Sunday, 28 January 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXVI): Istaravshan

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20/9/2012

Estou pior. Levanto com a garganta doendo, zonzo, sentindo o que não é mais um "talvez resfriado", mas um "com certeza é gripe". Felizmente, o dia deve ser leve. Pelo menos é o que espero.

No mercado de Khojand, chamado de Panjshambe, ou "quinta-feira", me despeço da cidade. As vendedoras de tomate - imensas, intimidadoras, com braços fortes, grossas sobrancelhas - tentam se esquivar dos cliques da minha câmera sob o arco coloridos de um pórtico, em uma das saídas do mercado. São mulheres castigadas pelo trabalho pesado, mas que viram meninas na brincadeira de esconde-esconde com o fotógrafo estrangeiro. Insisto, e em determinado momento elas cedem, fingem que não enxergam que as estou clicando. No teto, os detalhes decorativos do teto que cobre milhares e milhares de pessoas passando com sacolas pesadas todos os dias. Pessoas que talvez nunca tenham percebido nem percebam os detalhes. Eles ficam documentados no meu celular. Lindas cores, lindas pessoas, doces cheiros de frutas, de flores.

Khojand fica para trás. Sigo viagem novamente a bordo de um táxi compartilhado com desconhecidos, um carro pequeno, velho, mas valente. Istaravshan vem a seguir em cerca de uma hora de estrada. Mais perto de Dushanbe, mas a ainda oito horas da capital tajique.

Istaravshan. Mais uma cidade evocativa dos sonhos deste mundo oculto chamado Ásia Central. Um nome que ecoa e repete na minha cabeça. Outra parada da minha rota da seda pessoal, uma rota da seda que bebe na fonte do caminho imortalizado por Marco Polo, mas que é recriada pela minha própria fantasia. Na minha cabeça, lá estão cidades lendárias, com nomes exóticos, que um dia li em algum livro que nem sei mais quais foi e desde então me desafiei a conhecer. Samarkand, Bukhara, Isfahan, Merv, Tashkurgan... Istaravshan. Uma a menos nessa longa jornada que sabe-se lá quando vou terminar. Uma pena chegar aqui neste estado - tosse, dor de cabeça, rouquidão e o cansaço agravado pela noite aterrorizante.

Em Istaravshan, sem o apoio de nenhum mapa no meu guia (como em Isfara), logo desisto de encontrar a primeira acomodação recomendada pelo livro - impossível achá-la, ninguém aqui parece ter ouvido falar dela, ou simplesmente não entendem meu russo. Fiquei aliviado, na verdade, porque não achar essa acomodação mais barata me fez aceitar sem titubear a acomodação que meu guia dizia ser a "melhor" da cidade. Já imaginava que fosse cara e fresca.

Me enganei bastante. Por apenas 50 somanis (cerca de US$ 6), me deram um quarto com duas camas velhas, paredes com tinta descascando e caindo no chão, carpete gasto e sujo e uma TV coberta de pó (mas funcionando bem). O lado positivo era o colchão, bem confortável (em apenas uma das camas, na outra, estava deformado). Pedi um lençol extra e claramente toda a roupa de cama estava bem limpa. Pontos muito positivos e muito negativos. Bom, é "o melhor" hotel da cidade.

Fiz o check-in no meio da tarde e, depois de me livrar da mochila, saí para explorar o que conseguisse da cidade. A gripe estava afetando demais minha energia - lutava a cada metro para andar, com o Sol da tarde no rosto me incomodando demais. Entretanto, o pior mesmo foram os efeitos da doença sobre meu senso de direção. Demorei demais para me encontrar em Istaravshan e descobrir onde ficavam os pontos turísticos. Andei em uma direção errada por muito tempo até ter ânimo de perguntar a um local para onde eu estava indo e descobrir que eu deveria ir na direção oposta. Quase uma hora de vaivém até achar uma colina. Com um castelo ou forte no alto. A mais ou menos um quilômetro à frente. Finalmente, a referência para eu não me perder mais.

