O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
Clique aqui para ler o capítulo anterior
Clique aqui para ver um mapa com o itinerário da viagem
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem
Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.
18/9/2012
Levantei de péssimo humor, como nunca em toda a viagem, depois da noite horrorosa no hotel. Com a friagem da madrugada, senti os efeitos de um resfriado. Minha garganta estava inflamada, muita tosse. Usei pela primeira vez meu arsenal de remédios e pastilhas.
O mau humor logo se manifestou também em minha falta de paciência, um problema sério em um ambiente em que você se depara constantemente com coisas que são completamente diferentes das que você encontra no Brasil e tem que enfrentar o tempo todo a curiosidade dos locais. Tudo ainda mais complicado com minha falta de domínio do russo, fonte de muita frustração.
Tive que me controlar para não sair do sério em uma lindíssima casa de chá à beira do rio Isfararinka, no coração de Isfara. Encontrei no centro da cidade duas casas de chá incríveis, imensas, com tetos ricamente decorados e coloridos. Dizem que a Orom, na rodoviária, é a mais antiga. A outra, Orion, a que fica à beira do rio, é maior; feita com mármore branco, tem dois andares e, como a Orom, estava quase vazia quando a visitei para o café da manhã.
Foi quando tive a companhia indesejada de um funcionário da casa, um senhor de bigode com camisa social branca, de mangas curta e manchas de sujeira, desabotoada do peito até a metade da barriga, enrugada. Com um odor de quem está precisando de um banho há uma semana, me recebeu quando cheguei, me encaminhou a uma mesa e não se afastou mais de mim por quase 40 longos minutos. Me pareceu sob o efeito de alguma droga. Falava rápido, alto, empolgado demais para uma pessoa que está trabalhando às 7h30 da manhã. Para ele, qualquer tópico de conversa parecia ser extremamente empolgante. Fartou-se de claramente tentar me deixar desconfortável - não sei se por humor, para que os amigos dele que se juntaram à mesa (a convite dele) rissem de mim, apenas para ver minha reação ou simplesmente para tentar arrancar dinheiro do "rico" viajante. Eu acreditava mais na última alternativa. Por exemplo: perguntou-me três vezes se eu estava precisando de uma prostituta. Depois, começou a fazer perguntas sobre meu dinheiro e pediu para vê-lo (obviamente não mostrei). Depois, pediu para ver meu celular. Mostrei as fotos que eu guardava no aparelho, sem deixar que ele o pegasse, sabendo que ele ia se entediar. Foi o que aconteceu. Logo, ele estava olhando para o outro lado, mais calmo e frustrado por eu não ter sido imprudente como ele esperava, deixando que ele manuseasse o aparelho (e talvez sumisse com ele).
Logo chegou um grupo de senhores com quem ele tinha amizade. Se sentaram em uma outra mesa, ao lado da minha, usando roupas limpas e me falando com tranquilidade na voz. Apesar de curiosos, eram cordiais e bem menos xeretas. Adorei conhecê-los, não apenas porque tive uma boa impressão inicial, mas também porque pude dedicar a eles toda a minha atenção, ignorando por completo o sujeito do bigode, que logo desapareceu. Conversei com dois deles rapidamente sobre fé. Mencionei minha crença de que há apenas um Deus, independentemente do nome ou da religião. Eles concordaram e riram quando eu me confundi e usei a palavra god (Deus em inglês) em vez de bog (Deus em russo). Especialmente de manhã, minha cabeça é uma grande salada.
* * *
O mágico anoitecer no Syr Darya. O Sol se põe devagar atrás das montanhas além do rio amplo, tranquilo. A sucessão de cores hipnotiza - luz branca, luz amarela, luz laranja, luz vermelha, luz roxa, luz púrpura, céu azul, céu azul mais escuro, céu quase negro. Lua nascente, quase invisível, apenas um fio de luz.
Alexandria Eschate nos tempos de Alexandre, o Grande (356 a.C-323 a.C.). Nos tempos soviéticos, Leninabad. Hoje, Khojand, a maior cidade da pequena península de território tajique no norte do país. Foi a mais distante cidade fundada por Alexandre em suas incursões pela Ásia Central. Uma cidade em um território que, em seus tempos, deveria representar algo como o fim do mundo, a fronteira da existência, os limites do universo. Como diz seu nome ancestral: Alexandria Eschate, significa, literalmente, Alexandria, a mais longínqua.
