia. Mas, se me deu medo, seu acervo era ao menos mais interessante do que o do lamentável museu perto de Otyrar, no Cazaquistão, até então o pior da viagem. Neste, achamos lindos pôsteres de propaganda soviética, uma iurta completa e uma incrível peça de tapeçaria contendo cada um dos brasões das antigas repúblicas soviéticas. Uma obra maravilhosa de união do universo soviético com o artesanato quirguiz, que criou uma linda pintura feita com tecelagem. Aliás, esse sincretismo está em tudo no museu, apresentando um pouco do que aconteceu quando a fascinante cultura de séculos dos quirguizes se juntou com o que foi trazido pelo comunismo.
Do lado de fora, vejo um amontoado de pedrinhas, daquelas usadas em construção. Talvez eles estejam começando a reformar o museu. Torço para que estejam mesmo.
* * *
Ando profundamente irritado, sem paciência, preguiçoso para tudo. Triste admitir, mas, dada a oportunidade, provavelmente ficaria o dia inteiro trancado em casa assistindo filmes na TV.
Evidentemente isso tem a ver com o fato de minha jornada já durar sete semanas - sete semanas de rotina nômade, arrumando e desarrumando a mochila. Engraçado como algo que parece um sonho também pode cansar logo. Fico me perguntando sobre os mochileiros que ficam um ano na estrada, ou que ficam ainda mais. Deve haver um limiar, uma fronteira que se cruza, depois da qual a viagem passa a ser uma segunda natureza, toda a rotina de movimento e transporte em panoramas desconhecidos passa a ser simplesmente o cotidiano, e então esse cotidiano passa a ser confortável. Um conforto que surge da aceitação do inevitável - sim, viajo, e viajar é o natural a fazer, tão natural quanto respirar ou piscar os olhos, tão natural que não se pensa nisso, é algo que apenas acontece.
Temo, porém, que esse conforto venha juntamente com o tédio. Ou com a indiferença (que vacina você contra a irritação, algo tão natural). Ou com a incapacidade de se emocionar ao ver locais novos, incomuns, curiosos, belíssimos. Assim, que bom que ainda não cruzei meu limiar. E hoje enfrentei as consequências disso. Tive um episódio de descontrole emocional que me envergonhou muito, revelando a dificuldade que tenho de lidar com o imprevisto, o imprevisto que é tudo que se encontra em longas jornadas.
Decidimos, eu e Iker, visitar um mercado no centro de Kochkor para comprar alimentos para um passeio que faremos amanhã. Ao entrar, relaxado, peguei pão, manteiga, chocolates e um litro de água mineral. Quando me dirigi ao caixa, a mulher me recebeu com o rosto fechado, me metralhando com palavras em russo que eu nem entendi. Simplesmente ignorei: imaginei que não fosse nada importante e, afinal, o que eu queria fazer era algo simples, à prova de erros, eu só queria mostrar as mercadorias, pagar e sair. Fiz isso. Quando saí do mercado, veio uma outra funcionária atrás de mim, esbaforida, reclamando que eu não havia pago. "Como não?! Eu paguei!", respondi, ríspido e mal-educado.
Era uma loja como a que eu havia encontrado em Almaty em abril, e eu não sabia, ou não imaginava, que outras lojas como a da cidade cazaque existissem. Embora todas as mercadorias estivessem sobre o mesmo teto, elas pertenciam a vendedores diferentes, que simplesmente compartilhavam o mesmo espaço. Assim, algumas mercadorias são de um, outras são de outro, e você tem que pagar algumas em um caixa, onde está um dos vendedores, ou no outro. Lembrei-me de repente de como a mesma situação me irritou em Almaty, quando assumi que se tratava de pura desorganização. De fato, difícil entender - como assim? É um mercado só! Como pode ser dividido em dois, três? Depois, me contaram que há ainda muitas lojas assim. Outro legado soviético.
Neste caso, quando paguei, paguei apenas as mercadorias relativas ao caixa ao qual me apresentei. Paguei as mercadorias que faltavam para a outra mulher, a que me perseguiu fora da loja. Saí bufando pelo transtorno. Eu já entendia bem o que havia ocorrido. Erro meu, duas vezes, em Almaty e agora, em Kochkor.
Na volta do mercado, já tinha se posto o Sol, mais uma noite fria e clara tinha chegado. Jantar, chuveiro, pijama. Só no fim da noite finalmente minha irritação baixou.
Na cama, no escuro, sinto muito cansaço, mas não consigo dormir. Ouço ao longe cachorros que não param de latir. E, na sala ao lado, o dono da casa assiste TV com o volume alto demais. Meu russo milagrosamente funciona bem e, na penumbra, ouço o telejornal e fico sabendo de coisas estranhas ocorrendo longe, muito longe, muito além dos cachorros. No resto do mundo, não na escuridão em Kochkor, onde tudo, pelas próximas horas, graças a Deus, vai permanecer parado.
Kochkor, 9/10, 21h14
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