Tratava-se do monte chamado Mug Tepe. Pelo que dizem os historiadores, meus passos novamente seguiam, como em Khojand, os de Alexandre, o Grande. Aqui, em 329 a.C., o macedônico teria vencido a resistência de um forte do povo nativo, os sogdianos, em mais uma etapa da sua conquista da região. Foi um episódio conhecido nas narrativas como Cerco de Ciropol - e é um bom exemplo da genialidade militar de Alexandre.

Como Khojand, Istaravshan foi conhecida durante os séculos por diversos nomes. Os russos a chamavam de Ura-Tube, os uzbeques, Uroteppa, enquanto que Istaravshan é o nome de origem persa. O nome grego, porém, é Ciropol, cidade de Ciro (598-530 a.C.), o imperador do império persa aquemênida que teria fundado a cidade. Há controvérsias, porém, sobre se de fato Istaravshan foi a lendária cidade fundada por Ciro. Alguns cientistas acreditam que Ciropol ficava na verdade onde hoje é Khojand e que Alexandre refundou a cidade, chamando-a de Alexandria Eschate. O que é fato é que a região de Istaravshan é uma das há mais tempo habitadas na região. Por perto, há muitos vestígios dos sogdianos, uma civilização antiquíssima, que persas e gregos tiveram dificuldade em manter sob sua batuta. Isso tudo séculos antes de Tamerlão, Genghis Khan, Ismail Somoni, Maomé e Cristo.

Em 329 a.C., Alexandre avançava em direção ao rio Syr Darya vindo de Zariaspa, atualmente a cidade afegã de Balkh, então um centro importantíssimo às margens do rio Oxus (rio Amu Darya, na fronteira entre Afeganistão e Uzbequistão). Ele subjugava os territórios pelo caminho, mas, nesse processo, enfrentou uma revolta em sete cidades sogdianas. Ciropol era a maior e a mais complicada de se conquistar, pois estava fortificada por um muro maior do que das outras. Em vista disso, Alexandre ordenou que seu general Crateus fosse para a cidade com um grupo de soldados e estabelecesse um acampamento do lado de fora da fortificação, cavasse uma trincheira ao redor do acampamento e reunisse o máximo de armas de cerco que pudesse. O objetivo era que os moradores de Ciropol focassem suas atenções neles e assim não enviassem reforços para ajudar as outras seis cidades em revolta. Enquanto isso, Alexandre as conquistaria.

Quando finalmente Alexandre chegou a Ciropol, analisou o cenário e teve uma ideia, descrita por Arriano:

Alexandre trouxe suas armas de cerco para perto do muro com o objetivo de vencê-lo dessa forma, e realizar ataques (com soldados) em quaisquer brechas que surgissem. Ele observou que o canal do rio que corre através da cidade quando alimentado pelas chuvas no inverno estava naquele momento seco e não era bloqueado pela muralha, permitindo aos seus soldados uma passagem para penetrar na cidade; ele convocou seus guarda-costas, os guardas com escudos, os arqueiros (...) e entrou na cidade secretamente pelo canal, primeiramente com poucos homens, enquanto os bárbaros voltavam sua atenção para as armas de cerco e aqueles que os estivessem atacando naquele local (onde estavam as armas). Tendo conseguido abrir por dentro o portão próximo a este local, ele permitiu o acesso facilmente ao resto de seus soldados.
- Arriano, The Campaigns of Alexander

Arriano diz que a defesa sogdiana consistia em 15 mil homens, sendo que 8 mil deles teriam morrido no cerco e o restante, se rendido. Por outro lado, 10 mil soldados teriam tomado parte na batalha do lado de Alexandre, com um número incerto de mortes (certamente, bem menos que o de sogdianos que perderam a vida).