Não resistiu ao tempo gigante e irrefreável nenhuma narrativa primária dos tempos de Alexandre, nenhum registro da fundação da cidade escrito por algum contemporâneo dele, por alguma testemunha ocular. O conquistador esteve por aqui há aproximadamente 2.340 anos - mais especificamente por volta de 325 a.C. Entre as narrativas que sim resistem, há a de Arriano, o historiador grego que nasceu a meros 400 anos da morte de Alexandre. Muito tempo depois, mas certamente ele teve acesso a melhores fontes que nós. É assim que explica aquele momento perdido no inconsciente coletivo do mundo, quando Alexandre encontrou o Syr Darya, quando a Europa encontrou a Ásia Central:
Alexandre tinha em mente fundar uma cidade com o seu nome no rio Tanais (Syr Darya). O local parecia oferecer potencial para contínua expansão, e a cidade seria também erguida em uma boa posição, tanto para invadir Cítia (as terras mais ao norte) quanto para proteger a região contra os ataques de tribos que moravam no outro lado do rio. Ele teve a visão de que a quantidade de colonos, assim como a glória de seu nome, iriam garantir a grandeza dessa cidade.
- Arriano, The Campaigns of Alexander
A grandeza, séculos e séculos e séculos depois. Ônibus, carros, buzinas, pedestres. O rio neste ponto, ao lado da agitada ponte principal no centro da cidade, deve ter uns 30 metros de largura. Talvez 50. Nas margens, sujeira, de entulhos a plásticos, e dutos despejando esgoto. Mas o poderoso rio Jaxartes, como os gregos também o chamavam, aparenta ainda resistir. Vejo muita gente pescando, um grupo de remadores, três deles, cada um com seu barco. As águas são esverdeadas, transparentes. A superfície pinta um perfeito retrato do ocaso.
Khojand é abençoada não apenas pelo rio. As montanhas logo do outro lado dele, citadas por Arriano como o temível início da selvagem Cítia, terra do povo saka (que habitava na antiguidade a Sibéria e as estepes cazaques), certamente reforçaram sua posição estratégica. São, como tantas outras colinas por aqui, peladas. Imagino se no início eram cobertas de árvores frondosas. Imagino se no inverno não ficam todas branquinhas, cobertas de neve, tornando-as impassáveis muralhas.
Cheguei à cidade em uma van que tomei em Isfara no início da tarde. Foram duas horas de viagem. Deixei Isfara, seguindo de volta para Kanibodom, atravessando um trecho que me impressionou pela secura, quase um deserto - apenas mato rasteiro cinza, castigado pelo vento e pelo Sol insano. Depois de Kanibodom, a estrada seguiu à beira de um imenso reservatório que me lembrou uma versão menor do Issyk-Kul. Então, voltaram as plantações - algodão, milho, algumas indústrias produzindo algo que meu olhar pela janela não conseguiu identificar. Então, apareceu Khojand, deitada no final do reservatório, no oeste.
Fui recebido com muito carinho e sem segundas intenções. Entrei em um micro-ônibus no centro e, antes de me sentar, fui pedir informações ao motorista, que não só me respondeu como se negou a cobrar a tarifa de mim - disse que eu era seu "convidado". Outros a quem pedi informações foram igualmente simpáticos na rua, sempre me perguntando de onde eu era, sempre reagindo com incredulidade e orgulho de ter sua cidade explorada por um andarilho de uma terra tão distante.
Sem tanta pressa quanto em Isfara, decidi logo de cara encontrar um lugar para ficar - e de preferência melhor do que o cenário de pesadelos e calafrios da noite anterior. Não estava disposto a "tentar encontrar um lugar pior" que o hotel Isfara - essa piada que me passou pela cabeça não me pareceu muito engraçada. Ao lado do mercado da cidade, encontrei um prédio antigo inteiramente pintado de verde e amarelo, o hotel Sharq. Um funcionário falando excelente inglês me recebeu e insistiu para que eu ficasse. Novamente, um preço irrisório - a cama mais barata, dez somanis (algo como US$ 1,5), em um quarto com outras seis camas; a mais cara, 45 (cerca de US$ 6), em um quarto também dividido, mas com menos pessoas. O lugar todo era horrível, tinha colchões deformados de tanto uso e banheiros com latrinas porcas de se agachar, sem vaso sanitário, e não havia chuveiros (sim, não era possível tomar um banho).
Não muito longe, encontrei um prédio de vários andares, o hotel Eksaun. Nele, por 60 somanis (aproximadamente US$ 7,5) recebi um quarto limpo e imenso, com cama de casal, TV colorida e chuveiro. A incomum disposição interna do quarto indicava que, na verdade, todo o prédio havia sido projetado para ser um edifício residencial. Além do meu quarto, havia uma passagem para outro - totalmente abandonado, com janelas quebradas e mal cobertas por cortinhas brancas sujas e roídas por traças. Na certa, o quarto onde eu iria dormir era originalmente a sala e o outro cômodo, o quarto originalmente planejando para o apartamento. Pareceu estranhíssimo tamanho desperdício de espaço. Contudo, eu não tinha o que reclamar da cama e do quarto. Assim que descarreguei minhas coisas, peguei o elevador e atravessei o bagunçado saguão de entrada, onde os hóspedes faziam fila para falar com a senhora na janelinha da recepção.
* * *
Muitos em Khojand - não só nos hotéis - mostraram falar inglês, uma agradável surpresa. Tirando Almaty, foi a cidade com maior número de pessoas que encontrei que puderam se comunicar em inglês comigo sem problemas. Depois de admirar o anoitecer no Syr Darya, entrei em um pequeno e limpo restaurante na frente do Eksaun. Havia muitas outras pessoas e uma variedade espantosa no cardápio para um restaurante de cozinha rápida sem sanduíches. Com o meu resfriado, decidi tomar uma sopa de beterraba quentinha com quatro fatias de pão preto. Um funcionário, muito solícito, me ajudou com os pedidos falando ótimo inglês. Depois, com o caixa mais livre, se aproximou de minha mesa com um suco de cortesia e se sentou para conversar.
Alto, bigode, careca, gravata e camisa social branca bem passada, F. se apresentou com um aperto de mão. Logo passei a chamá-lo de amigo. Ainda mais quando, ao revelar que eu era brasileiro, ele abriu um imenso sorriso - disse que havia estudado com brasileiros na Europa em 1997, quando a guerra civil estava terminando no Tajiquistão.
Conversamos um pouco sobre a guerra, sobre a geografia, sobre história. Perguntei a ele sobre o domínio político que os naturais de Kulob, uma cidade no sul do país, exercem hoje no Tajiquistão. Durante os tempos soviéticos, o domínio político era das elites de Leninabad. No entanto, com a ascensão do presidente Emomali Rakhmon durante a guerra, a balança foi para o outro lado - Rakhmon é de Kulob e trouxe consigo aliados de lá. Não é à toa que o presidente tem críticos por aqui. E não só tajiques. Khojand fica encravada no Vale de Fergana, uma região em que os uzbeques são maioria. Pelos mapas bizarros traçados nos tempos soviéticos, esta cidade acabou ficando com o Tajiquistão, quando, na verdade, a posição geográfica, a composição étnica e a história indicam que este local deveria pertencer ao Uzbequistão. Evidentemente a mudança política com a ascensão de Kulob prejudicou os interesses uzbeques no Tajiquistão, alimentando a animosidade que hoje existe entre os dois países.
"Nós de Khojand somos vítimas de preconceito dentro de nosso próprio país", disse meu amigo tajique, com os olhos escuros, tensos, sem piscar. "Os kulobis têm mais oportunidades para estudar no exterior. Sim, é claro que odiamos Rakhmon. E Rakhmon e Karimov se odeiam. Isso é uma pena, muito lamentável. Há 20 anos, nos tempos soviéticos, nossos povos se relacionavam muito bem", explicou. Perguntei então a F. se é verdade ou não que Khojand é uma cidade uzbeque. "Em Khojand, há uma mistura de línguas, com tajique hoje em dia sendo ouvido com mais frequência. Mas não é o mesmo nas cidadezinhas do interior, perto daqui. É isso mesmo, a maioria aqui é uzbeque. Por isso que o fato dos dois líderes serem inimigos é um grande problema."
Talvez falar em inimizade seja exagerado. Mas há muitos, muitos sinais de falta de confiança. Os problemas começaram pouco depois do fim da guerra civil tajique, que por sua vez estourou logo depois do fim da URSS. Para Karimov, que viria a enfrentar levantes armados organizados pelo grupo militante Movimento Islâmico do Uzbequistão no fim dos anos 90, o Tajiquistão era um país que, ainda bagunçado, ainda se reconstruindo, permitia que os extremistas encontrassem refúgio e pudessem assim se reagrupar para atacar o território uzbeque. Veio pressão para os tajiques fizessem algo, e aquela sensação desagradável em Dushanbe de que Karimov era o pai mandão tratando o Tajiquistão como o filho irresponsável e inconsequente. Com o fim da ameaça dos militantes, continuaram as acusações uzbeques quanto à fronteira porosa do Tajiquistão com o Afeganistão, permitindo a entrada de drogas e armas. E veio a questão da gestão dos recursos hídricos. Pobre, o Tajiquistão quer há muito construir uma grande hidrelétrica, aproveitando seu terreno acidentado e seus rios poderosos. O excedente de energia produzido pela usina poderia ser vendido para o exterior. Mas o Uzbequistão, que ainda depende muito da produção de algodão, uma lavoura que exige muita água, ficou assustadíssimo com os planos, já que a usina poderia afetar o volume de águas que seguem do Tajiquistão para o país. Olhares tortos, agravados por personalidades orgulhosas e arrogantes dos dois líderes. O resultado não poderia ser diferente. Periodicamente, episódios menores gerando fronteiras fechadas, retaliações pontuais. Imagine, agora, o efeito disso sobre os moradores dos enclaves de um país no outro. Imagine, também, como muitos em Khojand se sentem sendo uzbeques étnicos, tendo que aturar um líder megalomaníaco que quer suprimir suas identidades, que quer que eles se afastem de seus primos do outro lado da fronteira artificial.