No alto do Mug Tepe, agora vejo bem. Não é um castelo nem um forte que foi erguido lá em cima, é um portal. Arrasto-me para o alto em um caminho de terra, empoeirado, mas bem marcado, em um terreno sem árvores. O portal, com uma cúpula, é bem recente, nada dos tempos de Alexandre. Foi erguido em 2003 para as celebrações dos nada menos que 2500 anos de Istaravshan - claro, uma data simbólica, já ninguém sabe ao certo quando a cidade foi fundada. Atrás do portal, há um terreno aberto, sem nenhuma árvore. Lá encontrei moradores locais - uma vaca, um cão, algumas ovelhas. E alguns fantasmas: montes de terra pelada, formas sugestivas de algo há muito em ruínas. Curvas e poços de argila, borrões de história. Eis o que um dia foi a fortaleza que ousou resistir a Alexandre. Para uma edificação abandonada a mais de dois milênios, nada mal. Explorando, encontrei o que parecia ser o portão da fortificação, uma sala com janelas e muralhas grossas e virtualmente impossíveis de derrubar. Por um momento, esqueço a febre e brinco, imagino homens com cavalos e espadas, falando grego, falando sogdiano, adubando a terra com sangue. Imagino grandes projéteis sendo arremessados para cá de lá de baixo, na cidade. A cidade docemente iluminada pelo sol das seis e meia da tarde, tornando as sombras mais longas e intensificando o imaginário, criando personagens fugidios, presos em segundos de luz.


* * *

A cidade lá embaixo, hoje com seus 60 mil habitantes. Daqui, se vê o bairro mais antigo, ruazinhas com casinhas de barro antigas e sarjetas levando esgoto. Perdida lá no meio, a um quilômetro pelo menos, uma linda cúpula azul timurida. Um magneto para mim, desço o morro, vou em direção a ela. Entro no bairro, em meio às casas coladas umas nas outras, seguindo ruelas estreitas, encontrando olhares de estranhamento.

Encontro uma mesquita com um delicado teto colorido, finamente trabalhado, geometrias ricas, joias no meio da pobreza. As crianças, dezenas, brincando na rua, gritando, correndo, sorrindo. A cúpula azul fica mais um pouco além.

Chego. Já está fechada. Mas é linda. É uma madrassa do século XV chamada Abdullatif Sultan, ainda ativa, recebendo estudantes que querem seguir a vida como imãs. Me frustro por não poder conhecer seu interior, mas não totalmente. Do lado de fora da cúpula azul, sentados, encontro um grupo de senhores. Professores da madrassa? Simples amigos, moradores do bairro? A maioria com uns 60 anos, usando os sobretudos centro-asiáticos, os chapans, com os chapéus pretos com detalhes brancos, chapéus que lhes conferem uma imponência de conselho, de conselho da vila, de conselho dos anciãos. Um tesouro humano, tão valioso quanto um arquitetônico.

Há muitos tesouros em Istaravshan. Queria vê-los todos.

No lusco-fusco, na caminhada de volta ao hotel, reparo que, na avenida principal, quase em frente ao mercado, há algo realmente incomum, algo que nunca vi. Uma sequência de casinhas azuis, todas iguais, coladas uma ao lado da outra, todas claramente estabelecimentos comerciais. Cada uma delas tem um ferreiro. Eles fabricam latarias de todos os tipos. Há o especializado em ferraduras, em uma casinha; ao seu lado, o especializado em fazer facas.

Vejo o senhor das facas e cutelos - tem uma forja e uma bigorna. O vejo suando na escuridão, martelando com força incrível o metal em brasa que explode em mil estrelas. Novamente, uma imagem sugestiva, algo de um tempo distante, um fantasma a mais do passado. Imagine os exércitos sanguinários dos conquistadores chegando a Istaravshan, os guerreiros buscando novas espadas, seus cavalos majestosos necessitando de novas ferraduras.

Eu não aguento mais.

Chego ao hotel.

Suando na escuridão. Estou com um sono ruim, estou quase desmaiando, não é gostoso. Febre pra valer. Antes de dormir percebi que minha urina está escura. Devo ter comido algo que me atacou o fígado. Tomo meu último trimedal para a gripe e apago a luz do quarto às 19h30. Amanhã, de pé às 5h30, rumo a mais uma capital centro-asiática.

Dushanbe, 21/9, 19h50

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