Mas a insatisfação dos naturais de Khojand com Rakhmon não é algo óbvio. Ela é escondida. Meu amigo me diz que ele não deveria estar falando nada daquilo para mim, porque teme que alguém possa ouvir e denunciá-lo. Pela cidade, cartazes com a foto de Rakhmon estão por toda parte. O presidente se reelege desde a guerra civil e não parece inclinado a deixar o poder tão cedo.
Logo, tenho a oportunidade de conhecê-lo melhor.
No hotel, ligo a TV. Pontualmente às 20h30, dois canais tajiques, o 1 e o T3C, entram em rede para transmitir o noticiário do dia. Uma overdose de presidente se segue. Overdose mesmo. O honrado líder é um incansável trabalhador... e isso fica bem documentado no que vejo.
Talvez o momento mais importante do ano para este país tenha acontecido hoje. Rakhmon visitou a região do Planalto de Pamir, no leste do país, na fronteira afegã, onde dezenas foram mortos pela polícia sob as ordens do líder em julho em uma revolta. Foi um desses casos que fogem de controle rapidamente - naquele mês, o chefe da agência de inteligência tajique na região foi assassinado. O governo em Dushanbe culpou Tolib Ayombekov, um líder local que, como parte do acordo de paz que encerrou o conflito civil, recebera um posto no governo de Rakhmon. O presidente, no entanto, nos anos subsequentes à guerra foi paulatinamente eliminando as concessões que fez pela paz e, por fim, afastou Ayombekov do governo. Ayombekov negou participação na morte do chefe da agência de inteligência, mas Rakhmon exigiu que ele se entregasse. Como ele se recusou, o presidente moveu suas tropas e invadiu Khorog, a capital da região autônoma de Gorno-Badakhstan, no Pamir. Ayombekov mobilizou um pequeno exército para resistir. Um banho de sangue que se seguiu.
Posteriormente, a região, que tem cultura e línguas diferentes do resto do país, foi isolada. Neste exato momento não é possível viajar para lá, nem de transporte terrestre nem aéreo. E isso congelou os meus planos - eu espero passar pela região a caminho do Quirguistão. A visita de Rakhmon ontem era esperada como um sinal de "normalização" da situação por lá.
Entretanto, na TV, nada me pareceu normal em Gorno-Badakhstan. O discurso do presidente, feito em um parque na cidade de Khorog, foi transmitido na íntegra - uma hora de blábláblá. Assisti boa parte, mesmo sendo em tajique, por curiosidade e também para me ajudar a pegar no sono. Para não deixar a transmissão tão entediante, o editor de imagens ficou incluindo imagens cuidadosamente selecionadas dos expectadores no parque. Mesmo essa seleção não foi capaz de esconder os sentimentos dos locais. Pessoas enraivecidas, com as sobrancelhas tensas, a testa enrugada, os lábios trancados. O protocolo incluiu homenagens dos moradores da região do Pamir ao presidente (lindas declamações de poemas). O que se passava pela cabeça do presidente também parecia claro - inquieto, sorriso rápido, com se quisesse acabar com tudo aquilo logo e sair voando com seu helicóptero rumo à capital. Em determinado momento, quando uma mulher se esforçava para ler lindamente um poema para Rakhmon, a imagem mostrava o presidente de pé no pódio à frente dela, de óculos, sequer olhando para a mulher, mas sim para um papel, como se estivesse trabalhando, trabalhando numa sala com a TV ligada, sem prestar atenção. Nenhum esforço para parecer simpático neste momento de crise.
Os moradores de Khojand, com raiva. Os moradores do Pamir, revoltados. Um presidente que prefere olhar para baixo, não para os olhos de seus compatriotas. Tenho maus pressentimentos sobre este país. Tomara que sejam só impressões iniciais equivocadas, pelo bem deste povo.
Khojand, 19/9, 10h45
Clique aqui para ler o próximo capítulo
No comments:
Post a Comment